quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Churrasquinho de ET

Sequer sabíamos o que a vida é, se a notícia divulgada pela NASA for verdadeira. Uso a partícula expletiva, porque é possível que o anúncio seja uma fraude, um erro de avaliação, uma pesquisa distorcida. No universo, tudo é possível. É possível até que a história da bactéria que tem arsênio em seu DNA seja um grande primeiro de abril, mesmo tendo sido anunciada em 02 de dezembro de 2010. Qualquer contaminação na extração do DNA da bactéria poderia alterar completamente o resultado. Por isso, é preciso cautela, são necessários novos exames, novas pesquisas para então, sim, anunciar-se que a vida é mais complicada, ou mais fascinante, do que parecia.

Mas, tomemos a história por verdadeira: encontraram uma bactéria alienígena, ou diferente de tudo o que se conhecia, num lago. Então, a vida extraterrestre não é tão inviável assim, nem tão estatiscamente improvável.

Nada mais será como antes. Um dia, hei de sentar-me ao lado de meus netos e contar-lhes sobre a nossa perplexidade, quando os paradigmas biológicos afogaram-se num lago de arsênio.

Sim, porque nesse dia, quando a NASA anunciou a estranha descoberta, iniciou-se uma revolução científica sem precedentes. A vida, eu sempre pensei, é menos frágil do que se supõe, nem é uma característica de um planeta azul e privilegiado. A vida, em suas infinitas variações e graus, é um dom intrínsico à mecânica do universo, que, aliás, nem isso é. O universo é um multiverso.

Agora, virão outras novidades: o uso da antigravidade para fins locomotores; o uso da força eletromagnética (Tesla) para fins meteorológicos e bélicos (H.A.A.R.P.); a recuperação artificial dos telômeros das células, para reversão da velhice. Enfim, o admirável mundo novo está apenas começando.

Aos mais renitentes, aos que se apegam demais as suas "certezazinhas científicas", é bom lembrar de Nietszche, que disse: "Num universo de infinitas possibilidades todas as possibilidades são possíveis". Até a existência clara, objetiva e insofismável de naves espaciais extraterrestres e de seres tecnologicamente mais competentes que nós. Imaginem uma civilização que tivesse um milhão de anos de revolução industrial e tecnológica... A nossa, não tem nem dois séculos, e já andamos viajando pela lua, mandando sondas espaciais a Marte e para além do sistema solar...

Espero que eles sejam espiritualmente mais avançados que os meus irmãos humanos. Carl Segan dizia que a nossa vez de sermos índios chegaria quando o Cristóvão Colombo do espaço ancorasse em nossas praias! Stephan Hawkins teme pela sobrevivência da humanidade, caso façamos contato com alienígenas.

Da minha parte, espero não virar churrasquinho de ET! O que me leva a pensar seriamente em transformar-me em vegetariano radical. Choramos a morte de um gato ou de um cão, e mastigamos sem piedade um bife de vaca. Será que os ETs não somos nós, aqui mesmo, nesse planeta-água?

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quando um poeta morde um cachorro...

Passeávamos pela Feira do Livro, Marta, Sofia e eu, quando encontramos a Telma Scherer no meio da praça, sentada sobre uma toalha, amarrada a uma coleira, cercada de boletos bancários. Ou algo assim. E creio que havia também uma casinha de cachorro, com alguns dizeres.

Ela me viu no meio do povo e fez um comentário qualquer. Lembrei-lhe que eu havia sido o seu primeiro editor. Na década de 90 (do século passado), publiquei alguns de seus poemas na Revista Porto & Vírgula, que então fazíamos na Coordenação do Livro e Literatura, da PMPA.

A conversa prosseguiu. Telma, já neste século, frequentou algumas aulas minhas na cadeira de "Poesia e Criação", no mestrado em Escrita Criativa, na PUC. Diego Grando e Diego Petrarcca, duas luminosas revelações poéticas do Rio Grande do Sul, também faziam parte dessa turma.  

Quando Telma ofereceu-me um copo de rum, recusei, alegando minha abstemia. Mesmo que eu pudesse beber o "fogo dos marinheiros", não beberia. Não seria um bom exemplo para Sofia o pai empinando um copo de aguardente em praça pública.

Fomos embora. Sofia, claro, fez algumas perguntas sobre "a moça" amarrada a uma casinha de cachorro.

O episódio me fez recordar minha primeira participação na Feira do Livro de Porto Alegre, em 1977. Quando lancei meu primeiro livro de poesias, fiz algo parecido, para chamar a atenção do público e da imprensa. Toquei violão e cantei na praça. Um de meus ouvintes, naquela tarde de arroubos juvenis, foi Mario Quintana. Se ele fosse vivo, e jovem, teria sentado ao lado da Telma e bebido um bom copo de rum. Não sei o que o Mario bebia em suas noites de boemia. Vou perguntar ao Sergio Faraco, que é sobrinho do Mario. 

No dia seguinte, li na Zero Hora que a performance da Telma acabou numa delegacia de polícia. Sequer sei o que aconteceu depois que saí da Praça da Alfândega. Por isso, não faço nenhum juízo sobre a detenção.

Hoje, na Palavraria, comprei o novo livro da Telma, Rumor da casa, publicado pela Editora 7 Letras.

Já li todos os poemas. É um bom livro. Num deles, a poeta diz:

"A nódoa se alimenta de tuas mágoas
(...)
E cresce".

Espero que a celeuma ajude a Telma a divulgar o livro Rumor da casa. Quem sabe sendo presa, a poeta seja lida. Como se sabe, quando um cachorro morde um poeta, não é notícia. Mas quando um poeta morde um cachorro os jornalistas correm para registrar o insólito.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Anton Tchecov e a poética da simplicidade e da ressonância

Um escritor, disse Anton Tchecov a uma amiga, não é um confeiteiro, um maquiador ou um bufão, mas um repórter.

O que nos leva a uma primeira indagação:

– E o que é um repórter?

Ou mais que isso:

– O que um repórter deveria ser?

Um fato, em si, é apenas um fato. E um bom repórter é aquele que nos conta um fato sem interpretação, sem retórica excessiva e com a maior honestidade possível.

Sejamos repórteres e examinemos com atenção a obra de Tchecov.

Uma pesquisa em panorama, que abarque desde os contos de juventude até as peças teatrais da maturidade, passando pelas novelas e romances, estabelecerá seis fundamentos na arte do contista e dramaturgo russo, a saber:

1. Brevidade

2. Objetividade

3. Veracidade

4. Originalidade

5. Sobriedade

6. Generosidade



Tratemos de examinar cada um desses pontos.



Brevidade

Na terra de escritores verborrágicos como Dostoievsky e Tolstoi o advento de um escritor tão sucinto quanto Tchecov deve ter causado espanto. Mesmo em seus romances, Tchecov não se alonga, não se demora em descrições inúteis, não narra detalhes desnecessários.

Quais seriam as causas dessa economia verbal e narrativa?

A proposta de um texto mais enxuto havia sido lançada em 1842, nos EUA, por Edgar Alan Poe. E Tchecov, nos confins das estepes russas, quarenta anos depois, fazia algumas traduções de contos do escritor de Boston para o alfabeto cirílico. Ambos eram homens de imprensa, trabalhavam em jornais e revistas, e sabiam que a modernidade emergente e o capitalismo em desenvolvimento exigiam eficiência e rapidez. O tempo era do trem veloz e do texto curto.

Se em Poe ainda temos textos longos, cuja leitura requer talvez duas horas, em Tchecov o tempo de leitura se encolhe ainda mais. Seus contos podem ser lidos em dez, quinze minutos.


Objetividade

A objetividade, em Tchecov, é um elemento fundamental, estruturante de seu fazer artístico.

Além do olhar de repórter, que busca o essencial, que trata do que efetivamente pode interessar ao leitor, o olhar de Tchecov é o olhar do cientista, do médico.

Sabemos que são seis as funções da linguagem: a função fática, a referencial, a expressiva, a conativa, a metalingüística e a poética.

Em Tchecov, a função referencial é quase tão importante quanto a função poética, como se o cientista zelasse pela objetividade, e o artista, pela poeticidade da linguagem.

A função referencial, como diz Wander Emediato, “tem a intenção de informar o interlocutor, fazendo referência a pessoas, objetos e estado de coisas da realidade, levando até ele um conhecimento que necessita ou que é considerado importante”.

Características:

Linguagem denotativa, objetiva;

É centrada sobre o referente;

É informativa, narrativa e descritiva.

Anton Tchecov sabia que a realidade descrita com objetividade pode ser compreendida por qualquer pessoa. E ele queria ser lido por todos. Por isso, evitava o rebuscamento, a filigrana, o torneio sintático exótico, pois eles mais afastam do que aproximam o leitor.

No entanto, e especialmente nos contos da juventude, o escritor deixa-se levar pelo canto de sereia da função poética da linguagem, e usa algumas figuras, especialmente a metáfora e a metonímia. Nos nomes das personagens, às vezes, com a intenção de provocar riso, Tchecov apela para a metalinguagem, usando toponímicos engraçados, fazendo derivações e composições insólitas, mas que se perdem na tradução para o português.

Enfim, pode-se dizer que a mistura que Tchecov faz da linguagem referencial e da linguagem poética, com laivos metalingüísticos, resulta num bom equilíbrio estilístico, tornando seus textos facilmente compreensíveis e deliciosamente poéticos. Raymond Carver, nos EUA, foi o escritor contemporâneo que mais se deixou influenciar por essa aparente “simplicidade” e por esse estilo “jornalístico”.


Veracidade

Embora de recorte aparentemente moral, a veracidade artística diz respeito à relação que um escritor estabelece com seus personagens e não com o mundo real que o cerca. O que nos leva ao paradoxo de imaginar um escritor mentiroso na vida real, mas sincero como artista. Não sabemos se o cidadão Tchecov foi verdadeiro e sincero, e isso nem interessa. Mas o escritor, sim, o foi.

Qualquer conto, qualquer peça de teatro, qualquer romance de Tchecov, ressuma uma profunda veracidade. Estamos diante de personagens absolutamente verdadeiros. A qualquer um de seus personagens, poderíamos aplicar a máxima de Aristóteles: de que o personagem, para ser bem feito, precisa ser verossímil.

Poderíamos encontrar, por exemplo, a Dama do Cachorrinho em qualquer praia. Aliás, nesse exato instante, centenas de milhares de Damas do Cachorrinho entregam-se a seus amantes, em ateliês de pintura, em gabinetes de estudo, em motéis. Mais de um século depois, ao lermos um conto de Tchecov, sentimos, ainda, que seus personagens estão vivos. As vidas que eles vivem poderiam ser vividas por qualquer um de nós. Por isso é que sentimos tanta compaixão por eles.


Originalidade

No contexto russo, em que os escritores se dedicavam aos grandes panoramas épicos, como Tolstoi, ou aos grandes conflitos da alma, como Dostoievsky, a literatura de Tchecov, que descrevia o cotidiano sóbrio e sem brilho de homens e mulheres comuns, foi de uma originalidade sem precedentes. A pequena classe média que sequer emergira, e que seria contida pela revolução bolchevique em marcha, poderia ter encontrado nele o seu cantor. O realismo socialista, imposto por Stálin, valorizou o soldado, o camponês, o burocrata fiel. É de se supor que agora, com o fim da era soviética, e quando o capitalismo russo for capaz de constituir uma nova e sólida classe média, Anton Tchecov venha a tornar o seu grande representante.

Talvez Anton Tchecov não tenha sido original quanto aos temas que abordou, já que na década de 80 do século 19, escritores como Hart, Crane e outros já se dedicavam à vida miúda, mas quanto à linguagem foi originalíssimo, fazendo uma perseguição implacável ao lugar comum, por exemplo. São inúmeras as cartas em que manifesta ojeriza às platitudes.

A originalidade maior de Anton Tchecov está no recorte que faz da cena: ele narra e/ou descreve somente o essencial, permitindo que o leitor seja um ativo participante da trama. A este processo chamamos de ressonância. Ou seja, a história que acabamos de ler continua ressonando em nossa consciência, muito tempo depois da leitura. Nessa incompletude, nessa indeterminação, nessa abertura reside a grande originalidade de Tchecov. Hoje, quando tantos escritores fazem isso, parece simples e fácil. Mas o simples e o fácil é difícil quando se é o precursor de um novo modo de narrar.


Sobriedade

Nada, em Tchecov, é bombástico, altissonante, exagerado. Frugal e sóbrio, lembra os artistas japoneses, que num único traço desenham um extraordinário passarinho. A cena de Iona Potapov, por exemplo, aquecendo as mãos no bafo da égua e contando-lhe aquilo que os humanos não se dispuseram a ouvir, é de uma sobriedade franciscana, mas tem um efeito devastador. Este tipo de composição de cena, de narrar o extraordinário como se fosse a coisa mais simples do mundo, é muito freqüente nas narrativas de Tchecov.


Generosidade

Embora se pudesse, aqui, alardear a generosidade de Tchecov, capaz de exercer a medicina sem cobrar dos camponeses, capaz de construir escolas e hospitais, de ler com paciência os jovens autores e sugerir-lhes modificações em seus textos, perdendo o seu tempo precioso, já que a morte se avizinhava, não são questões morais que interessam aqui, mas artísticas.

A generosidade artística de Tchecov se revela no amplo espectro social de seus personagens. Proprietários de terra, militares graduados e recrutas, bispos e clérigos inferiores, comerciantes e camponeses, madames e prostitutas, professores e estudantes, cantoras líricas e donas de casa, todos os estratos da sociedade de seu tempo tiveram de Tchecov o mesmo olhar compassivo e generoso, a mesma paixão e solidariedade. A nenhum deles o escritor ridicularizou. Mesmo dos mais simplórios e ignorantes soube extrair o essencial de sua humanidade.

Por isso, pela brevidade, objetividade, veracidade, originalidade, sobriedade e generosidade este escritor se tornou um exemplo para jovens escritores e escritoras do mundo inteiro.

Katherine Mansfield, por exemplo, seguiu as suas pegadas. Raymond Carver, também.

A poética da simplicidade não é fácil, como pensam alguns. Às vezes, requer uma vida inteira de reescrituras.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Exemplo a ser seguido

Para quem nutre desconfianças a respeito de concursos e prêmios literários, quero registrar aqui um democrático, saudável e singular exemplo. Sou o primeiro a criticar as coisas mal feitas, os enjambres, as maracutaias da vida literária, mas também me apresso a reconhecer o que é bem feito, o que é bem organizado, o que é transparente.

Faço parte do grupo de jurados do Prêmio Fato Literário 2010. Inicialmente, a RBS entrou em contato para saber se eu aceitava o encargo de votar. Respondi que sim, pois faço questão de atuar em prol da literatura. Depois, comunicaram-me que num dia xis eu receberia um e-mail e através dele deveria votar. No dia aprazado, reecebi o tal e-mail e votei em duas categorias.

Hoje, recebi um telefonema da Price, empresa contratada pela RBS para garantir a lisura de todo o processo. Do outro lado da linha, a agência de controle pediu-me que eu confirmasse meus votos. Deixei que ela declarasse, primeiro, em quem eu havia votado. Como as informações estavam absolutamente corretas, confirmei.

Agora, publicamente, declaro minha admiração por esse procedimento. Sim, é assim que se faz: com transparência.

Parabéns aos organizadores.

Irei à festa de entrega dos prêmios, no dia 15 de novembro, no Clube do Comércio.

domingo, 7 de novembro de 2010

Agradecimento e pedido de desculpas

Agradeço, publicamente, a todos os amigos e amigas que compareceram a minha sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre, dia 05 de novembro. E peço desculpas às centenas de leitores e leitoras que não conseguiram comprar o livro, que se esgotou ainda durante o lançamento. A situação já está normalizada e o livro encontra-se, agora, à disposição na Barraca 71, na Livraria Palmarinca, e também na Barraca 61, da AJR.

Também na Livraria Palavraria, Vasco da Gama, 165, onde tenho alguns grupos de oficina literária, a obra Para ser escritor encontra-se se à venda. Quem quiser, pode passar na livraria e apanhar o autógrafo, de quartas a sábado, a partir das 10h da manhã.

Também quero agradecer, comovido, às mais de 200 pessoas que me aguardaram por mais de 1 hora para a palestra na Casa do Pensamento, no Cais do Porto, na noite de 05 de novembro. A fila da sessão de autógrafos foi tão grande que acabei atrasando.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Escrever e ler, uma relação de causa e efeito

Na segunda-feira, estive na cidade de Barra do Ribeiro, fazendo palestra para jovens da Escola Carlos Pinto de Albuquerque. E, nesta escola, como em tantas outras que tenho visitado, me susprendi com o número de alunos que acompanham este blogue. Várias das perguntas que me fizeram saíram diretamente das leituras dos textos que tenho postado aqui.

Este é um fenômeno que já começamos a sentir na Universidade. Ao menos eu o sinto em minhas aulas de Escrita Criativa, na PUC. De quatro semestres para cá, tenho observado uma melhoria significativa no texto de meus alunos. Há duas semanas fiz uma prova, e que, no meu caso, são sempre dissertativas. E nunca dei tanta nota máxima quanto agora. Não que eu tenha mudado. Continuo chato e exigente como sempre. Meus alunos é que chegam à Faculdade de Letras com maior competência linguística, com melhor nível de raciocínio. E onde eles estão aprendendo a escrever? Na blogosfera.

Sugestão aos professores de ensino médio: incentivem os seus alunos a frequentar e manter blogues. Esta é uma ferramenta de autoaprendizado muito importante. Insistam menos na necessidade de leitura e invistam mais na escritura. Ao compreender as enormes dificuldades que se apresentam àqueles que desejam escrever, os alunos, inevitavelmente, lerão mais. É uma relação de causa e efeito. Nem sempre a leitura gera vontade de escrever, mas escrever sempre gera vontade de ler mais e melhor.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Minhas participações nesta Feira do Livro de Porto Alegre

01/11/2010
Hora: 19:00

Título do evento: Literatura policial - crimes e ficção

Local: Auditório Barbosa Lessa - CCCEV - Área Geral

Participantes: Gustavo Machado, Paulo Wainberg, Carina Luft, Mediação de Charles Kiefer

O gênero policial debatido por vários escritores



02/11/2010

Hora: 18:00

Local: Memorial do RS - Térreo - Sessões de Autógrafos

Participantes: Charles Kiefer (org.)

Obra: Outras Mulheres

Editora: Palmarinca e Dublinense


05/11/2010
Hora: 19 :00
Local: Praça de Autógrafos - Praça da Alfândega - Sessões de Autógrafos

Participantes: Charles Kiefer

Obra: Para ser escritor


06/11/2010
Hora: 19:00

Título do evento: Ciclo Fahrenheit 451: Charles Kiefer é Nós, de Yevgeny Zamyatin

Local: Sala Leste - Santander Cultural - Área Geral

Participantes: Charles Kiefer

Inspirado em Fahrenheit 451, do mestre da ficção científica Ray Bradbury, o ciclo lembra a história em que, num futuro totalitário, os livros seriam proibidos e queimados. Graças a uma comunidade de homens-livros, publicações são decoradas e retransmitidas. A cada dia, um convidado especial passa a ser um livro, dividindo-o com o público.

Para ser escritor (convite)

Há mais de três décadas, no dia 05 de novembro, dia do meu aniversário, autografo na Feira do Livro de Porto Alegre.

Neste ano, autografarei Para ser escritor, meu novo livro, que reúne textos sobre a atividade de escrever, a vida literária, o sistema literário etc.

Convido aos meus seguidores do blog que apareçam por lá, no Pavilhão Central de Autógrafos, no dia 05 de novembro, às 19h.

Alguns seguidores de outros estados me escreveram, dizendo que procuraram meu livro em livrarias e não o encontraram. É que ele sairá da gráfica no dia 28 de outubro. Em novembro, a Editora Leya já o terá distribuído em todo o país.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Mudança

Diante do pouco interesse pela leitura de "A poética do conto" decidi parar de publicar o livro aqui. Quem o quiser em arquivo word é só me escrever e eu remeto por e-mail.

Escreva-me para charleskiefer@uol.com.br e lhe enviarei gratuitamente o arquivo.

Abraço,

CK

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Os maias e 2012

Maias, astecas e outros povos antigos faziam observações astronômicas impressionantes, pela acuidade e precisão. Rir do que não compreendemos não comprova a falta de “ciência” dos antigos, mas revela os nossos próprios preconceitos e platitudes.

O calendário maia termina em 21 de dezembro de 2012. Neste dia, para este antigo povo a Terra cumprirá mais um ciclo. Desta observação astronômica, alguns, “apocalípticos” – como diria Umberto Eco –, extraem a certeza de que o mundo irá acabar daqui a dois anos.

Para os maias – e para antigas tradições esotéricas –, em 2012 teremos, nas proximidades do sistema solar, a presença de um corpo celeste gigantesco, seis vezes maior que Júpiter, que passará a 500 mil quilômetros da Terra (em sua órbita que dura exatos 25.968 anos). A força gravitacional que ele exercerá sobre o nosso planeta, e sobre todo o sistema solar, gerará problemas significativos aqui em baixo.

É por isso que o calendário maio termina no dia 21 de dezembro de 2012. Depois desta data suas observações astronômicas cessam. Outro povo talvez seja capaz de fazer as previsões astronômicas para os próximos 25.968 anos.

Você, como eu, é cético a respeito disso? Então, a partir de maio de 2011, teremos (ou não) uma prova “científica” a respeito do retorno de Hercólobus, Nabiru, Nêmesis, Barnard´s Star (ou qualquer outro dos muitos nomes que já se deu a esse planeta nômade): como se fosse um “segundo Sol”, o planeta-viajante estará visível a olho nu aqui da Terra.

Sem telescópios, poderemos ver (ou não) a Estrela Baal (era assim que os maias o chamaram) viajando com sua massa colossal e provocando aqui em nossa terrinha fenômenos espantosos, a respeito dos quais prefiro não falar.

Insisto, e espero, que o nosso preconceito, a nossa jactância, a nossa pouca fé tenha razão e tudo isso não passe de fantasia, de misticismo, de neurose. Se assim for, no dia 21 de dezembro de 2012 estarei lançando, com meus queridos alunos e alunas de oficina, um novo livro de contos. Se o mundo não estiver caótico demais, venha ao lançamento comemorar a ignorância dos maias.

Agora, se em maio de 2011 pudermos ver, a olho nu, esse “segundo sol” sobre nossas cabeças, vamos nos organizar e construir uma nova arca de Noé. Ou quem sabe, uma nave espacial para fugirmos daqui.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Liberação de "A poética do conto"

A cada dia, mais eu sinto a vontade de disponibilizar a minha obra na internet. Não fossem os meus contratos com as editoras que me publicam, lançaria tudo aqui, para quem quisesse ler, gratuitamente.

Nunca vivi de direitos autorais, nunca vendi tanto a ponto de viver de direitos autorais. Em certo período, entre 92 e 98, fiz um acordo com Roque Jacoby, meu antigo editor. Ele me pagava o salário (que eu tinha quando era funcionário da editora Mercado Aberto) e eu ficava em casa, escrevendo e estudando. Foi o período em que pude fazer faculdade, escrever vários livros, viajar por muitos lugares. Meu compromisso era apenas o de entregar a Mercado Aberto todos os meus livros. Depois, com o declínio econômico da editora, esse arranjo se desfaz. Aceitei um cargo público, de Coordenador do Livro e Literatura da SMC de Porto Alegre, e abandonei a carreira literária. Praticamente não escrevi, não publiquei. E naufraguei, literariamente falando. Seis anos depois, recomecei tudo, publicando pela Ática, pela Record, pela Manole. Mas as vendas de meus livros caíram vertiginosamente. E continuam caindo. Hoje, o único comprador de meus romances, contos e livros de ensaio sou eu mesmo, que dou os livros de presente aos meus alunos.

Por isso, tomei a decisão: vou publicar aqui, por partes, o meu A poética do conto, na versão integral. A edição da Nova Prova é parcial. Fiz alguns cortes, para retirar da obra o ranço acadêmico. Pois vou recuperar o ranço, publicando tudo aqui.

Os exemplares que eu ainda tinha em estoque (e que nos últimos anos dei de presente aos meus alunos de oficinas literárias) estão se acabando. Tentei fazer uma segunda edição, nenhuma editora se interessou. Como em outros projetos neste blog, o numeral entre parênteses será o guia de leitura.

Quem quiser acompanhar, a primeira postagem será A poética do conto (1). Já antecipo que este texto inicial não consta da edição publicada em livro. É uma espécie de síntese do que a obra contém.

sábado, 7 de agosto de 2010

Convite e explicação

Neste momento, este blog possui 210 seguidores.

Convido a todos a acompanhar, também, como seguidores, o novo blog que criei:

http://catalectico.blogspot.com/

Nesse espaço, publicarei exclusivamente poemas, meus e de meus alunos e alunas de oficinas.

O nome estranho, e para alguns excessivamente sofisticado e pedante, tem uma explicação  bem simples. Todos os nomes pensados já estavam registrados. Tive que apelar para um nome raro. Felizmente, ninguém pensou nele antes para batizar seu próprio blog poético.

Quem quiser saber o que significa nem precisa recorrer ao dicionário. Basta visitá-lo. No perfil, há a definição do conceito.

Boa leitura.

Abraço,

Charles Kiefer

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ofensas à velocidade da luz

Muitas vezes, a caminho de uma Agência dos Correios e Telégrafos, rasguei cartas que iria enviar. Entre o tempo da escritura e a remessa da carta, o coração serenara, e o que era mágoa, desilusão ou simples raiva transformara-se em outra coisa, perdão, compreensão ou simpatia pelos erros alheios.

No tempo das carruagens, o mal também se movimentava com lentidão. Ao menos, o mal epistolográfico.

Hoje, não. Hoje, quando nos damos conta, a ofensa já partiu à velocidade da luz.

Não conheço a experiência dos meus leitores, mas eu, mesmo sem querer, já magoei algumas pessoas por e-mail. Ou porque não refleti suficientemente antes de enviá-lo; ou porque o destinatário – na sua pressa igual a minha – leu mal e interpretou o conteúdo equivocadamente.

Ganhamos em rapidez e comodidade com a advento do e-mail, mas estamos perdendo em humanidade e delicadeza.

Os deuses, como diziam os fenícios, e que Fernando Pessoa plagiou, vendem quando dão.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O papel da crítica

No passado, no tempo em que literatura tinha importância, a crítica literária era fundamental na carreira de um escritor. Críticos eram capazes de destruir, socialmente falando, reputações literárias. Ser vergastado por um crítico era a destruição da ponte que conduzia à glória. Ser elogiado, a depender da importância do crítico, catapultava o escritor ao centro do sistema literário. Editores examinavam fortunas críticas em busca de autores para formar fundos de catálogo; leitores liam críticos para decidir se compravam ou não um novo livro; livreiros consultavam críticos para encorajar-se a colocar na vitrine os novos autores. E os próprios artistas liam os críticos com a intenção de evoluir, pois reconheciam neles autoridade para avaliar.

As transformações tecnológicas, sociais e políticas das últimas décadas jogaram a literatura para escanteio. Hoje, resta à velha dama o papel de relicário da língua, como disse José Hildebrando Dacanal em Era uma vez a literatura.

E a crítica literária? Refugiou-se na Universidade, transformada em tema de TCCs de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado (que são lidos somente pelos professores que compõem as bancas e pelos próprios candidatos à titulação).

Agora, em blogs, sites e revistas eletrônicas a crítica literária parece ressurgir.

Um exemplo disso é o Campeonato Gaúcho de Literatura

http://www.gauchaodeliteratura.com.br/

capitaneado pelo Rodrigo Rosp. Alguns, mais sensíveis, e talvez supondo que a vida literária se resuma a elogios baratos e prebendas fáceis, estão assustados com a virulência das resenhas já publicadas. O que acontece no “Gauchão de Literatua” é pouco, se comparado ao que acontecia na imprensa brasileira, quando ela ainda veiculava crítica literária. Leiam, por exemplo, o ensaio “A polêmica da Confederação dos Tamoios”, que incluí em A última trincheira. A dureza e a acidez de José de Alencar, em sua crítica à obra de Gonçalves de Magalhães, superam o Rafael Ban Jakobsen em sua análise do livro publicado por Marco de Curtis. O tempo mostrou que o livro de Magalhães, como afirmava Alencar, era pífio e frouxo, mal feito. Da literatura de nosso tempo, e da nossa província, o que restará? Do século 19, sabemos, restou pouco: Machado de Assis. E alguns críticos de Machado de Assis erraram completamente.

O que não devemos esquecer – autores, editores e leitores – é que um livro, depois de publicado, pertence à sociedade e à história. E cabe a nós, sim, julgá-lo, mesmo que nossos juízos estejam equivocados. O tempo fará as correções necessárias.

Para ajudar nessa questão, afinal o trabalho do professor é esse, publico, aí abaixo, uma Ficha de Avaliação, que utilizo em aula. Ela tenta dar conta, criteriosamente, dos dois eixos que compõe o que chamamos de literatura: o eixo dos procedimentos construtivos e o eixo dos meios expressivos. Sempre afirmo e repito: a grande literatura é aquela que articula e equilibra, com harmonia, esses dois planos.


FICHA DE AVALIAÇÃO


Procedimentos construtivos (de 0.0 a 5.0 pontos)

Personagens: se convencem ficcionalmente; se há verossimilhança de caráter; se são bem estruturadas do ponto de vista psicológico, histórico, social; se não são estereotipados e caricatos; se o que se sabe sobre eles é suficiente para a compreensão da história; (0.0 a 1.0)

Enredo: se é convincente; se tem um bom mythos (composição das partes orgânica e eficiente); se há adequação ao gênero (conto, relato, crônica); se não há descrições desnecessárias e sem articulação com a narração; se a ação é lenta e desconexa; se não há cenas ou situações inverossímeis; se há clichês narrativos; caso haja diálogo, se o método (d) escolhido é a mais adequado; se o diálogo (quando houver) está bem construído ou se é artificial e/ou inútil; caso haja alegoria, se ela é simples ou complexa, e se é bem construída; caso haja história cifrada, se funciona. (0.0 a 2.0)

Narrador: se o narrador escolhido e sua perspectiva (a), o focalizador (b) e a técnica narrativa (c) funcionam, ou se poderiam ser utilizados outros, mais eficazes para o texto. (0.0 a 1.0)

Conflito: se a história tem intensidade e se é significativa; se o conflito é bem construído (fraco, médio ou forte) (0.0 a 1.0)


Meios expressivos (de 0.0 a 5.0 pontos)

Linguagem: se há variedade e precisão vocabulares; se há adequação dos tempos verbais; se a adjetivação (quando houver) é eficiente; se há defeitos lingüísticos, sintáticos ou semânticos; se há clichês de linguagem; se o estilo é adiposo, desajeitado, flácido ou desarmônico; se há acidentes de leitura (e); se há ritmo, melodia, musicalidade e imagens bem construídas; se há investimento do autor nos campos semânticos para melhor compor o tom e o clima da narrativa; se há clivagem; se a textura da linguagem é simples ou complexa, superficial ou densa; se há investimento do autor na construção de um significante geral, organizador da narrativa; se há investimento do autor em figuras de linguagem (caso a poética do analisador entender que tropos ajudam a compor literariedade). (0.0 a 5.0)

Notas

(a) Técnicas de diálogo: discurso direto; discurso indireto; discurso indireto livre.


(b) Perspectiva do narrador: onisciente seletivo; onisciente seletivo múltiplo; onisciente intruso; onisciente neutro; eu-protagonista; eu-testemunha; modo dramático.

(c) Focalizador = foco narrativo = ponto de vista.

(d) Técnica narrativa: narrador-câmera; fluxo de consciência; monólogo interior.

(e) Acidentes de leitura: trava-línguas; repetições de palavras; excessos; ambigüidades; imprecisões semânticas e conceituais; ecos; cacofonias; assonâncias; uso excessivo de “ques”; impropriedades em geral.

(6) Figuras de linguagem ou tropos: metonímias; sinédoques; eufemismos; catacreses; hipalages; lítotes; autonomásias; perífrases; anáforas; disfemismos; apóstrofes; clímax/gradação; hipérboles; polissíndetos; paradoxos; oxímoros; antíteses; quiasmos etc.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A arara vermelha (conto)

Contrabandista não é bandido, é? Nunca roubei, nunca matei. Tenho ficha limpa, pode examinar. Se eu pudesse, tinha feito uma faculdade, ia ser advogado, andava de terno e gravata, como o senhor. Trabalho com quinquilharia paraguaia, mas não sou traficante. Relógio Jean Vernier, Tissot, Girard Perregaux. Sim, sei dizer o nome direitinho, aprendi com uma dona chique. Trabalho perto dos hotéis de luxo, lá na Paulista, e no Teatro Municipal. Tem gente endinheirada que compra de dúzia. Dão de presente? Revendem? Por encomenda, trago máquina fotográfica, computador de bolso, GPS, mas tem que fazer um adivance, me falta capital pra bancar produto muito caro.

Hoje se negocia qualquer coisa, cocaína, crack, rim, fígado. Já me ofereceram uma boa grana pra ser mula, pra carregar pasta de coca, pedra, papelote. Não topei. Tenho os meus limites, lido com muamba, e só. Dinheiro é bom, faz a gente feliz, mas não compra tudo, minha mãe já dizia.

Fui de ônibus, como sempre, a Foz do Iguaçu. Atravessei a fronteira a pé, sobre a ponte internacional, e voltei com a cota. Fiz a travessia várias vezes, pra que valesse a pena. Deixava a muamba na mala, no hotel, e voltava pra Ciudad del Este.

Numa dessas idas e vindas, encontrei a arara. Não, viva não. Era uma arara empalhada. De longe, parecia que ela ia levantar vôo, tinha o olho brilhante, as penas do peito eram vermelhas, quase sangue, e das pontas das asas e do rabo, pretas.

Retornei a São Paulo em ônibus de linha intermunicipal, fugindo da fiscalização, por estradas esburacadas, comendo poeira e pastel de rodoviária, e pensando na arara vermelha. Imaginava aquele bicho na floresta, nas árvores, comendo frutinha, longe da maldade dos homens. Até que alguém a caçasse, abrisse a barriga e enchesse tudo de palha seca. É triste. É triste pensar que uma ave linda, que nasceu pra andar pelas estrelas, que tinha visto o mundo de cima, agora olhava a gente com um olho de vidro, sem poder se mexer. Sinto um arrependimento danado de não ter comprado a arara. Só não fechei o negócio porque não teria coragem de passar adiante depois, eu me apego às coisas bonitas, e o dinheiro já andava curto. E agora, sem mercadoria pra revender, encurtou de vez. Eu tinha prometido a mim mesmo que ia trazer o pássaro empalhado na semana seguinte, quando voltasse. Só que eu ainda não sabia que tudo ia acabar numa delegacia de polícia, em Cascavel, no Paraná.

Às vezes, eu fico lembrando a voz da mulher, a beleza do rosto, o cabelo escuro e liso, mas penso, também, na criança que ela trazia no colo, penso muito. E era, mesmo, uma menina, como ela me disse. Assim que olhei pra ela, no ônibus, eu me lembrei da Virgem de Guadalupe. As duas tinham a pele morena e aquele sorriso manso no rosto. Se eu encontrasse a mulher noutro lugar, no Horto Florestal, por exemplo, ou na Praça Quinze, eu ia me apaixonar por ela, mas encontrei na viagem, e deu no que deu. Fui chamado pra ser testemunha do flagrante de prisão e vou levar processo por contrabando. Quando a polícia abriu uma das minhas malas, encontrou a montanha de relógios suíços, fabricados no Paraguai. Perdi tudo e ainda vou me incomodar com o inquérito. A dona da pensão onde eu moro me aconselhou a falar com o senhor.

“Um bom advogado, você vai precisar de um bom advogado”, ela me disse.

Depois de algumas horas, senti vontade de ir ao banheiro. Quando estava me levantando, vi, meio sem querer, que a mulher, essa que se parecia muito com a Virgem, borrifava perfume no rosto da criança. Entrei no reservado e enquanto sacolejava e tentava acertar o vaso, pensei em tudo. Ela embarcou na primeira parada que o ônibus fez, logo que saímos de Foz. Entrou com a criança no braço esquerdo, e com uma sacola plástica dependurada no direito. Tenho certeza, porque ela bateu aquela sacola no meu rosto, quando passou no corredor.

Durante a viagem, ela não saiu nunca do assento. Nem pra almoçar, nem pra jantar, naquelas paradas mais longas que o ônibus sempre faz. Teve uma hora que eu quase perguntei se ela não queria alguma coisa do restaurante, mas desisti quando vi ela tirar um sanduíche da sacola plástica.

Voltei pro meu assento e passei a observar a criatura com mais cuidado. Uma hora depois, se tanto, ela borrifou perfume sobre a criança outra vez. Uma coisa óbvia como que tilintou na minha cabeça: nunca, em nenhum momento, o bebê tinha chorado. Horas e horas de viagem, num caminho esburacado e lento, sob um calor dos diabos, e uma criança de colo ficava o tempo inteiro quieta, adormecida, sem chorar ou mamar?

Entrei na cabine do motorista e comentei que havia algo estranho no assento vinte e um. Um pouco depois, ele parou.

“Estamos com um problema no motor. Peço a todos que desçam. O conserto será rápido”, ele disse, na porta do corredor.

Depois que todos saíram, menos a mulher, voltei pra dentro do ônibus e perguntei:

– Não quer descer?

– Prefiro ficar aqui.

Vi que um lenço cobria o rosto da criança.

– Não vai se afogar com esse calor?

– Não, ela está bem – a mulher disse e sorriu.

E é esse sorriso que eu não esqueço. No quarto da pensão, quando eu lembro tudo que aconteceu, quando eu penso na mala de relógios que perdi, no bicho empalhado que não comprei, o que salta diante de mim feito uma arara enlouquecida, grasnando, é o sorriso e a doçura de santa que a mulher tinha.

– Então, é uma menina... – eu disse.

– Sim, e se chama Luísa – ela respondeu.

Falei com o motorista. Ele disse que não podia obrigar a mulher a se levantar, que ia dar rolo, depois, na empresa.

Recomeçamos a viagem. Eu estava cansado. Dormi um pouco, acordei, voltei a ficar de olho na mulher. E ela lá, sentada, quieta, uma santa no nicho.

Paramos em Cascavel. No posto da Polícia Rodoviária descobriram que a criança não só estava morta há muitas horas como vinha recheada de cocaína.

Tão cedo não conseguirei viajar outra vez. Será que o senhor não conseguia recuperar a minha mercadoria? Se eu vendesse os relógios, teria dinheiro pra voltar pro Paraguai e encontrar a minha arara vermelha. Meti na cabeça que eu quero aquele bicho. Sim, eu sei, se eu tivesse trazido, seria pior, ela estaria agora recolhida no depósito da polícia, no escuro, sozinha, empoeirada, atacada por ratos e cupins.

domingo, 11 de julho de 2010

As dores e a dor

Este texto encontra-se agora na obra Para ser escritor, editado por Leya, 2010.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A arara vermelha

Entre as muitas teses que tenho a respeito do conto e de seu processo de composição, há uma que se consolidada cada vez mais.

Um conto deve ser pensado longamente, mas escrito rapidamente.

Não importa o tempo que se leve, depois, a retocá-lo, a reescrevê-lo.

Durante 32 anos (isto mesmo, trinta e dois anos) acalentei a idéia de um conto. E hoje, depois de três décadas a observá-lo, a pensá-lo, arranquei-o de mim. Chama-se A arara vermelha.

Escrever contos é como pintar paredes. Se interrompemos a pintura, para continuá-la num outro dia, ao retomá-la, restarão as marcas das junções. A tinta seca e a tinta molhada não se acertam.

Um conto é um meteorito. É preciso que viaje longamente pelo espaço do imaginário, para incendiar-se, subitamente, ao entrar em contato com a nossa atmosfera.

E esta sensação é impagável: fazer um bom conto, e que agrade, em primeiro lugar, ao exigente leitor que temos dentro de nós. Não venderá nada, não será lido por ninguém, mas não importa.

Toda beleza é inútil. E é bom que seja. É a nossa última trincheira, nesse mundo em que tudo vira mercadoria.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A questão da "verdade" em literatura

Ficção e Realidade

Ao analisar as relações que se estabelecem entre ficção e realidade, Tzvetan Todorov recorda inicialmente uma afirmação de Paul Valéry, que se poderia chamar de a questão do efeito de verdade. Para o poeta francês, quando contemplamos um retrato de personagem antigo, inclinamo-nos a tomá-lo por verdadeiro, ainda que não se tenha nenhum meio de comprovação de sua veracidade. O mesmo se estenderia aos livros, já que os leitores não dispõem de mecanismos para distinguir entre livros de “testemunhos verdadeiros” dos de “testemunhos imaginários”. Estabelecer se os autores são inventores ou repórteres ficaria a critério do leitor. Todorov, brilhantemente, desnuda o que a proposição de Valéry esconde: o problema não está em declarar se estes ou aqueles são mais ou menos verdadeiros, mas em perceber o efeito de verdade, a verossimilhança, o efeito de realidade que cada texto instaura.

No entanto, Valéry pensava nos efeitos sobre o leitor e não na veracidade ou não da história. Alguns, ignorando esse detalhe, tomam a árvore pela floresta: acreditam que não existam fatos mas somente interpretações dos mesmos. Idéia que tem origem em Nietzsche, e que propõe uma perigosa generalização: além de inexistirem fatos, existem somente discursos sobre fatos. Conseqüentemente, não há verdade do mundo, mas somente interpretação do mundo.

Todorov lembra que não há nenhuma novidade na querela. Platão já provara que nos tribunais a eloqüência – e a conseqüente adesão dos juízes ao orador – era mais importante do que a verdade. Platão apenas opõe-se aos autores modernos, no sentido de recusar-se ao elogio do poeta e de seus “testemunhos imaginários”.

Além dessa primeira interpretação a respeito das relações entre ficção e história, o mundo moderno conhece outra: a de dizer que a ficção é mais verdadeira que a história. O que Todorov considera uma inversão de hierarquia e uma radicalização.

Como exemplos dessa inversão, Todorov cita Marc Augé, que elogia uma obra de etnologia francesa, por ser “tão patente de verdade como um romance de Balzac”. Augé, retomando as idéias de Aristóteles, elogia a verdade do romancista, que “não tem a superstição da palavra verdadeira”, e que assim pode ascender a uma verdade superior, acima e além dos meros detalhes históricos. Com ironia, Todorov recomenda que historiadores e etnólogos ingressem, pois, na carreira de romancistas.

Prosseguindo em sua exposição da inversão de hierarquia, Todorov traz o exemplo de Stendhal, para quem o romance era um meio mais filosófico que a história, mais concreto que a filosofia. Também para Stendhal, a questão não era de eloqüência ou de eficácia, mas de verdade. O que remete novamente à Aristóteles, para quem a poesia é mais nobre e mais filosófica que a história. Mas não mais verdadeira, acrescenta Todorov.

Depois de expor as duas teorias:

1) os fatos não existem, não passam de interpretações;

2) os fatos existem, mas são menos importantes que as suas interpretações;


Todorov propõe que desçamos do admirável mundo das idéias e mergulhemos na “humilde realidade da vida cotidiana”. Indaga-nos ele se, sentados num banco de réus por um crime não cometido, aceitaríamos como princípio apriorístico que ficção e verdade sejam equivalentes ou que a ficção seja mais verdadeira que a história? Diante de alguém que negasse o genocídio nazista, aceitaríamos que o debate não tem sentido, já que tudo não passa de interpretações? Ou alguém que, como ele, lesse nas paredes de um edifício “Os imigrantes são ocupantes nazistas sem uniforme”, se contentaria em analisar a estrutura da metáfora ou em emitir um juízo moral sobre os valores sugeridos pelo tema? Alguém, diante disso, não procuraria saber se a afirmação é verdadeira ou falsa? Como lidaríamos com o paradoxo de aceitar a distinção entre ficção e realidade na vida prática e negá-la na teoria?

E como fica o estatuto da verdade ficcional? Estavam enganados os autores do passado que acreditavam que a poesia pudesse dizer a verdade? Estávamos enganados ao sentir a verdade humana dos versos de Baudelaire e dos romances de Balzac? Vamos perseguir os poetas, já que não dizem a verdade? indaga-se Todorov.

O problema todo está na noção de verdade. Não se pode confundir a verdade-adequação com a verdade-revelação. A primeira é tudo ou nada, ou algo é verdadeiro ou é falso. Já quanto a segunda, a questão é de graduação: algo é mais ou menos verdadeiro, mais ou menos falso. João matou Pedro é algo verdadeiro ou falso, independentemente das circunstâncias atenuantes. O mesmo quanto ao fato de se saber se os judeus saíram dos fornos de Auschwitz em forma de fumaça ou não. No entanto, se a questão remontar às causas do nazismo, as respostas somente podem conter mais ou menos verdade, pois se propõem a revelar a natureza do fenômeno e não em estabelecer fatos. Para Todorov, o romancista aspira a essa segunda categoria de verdade e não tem nenhuma lição a dar ao historiador quanto a primeira.

A distinção das categorias de verdade não resolve completamente o problema das relações entre ficção e história, pois nenhum historiador se atém exclusivamente aos fatos nem pode contentar-se com eles. Fatos são fatos, mas não são convincentes por si sós. O que obriga o historiador a tentar a interpretação, deslizando inevitavelmente para a segunda categoria, a da verdade-revelação. Um único termo, verdade, para tratar de coisas distintas, não é o gerador das confusões? Ao dizer que Balzac é mais verdadeiro que os historiadores não estamos colocando em jogo critérios distintos da outra verdade, distintos e necessariamente superiores? Critérios, afinal de contas, meramente morais. Se a verdade se submete à moral (ao juízo), se não há mais do que verdades pragmáticas, que tribunal julgará o que é mais verdadeiro ou mais filosófico que a verdade? O filósofo-rei? A maioria dos cidadãos? Onde isso vai dar, todos sabemos...

Na segunda parte de seu ensaio, Todorov conta duas histórias, com a intenção de comprovar suas conclusões e de matizá-las. Vamos sintetizá-las.

Em 1704, aparece em Londres uma obra sobre a ilha de Formosa. Nela se narra como os japoneses invadiram a ilha e como os formosenses sacrificavam 18 mil meninos menores de 9 anos por ano. Descreve os sacerdotes, o povo, o ritual, enfim.

O segundo tema do mesmo livro, narra a história de George Psalmanazar, nativo de Formosa, onde viveu até os dezenove anos, educado por um preceptor europeu. Um dia, o preceptor volta à Europa levando o jovem consigo. Lá, Psalmanazar descobre que se encontra em meio a jesuítas e que seu educador é um deles. Exigem sua conversão, ameaçam-no com a Inquisição, mas o rapaz foge. Nos Países Baixos, encontra-se com o exército inglês e acaba conhecendo um capelão escocês anglicano. Depois, vai a Londres, onde é recebido pelo bispo, que lhe dá proteção. Sob a tutela do bispo, Psalmanazar escreve seu livro.

O livro vira um sucesso e Psalmanazar se torna famoso e requisitado pela sociedade inglesa. A própria Royal Society o convida a uma reunião ordinária, no dia 2 de fevereiro de 1704. Cientistas expõem casos interessantes e chega enfim a vez de Psalmanazar falar. Os cientistas desejam indagar-lhe algumas coisas. O doutor Halley, descobridor do famoso cometa, pergunta-lhe, maldosamente, qual era a duração do crepúsculo em Formosa. Diante da resposta errada, Halley declara-o impostor. O jesuíta Jean de Fontanay, que conhecia a China, afirma que Formosa não pertencia ao Japão. Além disso, o religioso nunca ouviu falar que lá se fizessem sacrifícios humanos, e sequer consegue compreender a língua formosense utilizada por Psalmanazar.

Arma-se um grande qüiproquó. Psalmanazar escreve um prólogo, defendendo-se; apresentam-se outros viajantes, descrevendo outras inverdades sobre Formosa. Objetado sobre a impossibilidade da ilha de repovoar-se com o sacrifício anual de 18 mil meninos, ele explica que por isso mesmo a poligamia era permitida lá. As considerações de verossimilhança não detém a verdade. Suprimisse ou modificasse o seu relato como quisesse e mesmo assim Psalmanazar não poderia afirmar com certeza se era originário da ilha ou não e se seu relato era ou não verdadeiro.

Outro argumento é perguntar: “De que ângulo se conta?” ou “Qual o interesse de quem conta?” Assim, na Inglaterra, os livre-pensadores acataram a posição de Halley porque ele era um livre-pensador. Os que eram contra o cientista, acataram a versão de Psalmanazar. Os jornais se apoderaram da questão, também divididos. Psalmanazar foi colocado à prova: chegou a comer pedaços de carne humana. Mas ao invés de convencer, produziu horror e mais dúvidas. O conjunto dos desconfiados é já maior do que o dos crédulos.

Passam-se muitos anos e se começa a esquecer Psalmanazar e suas aventuras. Idoso, vivendo modestamente, tornando-se cada vez mais religioso, a história de sua juventude começa a pesar-lhe na consciência. Em 1747 (aos sessenta e oito anos), escreve um artigo anônimo sobre Formosa para uma enciclopédia geográfica. Afirma nele que Psalmanazar o havia autorizado a revelar que seu relato fora, em sua maior parte, fictício. Todorov observa que o reconhecimento da ficção exige nova ficção, a da diferença entre Psalmanazar e o autor do artigo. Depois, Psalmanazar escreve suas Memórias, terminadas em 1758 e publicadas em 1764, um ano depois de sua morte. Os historiadores posteriores também acrescentaram alguns detalhes sobre o caso.

Nas Memórias, Psalmanazar conta muitas coisas e esconde outras (apesar da religiosidade crescente). Como ele não disse seu verdadeiro nome nem onde nasceu, alguns o consideram gascão (porque os gascões eram tidos por mentirosos), outros judeu (por que era um homem andarilho?). Não parece japonês e fala qualquer língua. Seu primeiro livro fora escrito em latim. A verdade histórica parece ser a seguinte: Vive com sua mãe, na juventude, no sul da França e estuda num colégio jesuíta. Um dia, sua mãe o manda a casa de seu pai, que mora na Alemanha. O pai não quer nada com o rapaz e ele vai para a Holanda. No caminho, encontra uns religiosos e se faz passar por japonês convertido ao cristianismo. Acha divertida a história e inventa uma gramática, um calendário e uma religião. Adota o nome Psalmanazar a partir da Bíblia, de Salmanazar.

Ao chegar à Holanda, nova aventura: apresenta-se como pagão e adorador da lua, mas que se converteria se conseguisse proteção. Então encontra o capelão, que percebe tudo, mas que resolve tirar proveito da situação. O capelão escreve ao bispo e batiza Psalmanazar. Resultado: o capelão sobe de posto e o bispo traz Psalmanazar para Londres. Resta ao jovem escrever o livro, para confirmar suas afirmações. Recorda-se então do jesuíta Alejandro de Rodas, que vivera em Macau e tivera um auxiliar chinês, que depois virou jesuíta também. Da história de Alejandro, Psalmanazar retira muitos elementos, inclusive o nome para o seu preceptor. O mais são recordações de outros livros.

Hoje se sabe com certeza que a Descrição da ilha de Formosa é uma grande fraude, que Psalmanazar nunca esteve na China e que não se chamava Psalmanazar.

Diante disso, Todorov indaga se as descrições dos sistemas fonológicos, dos ritos observados e relatados por etnólogos podem ser situados com tanta segurança ao lado da linha que separa os testemunhos verdadeiros dos testemunhos imaginários.

Ironicamente, Todorov sugere que os leitores procurem na Biblioteca Nacional a história de Psalmanazar, pois ele próprio pode ter inventado tudo isso, a exemplo do que Borges fazia.

Todorov conclui afirmando que a descrição de Formosa nem possui verdade-de-adequação nem verdade-de-revelação. Mas, como ela não se apresenta como ficção, mas como verdade, não é ficção mas mentira e impostura. O que fizeram Halley e Jean de Fontenay não foi um interpretação, um discurso, para confrontar a interpretação e o discurso de Psalmanazar. Eles apenas dizem a verdade onde o outro mente. Para conhecer Formosa, afirma Todorov, é preciso fazer a distinção entre as duas coisas.

Como escrito histórico, a Descrição é uma falsificação. Como ficção, não extrai admiração porque não se apresenta como tal e porque seu autor não é extraordinariamente eloqüente. Mas, pergunta Todorov, e se fosse?

* * *

Cristóvão Colombo descobriu a América. Eis uma frase que todo menino conhece. No entanto, está cheia de ficções, afirma Todorov, ao passar a relatar a segunda história. A frase é eurocêntrica. Abandonada essa perspectiva, seria preciso dizer que a América foi invadida. Além disso, Colombo não foi o primeiro a atravessar o Atlântico. Mas o paradoxo sobre o qual Todorov irá se debruçar é o fato da América chamar-se assim, e não Colômbia. Para isso, há uma resposta histórica simples: em 1507 foi publicado um tratado geográfico, Cosmographie Introductio, em que se julga que os méritos de Américo Vespúcio teriam sido maiores que os de Colombo e portanto o continente merecia ter seu nome. Espanha e Portugal não aceitaram tão facilmente a proposta e continuaram chamando as novas terras de Índias Ocidentais até o século XVIII. A verdadeira questão, no entanto, é: Por que os letrados de Saint-Dié, responsáveis pela cosmografia citada, julgaram a contribuição de Américo mais importante?

Por que Américo foi o primeiro a tocar terra firme? A prova dessa façanha de 1497 é uma carta. E embora a carta seja verdadeira, Américo não foi o comandante da expedição e o mérito seria dele, como normalmente acontece. Além disso, não fora ele o primeiro a alcançar o continente. Juan Cabot (Giovanni Caboto) antecipou-se a ele. Por outro lado, devemos pensar no que os navegantes acreditavam ter feito e não no que fizeram. Imaginavam estar nas Índias. E por último, para Todorov, não é a anterioridade da viagem o que determina a homenagem do nome do continente.

Outra resposta se impõem: Américo fez o descobrimento intelectual do continente. As suas cartas de 1503 e 1506 afirmam e confirmam a consciência de ter encontrado um novo continente. O essencial é que compreendeu. Isto poderia ter feito teoricamente em casa, sem viajar.

Mas no plano intelectual do descobrimento, Américo foi antecipado por Pierre Martyr d’Anghiera, que sem sair de casa, dirigia cartas abertas onde resumia as notícias das viagens, já em 1493. Para ele, Colombo “descobriu essa terra desconhecida” e “encontrou todos os indícios de um continente até então ignorado”. Um ano depois, em carta a Borromeu, emprega até a expressão novo mundo. As cartas de Pierre Martyr não são privadas, são a fonte de informações dos europeus de então sobre as viagens extraordinárias.

O próprio Colombo, no plano intelectual, também antecipou-se a Américo. Na Relación aos reis de Espanha, em 1497, manifesta a certeza de ter pisado terra firme no Hemisfério Sul e não do Norte.

Pergunta-se, então: o que levou os letrados de Saint-Dié a dar toda a honra a Américo, mesmo sabendo das informações de Colombo e Pierre Martyr? Simplesmente porque ele escrevia melhor. Foi a qualidade literária das quarenta pequenas páginas das cartas que lhe deu a glória.

Para determinar a qualidade, Todorov passa a comparar uma carta de Colombo a outra de Américo. Primeiro, o crítico analisa a composição geral. A carta de Colombo não apresenta nenhum plano bem ajustado. Descreve a viagem, a natureza das ilhas, descreve seus habitantes. Depois, fala da geografia, acrescentando novas notas sobre os índios. Então passa ao capítulo dos monstros e conclui, afirmando que as terras são riquíssimas e agradece a Deus pelos descobrimentos que fez.

A carta de Américo, em contraste, revela alguém com formação retórica. Começa e termina com vários parágrafos que resumem o essencial. E é ali que se encontra a afirmação comovedora da novidade desse novo mundo. No interior desse marco, o texto se divide em dois: a primeira parte faz a descrição da viagem (com uma digressão auto-elogiativa) e a segunda descreve novos países, com três sub-tópicos anunciados já no final da primeira parte, concernente aos homens, à terra e ao céu. A carta de Américo tem uma forma quase geométrica, ausente em Colombo.

Enquanto que as cartas de Colombo são utilitárias, dirigidas aos reis de Espanha, as de Américo são escritas para “perpetuar a glória de meu nome”, “para a honra de minha velhice”. Suas cartas pretendem encantar e distrair seus amigos. O primeiro faz documentos; o segundo, literatura.

O narrador de Américo atrai a atenção do leitor com elogios, com sutilezas, com antecipações narrativas. Além disso, ele produz deliberadamente uma distância entre o narrador que é e o personagem que foi, convidando o leitor a introduzir-se exatamente nesse espaço criado. Quando vai justificar-se, recorre à experiência do próprio leitor. Colombo produz sempre a mesma imagem: a dele mesmo.

Também na escolha de temas, Américo se preocupa com o leitor. Os fatos observados tanto por ele quanto por Colombo não são diferentes. Diferente é a forma de apresentá-los. Américo cria a imagem do bom selvagem, associando a nudez, a ausência de religião e indiferença pela propriedade às representações antigas da Idade de Ouro. Para Colombo, os índios são desnudos, sem religião e, às vezes, canibais. Somente isso. Antes de opinar, ou julgar, por exemplo, o canibalismo dos índios, Américo proporciona ao leitor detalhes picarescos e encanta.

Por último, acrescenta Todorov, Américo elabora mais detidamente a questão da sexualidade. Enquanto Colombo se limitava a dizer que os homens (índios) se contentavam com uma única mulher, Américo enfeita e inventa, açulando a curiosidade e a lubricidade do homem europeu.

O texto de Américo agrada o conjunto dos leitores (europeu comum) e os sábios do tempo, com citações de autores antigos e modernos, Plínio, Dante, Petrarca. Américo afirma ser o único no barco a saber ler as estrelas e utilizar o quadrante e o astrolábio. Como os sábios de Saint-Dié não se comoveriam com a superioridade dos intelectuais-teóricos sobre os marinheiros-práticos? Como recompensa, ofereceram-lhe um continente. Não é por acaso que as imagens das gravuras da época apresentam-nos um Américo sábio.

Por fim, Todorov lembra que Américo apresentava a seus leitores um mundo referencial, conhecido, com poetas italianos, filósofos da Antiguidade e pouquíssimas referências cristãs. Colombo só apresenta imagens dos textos cristãos e das viagens de Marco Polo. Colombo é um homem da Idade Média; Américo, da Renascença. O mundo de Colombo é povoado de monstros, o de Américo de homens. Um é anacrônico, o outro é moderno.

As mesmas qualidades literárias de Américo aparecem em outro texto, no Quatuor Navigationes, analisado por Todorov também.

A partir dessa análise literária das cartas de Colombo e de Américo, Todorov compreende porque este teve um extraordinário êxito, não só em edições mas também na homenagem de Saint-Dié. A fértil descrição fez com que as cartas de Américo fossem as mais ilustradas da época. Assim, as primeiras imagens que procuram captar a especificidade americana são as que ilustram os relatos de Américo Vespúcio.

Para Todorov, foi isso que levou os sábios de Saint-Dié a escolhê-lo como nome do continente. Mesmo que inconscientemente.

Mas permanece uma questão: a justiça estética se apoia ou não na justiça histórica? O papel de Américo corresponde ao papel que ele criou para o personagem Américo? Afinal, o nome do continente glorifica a ficção ou a realidade? Todos os argumentos a favor de Américo poderiam aplicar-se a um texto completamente falso, como o de Psalmanazar.

O que nos leva ao problema da autenticidade das cartas. Quem é o verdadeiro autor delas? Essas cartas contam a verdade? As cartas podem ser verdadeiras, escritas por Américo, e, no entanto, podem ser pura ficção. Mas também podem ser falsas, atribuídas indevidamente a Américo, mas não obstante dizerem a verdade sobre o continente.

Mundus novus e Quatuor navigationes foram as únicas cartas publicadas em vida pelo autor. Depois da sua morte, outras apareceram. Duas são muito interessantes, pois se referem às viagens à América, uma de 18 de julho de 1500 e a outra de 1502. A primeira foi publicada em 1745 e a outra em 1789. Até recentemente, eram consideradas apócrifas. As outras, publicadas em vida, autênticas. Uma das razões para justificar esta decisão era uma diferença de estilo entre as cartas publicadas e as cartas manuscritas. Outra se baseava nas contradições internas das segundas, ou nas inverosimilhanças.

Em 1626, Alberto Magnaghi deu uma reviravolta na questão. Para este especialista, são autênticas as cartas manuscritas e falsas as publicadas. Além disso, Mundus Novus e Quatuor Navigationes contém tantas contradições internas e inverosimilhanças quanto as cartas manuscritas. Não é impossível imaginar que florentinos doutos, usando as cartas verdadeiras de Américo, tivessem produzido os livros para agradar o público leitor através de uma literatura divertida e instrutiva. É mais verosímil que uma publicação seja falsificada do que uma carta manuscrita, destinada ao esquecimento nos arquivos e encontrada somente duzentos e cinqüenta anos depois! Para Magnaghi, seus autores seriam escritores profissionais, que provavelmente nunca saíram de sua cidade.

Roberto Levillier combateu Magnaghi, dizendo que todas as cartas atribuídas ao explorador são autênticas... A questão do verdadeiro autor das cartas não interessa para Todorov, mas sim a veracidade das cartas.

A verossimilhança ou não de detalhes das cartas não resolvem o problema. Em Américo há exageros sobre longevidade e gigantismo dos índios. No entanto, as cartas de Colombo, estas sim incontestavelmente autênticas, contém até mais exageros que aquelas. Os viajantes observam o mundo desconhecido, mas também projetam sobre ele seus preconceitos e fantasmas. As contradições internas das cartas publicadas de Américo podem ser atribuídas ao tradutor do latim, ou até mesmo aos copistas (já que o texto original fora escrito em italiano, perdeu-se e não existe dele nenhum manuscrito).

Todorov compara as duas cartas publicadas e encontra contradições temporais, descritivas e numerais entre elas próprias. Também entre Mundus novus (1503) e a carta manuscrita de 1502 há problemas. Ambas são dirigidas a Lorenzo de Medici. Têm conteúdos parecidos, e datas de redação muito próximas. Não havia necessidade de uma segunda carta, ainda mais que Lorenzo havia falecido no intervalo entre uma e outra. (Mas Américo podia não saber de sua morte.) Mas repetem-se contradições internas.

A análise literária de Mundus novus não advoga em favor da autenticidade. A descrição da natureza é convencional, poderia ter sido descrita a partir de um gabinete de Florença. A parte cosmográfica é pobre e sua função parece ser de indício: veja que sábio sou (e ao mesmo tempo: presumo que tu, leitor, também sejas). A descrição dos índios não acrescenta nada ao que Colombo dissera dez anos antes, embora esteticamente seja bem melhor. O relato da viagem não apresenta nenhum feito memorável, nele não figura nenhum nome próprio. Nada, em Mundus Novus, indica tratar-se de um caso de verdade. Tudo, inclusive a forma harmoniosa do conjunto, advoga em favor da ficção (da qual Américo poderia ser o autor ou não).

Para Todorov, Quatuor Navigationes possui indícios de experiência real, mas seu relato foi retocado. Não pode, portanto, ser tomado como pura verdade, não pode ser tomado como documento digno de confiança. É uma obra feita tanto de mentira quanto de verdade.

Ao longo dos séculos, a balança ora pende para o lado de Américo Vespúcio, ora para o lado de Cristóvão Colombo. E o que se pode concluir disso? Que a verdade e falsidade são indistinguíveis? Vamos nos alegrar com o triunfo da ficção ou lamentar-nos?

Enfim, Todorov declara que sua opinião decepcionaria as duas correntes. Para ele, as viagens de Américo parecem incertas e sua descrição pouco digna de confiança. Contém elementos verdadeiros, mas nunca saberemos quais são. Américo, para ele, está do lado da ficção e não do lado da verdade. E o historiador deve preferir os testemunhos verdadeiros. Mas, por outro lado, Tzevetan Todorov considera os escritos de Américo incontestavelmente superiores aos de seus contemporâneos e sua insuficiente verdade de adequação acaba compensada por uma maior verdade de revelação. Não apenas da realidade americana, mas também do imaginário europeu. Assim, seu mérito é grande, mas não se encontra onde em geral tem sido procurado. Longe de se lamentar por Américo não ter ido mais que um fabulador, Todorov se alegra ao ver que metade da terra carrega o nome de um escritor, ao invés de carregar o nome de um conquistador qualquer, um aventureiro ou um mercador de escravos. A verdade dos poetas não é idêntica a dos historiadores, mas disso não se deduz que os poetas sejam uns mentirosos e que devam ser expulsos da cidade, muito ao contrário.

Não sabemos se Américo escreveu mesmo as cartas e se são exatamente as cartas que podemos ler hoje em dia, mas não cabe dúvidas de que seja ele o personagem-narrador e é como tal que deve ser homenageado. Todorov finaliza dizendo que se ele lamenta alguma coisa, é que Américo não tenha se contentado com esse papel de personagem metade imaginário e que tenha desejado ser, ademais, um autor de todo real: desprendida do livro, a fabulação se converte em mentira.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O livro das coincidências (1)

Para explicar o eterno retorno, Nietzsche dizia que num universo de infinitas possibilidades, todas as possibilidades são possíveis.

Imagino que a noção de predestinação tenha surgido na mente do homem primitivo ao observar as recorrências da natureza, o sol que insiste em retornar todos os dias, as marés que vão e vêm, as estações que se alternam, as estrelas que retornam periodicamente às posições que já ocuparam.

Coincidências são fascinantes. E ensinaram aos artistas que o paralelismo e a repetição reproduzem, na obra, o que à natureza apraz fazer no dia a dia.

Às vezes, numa sala de aula, dois ou três alunos trazem para leitura contos quase idênticos, com o mesmo plot, o mesmo título e os mesmos nomes de personagens. Jung imaginou-nos todos interligados pelo insconsciente coletivo. E a isto que os cientistas chamam de coincidência, ele preferiu chamar de sincronicidade. Que me perdoem os jungianos, mas o mestre era mais poeta que cientista. Aliás, a psicanálise inteira não passa de um ramo da literatura. 

Eu mesmo já vivi situações estranhas e exóticas, de coincidências tão significativas que fariam os menos céticos pensarem em destino, moira e forças determinísticas.

Neste O Livro das Coincidências trarei algumas dessas histórias. A primeira que lhes conto é leve.


O livro das coincidências (1)


Na tarde de 31 de dezembro de 2005, enquanto lia, com prazer e espanto, O poema pedagógico, de Anton Makarenko, encontrei uma referência a Ivan Ivanovitch Deníkin (1872-1947), general que comandou o Exército Branco contra os Bolcheviques entre 1918 e 1920. Por um instante, folhei o livro de Makarenko e me quedei a pensar no horror das guerras. Minha leitura foi interrrompida pela visita de uns primos de Marta, Pacheco e Letícia, que chegavam de Brasília.

Depois que eles partiram, já tarde da noite, aproximei-me da biblioteca e levei a mão às escuras. Veio-me um livro de contos de Scott Fitzgerald. Ao abri-lo ao acaso, dei com o conto "O amor à noite". E eis que encontro nova referência ao general Deníkin!

No último dia de 2005, o fantasma do general russo visitou-me duas vezes. Nunca mais retornou.

domingo, 30 de maio de 2010

Confissões

Recebi, na sexta-feira, a prestação de contas de direitos autorais do primeiro trimestre de 2010, de uma de minhas editoras. Um dos livros de que mais gosto, e ao qual dediquei um esforço especial, Logo tu repousarás também, contos, vendeu, em três meses, 3 exemplares! Isto mesmo. Do Oiapoque ao Chuí, vendi três exemplares. Receberei, sobre estas vendas, 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos)!

Esta é a realidade dos escritores brasileiros. Certo, talvez seja apenas a minha realidade. Na década de 80-90 do século passado, eu vendia milhares de exemplares de Caminhando na chuva, por semestre. Hoje, em editora grande, publicado em São Paulo, vendo entre 25 e 40 exemplares por bimestre. Vendo hoje cinqüenta vezes menos do que vendia há uma década.

O que houve? Por que os meus leitores me abandonaram?

Em primeiro lugar, porque os meus textos ficaram obsoletos. A realidade, e é sobre isso que escrevo, não tem mais apelo mercadológico. Quem se interessa pela vida de sem-terras e pequenos agricultores, e outros infelizes e deserdados que habitam a minha Pau-d´Arco imaginária? Tentei o assassino em série, migrante na capital, e não acertei. Escrevi um livro complicado, demoníaco, como sugeriu um crítico local, O escorpião da sexta-feira, que assusta, incomoda, e os novos leitores querem amenidades. Na era do hedonismo e da imortalidade, lembrar às pessoas que um dia elas irão repousar sob sete palmos de terra, como se dizia antigamente, é fazê-las largar o livro antes que ele queime as mãos desavisadas.

Em segundo lugar, porque ninguém mais compra livros. Ao menos não os meus! Enquanto este blog já foi lido por mais de 12 mil pessoas nos últimos três meses, vendi 3 exemplares de meu melhor livro de contos!

Em terceiro lugar, porque o número de escritores, na última década, multiplicou-se geometricamente, enquanto que o número de leitores (de livros) aumenta aritmeticamente, se é que aumenta. (Suspeito de todas as informações que dizem que os livros estão vendendo cada vez mais). Provei, estatisticamente, que a Feira do Livro de Porto Alegre perdeu, no último lustro (alguém ainda se lembra que isso significa qüinqüênio?), mais de 30 por cento de seus compradores.

Pela inflação no mercado brasileiro de escritores, sou diretamente responsável, pois minhas oficinas lançam no sistema literário dezenas de excelentes novos autores e autoras a cada ano. Há 15 anos, um grande escritor dos pampas me disse: “Pô, tu estás jogando contra a gente! Daqui a pouco, não teremos mais leitores”.

Ele tinha razão.

Só me resta, agora, convencer aos meus alunos a comprarem livros. Alguns, não compram sequer os lançamentos dos colegas. Não conheço tipo social menos solidário que escritor. Eu mesmo, que compro uma boa quantidade de livros de meus alunos em seus lançamentos (mas somente obra que tenha passado pelo meu crivo editorial), não o faço por caridade. A despesa que tenho já está embutida no preço da mensalidade.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O poncho (conto)

Na tarde em que regressava a Pau d’Arco, sob os guascaços de uma chuva lateral e violenta, chuva que principiara no dia anterior e que continuaria por mais uma semana, Fernando Kõnning, meu avô, usava ainda o poncho que recebera de presente de Angélica, a mulher que tinha amado com urgência, antes de partir, e quase em desespero depois, que é como se pode amar um espectro. Nem a doçura, a suavidade, o carinho e o amor de Lídia, minha avó, o protegeram das emanações fantasmáticas do passado, dos pesadelos reiterados, da dor sem fim das coisas que não chegam à plenitude, frutas arrancadas à arvore da vida antes do amadurecimento. Calha, a algumas mulheres, o destino de recolher homens destroçados, cuidar de suas feridas, alimentá-los e protegê-los até que readquiram as forças, até que voltem a acreditar na própria capacidade de conquista e sedução. Quase sempre, essas benfeitoras, as mulheres ternas e compassivas, as enfermeiras da alma, recebem em paga o abandono e o desprezo. Fernando, ou porque estivesse cansado, entrava já na meia-idade quando se casou com Lídia, ou porque tivesse desenvolvido por ela algo mais que ternura, aquietou-se, recolheu-se à vida caseira, à felicidade miúda e cotidiana. Passava os dias no alambique, que herdara do pai, a produzir a melhor aguardente da região. Nunca se livrou da culpa, nem da saudade. Nos sábados quentes e chuvosos, quando o cheiro de terra molhada se espalhava pelo ar e a cicatriz na alma pulsava, ele sentava-me aos seus pés, na varanda, e me contava a sua história.

“Na tarde em que regressei, depois de cinco anos e três meses de ausência”, ele principiava a narrativa, concentrado, lento, ausente, como se mastigando as palavras, “compreendi que a saudade, ao contrário do que deveria ser, aumenta mesmo é na direta proporção da proximidade do ser amado.”

Distante da noiva, o amor de meu avô diluiu-se, esgarçou-se, perdeu-se nas sombras dos becos escusos e das ruelas mal-iluminadas de Uruguaiana, Montevidéu e Buenos Aires, e entre as muitas mulheres com quem dividiu catres e lençóis manchados, mas nenhuma esperança. A centenas de léguas, a mulher de olhos negros, de rosto magro e saliente, rosto emoldurado por cabelos longos e lisos, a mulher de fronte alta e orgulhosa transformara-se apenas num ritmo cadenciado, mais som que sentido, a persistir na memória com a renitência das chuvas de abril. No entanto, ao se aproximar do povoado natal, o rosto esquecido retornava tão vivamente à consciência que parecia vê-la sorrindo no horizonte leitoso; no resfolegar do cavalo como que ouvia a respiração sincopada da noiva, seus soluços secos diante do portãozinho na tarde da partida, e no taconeo dos cascos reconhecia a voz da amada: meu menino, eu te espero.

“A hora era a do crepúsculo, e imaginei divisar ao longe o casario dos arrabaldes de Pau-d’Arco. Senti um aperto na garganta, porque sabia que, no meio daquelas luzes desmaiadas, em duas delas, minha mãe e minha noiva me esperavam. O tordilho avançava lentamente, com a cabeça inclinada para baixo e para a esquerda, protegendo-se do vento e da chuva. A distância até a casa encolhia e o tempo, parecia-me, comprimia-se também, e já não eram seis anos, ou quase seis anos, pequinita, o tempo que eu estivera afastado de Angélica, mas três semanas, ou menos. Longe, eu estivera muito longe, porque longe é viajar sozinho. Agora, sentia-a ali, próxima, diante dos meus olhos, a fitar-me com dor e desolação no portãozinho de madeira, recusando-se a compreender que eu precisava partir para a revolução, cumprir meu destino ao lado dos outros dezessete homens que também partiriam, comandados por José Tarquino Rosas”.

Ele inclinava a cadeira de balanço para trás, até o limite, e respirava com a dificuldade dos velhos asmáticos e fumantes. Talvez quisesse perguntar-lhe por que os homens colocam tudo acima do amor, mas eu era uma guria tímida e assustada, incapaz de falar diante de um adulto, mais ainda dele, que não gostava de ser interrompido. Depois, quando cresci, a pergunta perdeu sentido, distanciei-me dos costumes de outras mulheres, como minha mãe e minha avó, deixei Pau-d’Arco com a promessa de não retornar nunca mais àquela terra maldita. Mas ele, ele que tinha partido, que conseguira desprender-se dos pegajosos cheiros da infância, dos ruídos familiares, da modorra das tardes de verão, dos liames invisíveis que tecem pais, irmãos, primos, amigos, ele retornava, atraído pelos dedos longos e delicados que haviam tecido o poncho que o envolvia, dedos que desejava em seu rosto hirsuto, enquanto sentia no nariz, na testa, no queixo, a violência da chuva, chuva que tornava o pano cardado pesado, mais grosso e mais áspero. Era um homem bom, justo e generoso, era assim que

se sentia, é assim que se sentem os homens que amam, e que desejam a mulher inalcançada, mesmo se cruéis, traidores e mesquinhos. Era um homem simples, de hábitos regulares, sem fanatismos, exceto a política, que regressava ao lar, um homem que se sentia protegido pelas forças do bem, sobrevivera a prisões, emboscadas e vendetas da revolução, não sobrevivera?

O cavalo resfolegava, desviava-se dos valetões produzidos pelas carroças carregadas de pesados dormentes. Fernando concentrava-se no caminho. Ou, tantos anos depois, imaginava ter se concentrado. Súbito, e ele o mostrava com um gesto repentino de mão, que me assustava, sentiu um deslocamento quase imperceptível a sua frente, como que a projeção de uma sombra no estradão escuro e encharcado, e um puxão nas franjas do poncho, seguido de um suave dedilhar de acordeona.

É o vento, ele pensou, e era, sim, o vento, era só o vento que soprava com fúria, que arcava os galhos das árvores, que zumbia nos ouvidos e o forçava a viajar com os olhos espremidos, estreitados quase a ponto de nada ver.

Tudo vem em ciclos, correntes alternadas, pulsão e repulsão, onda e repuxo, e o vento também. Depois de mostrar força, o vento arrefeceu e, por entre a espessa cortina de chuva, meu avô divisou, com espanto, mas não sem alegria, o salão de bailes da Esquina Grubert e percebeu que se equivocara, na verdade tinha tangenciado o povoado de Pau-d’Arco, tomara o estradão que conduzia à cidade de San Martin, hoje desaparecida sob as águas da barragem.

“Era como se o cavalo tivesse girado quarenta e cinco graus”, ele afirmava, quase cinqüenta anos depois, girando também a cabeça para o indicar.

“Um homem cansado, um homem faminto, um homem ansioso pode tomar as coisas pelo que não são, a aparência pela realidade, especialmente num entardecer chuvoso, não pode?”, indagava, a buscar na inocência da menina sentada aos seus pés um ponto de apoio contra o absurdo e a loucura, contra a fenda que se produzira no pano do Universo.

No mesmo instante, ainda antes de sofrenar o cavalo e retomar o caminho que o levaria, finalmente, para casa, recordou-se de que fora ali, naquele mesmo lugar, que vira Angélica pela primeira vez havia mais de sete anos.

Ela estava sentada entre duas amigas, e ria, ria com gosto, mostrava a dentadura branquíssima, jogava a cabeça para trás, sacudia os ombros, feliz, iluminada, um pintassilgo alvoroçado. Fernando não era alto, nem seus ombros largos, mas seus olhos tinham gume de faca assassina. Angélica sentiu dor no plexo solar e uma dormência nas pernas. Demorou a reagir ao braço oferecido. Depois dançou leve, flutuou pelo salão. E amou com a intensidade das pombas, das codornizes, das garças-pequenas. Fernando deteve-se, indeciso, um momento, apurou o ouvido e, apesar do vento, apesar do repique da chuva nas abas do chapéu, reconheceu, nos floreios da acordeona, que outra vez se fez ouvir, os compassos da milonga que o levara a encorajar-se e a convidar Angélica para dançar.

Estava exausto, cavalgara o dia inteiro, queria apenas um banho quente, um café com cardamomo, afagos de mãe e abraços de pai, queria chegar logo a Pau-d’Arco e rever a noiva, acertar com os sogros os detalhes do casamento, a lista dos convidados, o lugar em que fariam a festa, mas a música triste e arrastada continuava a colear na noite, a arrastar-se sob a chuva torrencial, a perder-se na mataria fechada e a doer no peito de meu avô como uma chaga.

O amor precisa de suportes para ser revivido, o amor precisa agarrar-se às coisas, aos objetos, à luz oblíqua da lua, às rosas murchas, às páginas amarelecidas das cartas e dos diários, ao nitrato de prata das fotografias para sobreviver à voracidade do tempo e do esquecimento. Como que por instinto, ou por cacoete adquirido nos anos de andanças pelo continente, meu avô alisou o poncho e sentiu nele, no forro de baeta e em si mesmo, o amor vivo, quente, o amor expectante.

“Guardei o poncho, pequenita, a vida inteira. Será teu, quando eu me for. Pra te proteger da solidão e das doenças”, ele murmurava, enchendo-me de esperanças de um dia possuir o objeto mágico e salvar-me com isso do ciúme dos deuses, porque eu ainda não tinha compreendido que fora o poncho, exatamente o poncho, que o submetera à solidão irredimível e à doença mais perniciosa e letal, a de viver com os olhos voltados para o passado.

Fernando puxou as rédeas, roseteou o tordilho nas ilhargas, mas o cavalo como que resistiu, deu dois arrancos para a frente e estacou diante da porta iluminada do salão de bailes. Vencido, meu avô decidiu desmontar. Ao retirar o pé do estribo, já no chão, sentiu algo roçar no poncho outra vez e supôs que fosse um ramo de espinilho, ou a própria roseta da espora. Amarrou o tordilho no palanque e, antes de entrar, ao virar o rosto para trás, deu-se conta de mais um engano. Já era noite fechada, o entardecer fora ilusão dos desmaios de luz da lua escondida por detrás de nuvens pesadas contra o vapor da chuva sobre a terra quente.

O salão fervilhava, os casais rodopiavam na pista, a copa estava atulhada, ele precisou meter-se ali, meio à força, usando os braços para abrir caminho, queria entregar o revólver e a faca, que era do costume da época desarmar-se, abandonar as armas maiores e mais visíveis.

“Sempre se escondia um ferro curto no cano da bota, que ninguém era tolo pra morrer de descuido”, ele dizia, armando em mim a falsa expectativa de uma luta de punhais, que não viria.

“Deixei as armas, o chapéu e o poncho na copa e aproximei-me da pista de danças. Tinha as roupas molhadas, mas não sentia frio, não ainda, e, além disso, a aguardente pura, de alambique, ajudava a esquentar o corpo”, ele continuava.

“No primeiro trago, reconheci a cachaça produzida pelo meu pai. Mais que a boca, a ardência queimou o espírito”, dizia, fitando-me com seus olhos ternos, compassivos e desesperadamente azuis. Para não fraquejar, ou porque fraquejava, meu avô batia as pálpebras, coçava a cabeça, ajeitava-se na cadeira de balanço.

“Passei e repassei os olhos pelos grupos de mulheres, atravessei o salão muitas vezes. Eu não pensava em dançar, doíam-me as costas, os braços, as pernas. Sequer sabia por que tinha entrado, deixara-me arrastar pelo cavalo, pela luz trêmula que fugia da porta principal, pela magia da milonga e, por que não dizer, pela saliva abundante que a simples lembrança da aguardente me provocava. O arruído, o movimento e a cachaça foram me prendendo e eu fui ficando. Aquilo, e o que viria depois, tinham hora para acontecer? Se eu tivesse partido antes, ou se não tivesse entrado no Salão Grubert, a coisa teria acontecido? Duas, talvez três horas mais tarde, no instante mesmo em que decidi retornar à estrada, arregalei os olhos de susto”, ele continuava e abria bem os olhos azuis e profundos que eu tanto amava, “arregalei os olhos de susto e não consegui acreditar no que vi. Sentada no meio de um grupo ruidoso de moças, com o cabelo em coque, um vestido florido que me era vagamente familiar, vestido que reconheci somente depois, Angélica sorria, ou quase”.

Com a sensação de que não vivia aquele instante, mas outro, afastado no tempo, Fernando aproximou-se da mulher que amava, a mulher que tinha deixado em Pau-d’Arco havia quase seis anos. Tímida, extremamente tímida, e silenciosa como um riacho no pampa, ela não ousou levantar os olhos para o noivo, mas aquiesceu em dançar. Ele não estranhou, porque era assim, tinha sido sempre assim, e assim fora desde o primeiro encontro. A intimidade seria construída depois, depois das bênçãos, depois dos fogos, depois dos festejos de casamento. Angélica ouviu calada a narração dos feitos revolucionários, a violência dos combates e das degolas, o frio do minuano nos acampamentos, a fome, a febre dos soldados feridos, o delírio e a saudade. Não indagou as razões do noivo, que não regressou com a coluna de José Tarquino Rosas, o Intendente de San Martin, ao final dos combates.

“O cheiro”, diria meu avô, “o cheiro não era o mesmo, minha noiva tinha cheiro de madressilva, mas naquela noite ressumava à lavanda”.

Entre os muitos equívocos de um homem cansado, somava-se mais este. O que, de fato, Fernando sentiu, foi o cheiro de mofo do vestido que estivera guardado em sua longa ausência, dobrado na cômoda, esquecido entre as anáguas e os corpetes. Sim, o vestido tinha estado enclausurado, longe da luz, como a própria noiva, que permanecera em casa nos dias de abandono. Ela resistira ao coro das amigas e dos parentes, que afirmavam, com absoluta certeza, que o noivo não regressaria, que estava casado em Alegrete ou Santiago do Boqueirão. Angélica mantivera-se fiel até nisso, no direito que tinha de se divertir, de tornar
mais leves os dias pesados. O cansaço, com certeza tinha sido o cansaço, ou a emoção de tê-la outra vez contra o peito, impediu Fernando de fazer a pergunta óbvia: Como é que ela sabia que o encontraria ali, no Salão Grubert? Ou então: Por que esperara tanto para regressar ao mundo das festas e dos bailes, ela que era tão jovem e tão linda, e por que só o fazia naquela noite, noite em que ele retornava?

Dançaram, ou ele dançou com ela, já que Angélica se deixou levar.

“Contei-lhe tudo e foi como se não tivesse me ouvido, sequer uma queixa diante das traições, um murmúrio sequer de espanto frente às mortes e aos perigos. Suas mãos frias, às vezes, se crispavam e eu podia sentir as suas unhas nas minhas costas”, ele prosseguia para, em seguida, mergulhar num silêncio aterrador.

“Não me perdôo por não ter percebido”, ele tornava a falar, muito tempo depois, contendo os soluços. Se delongava, meu avô, na descrição dos volteios, das marchas e contramarchas, dos passos que ambos executaram naquela noite que ficaria para sempre impressa na sua memória, e na minha.

Angélica tinha a boca pequena, os dentes um pouco projetados para a frente, um sorriso esquivo, a tez leitosa e pintalgada de sardas, os braços longos e finos, magra, muito magra, e mais alta que Fernando. Dançaram, os dois, polcas, valsas, chimarritas, bugios, xotes, milongas e chamamés, até que os músicos guardaram os instrumentos.

“Súbito, senti um frio no estômago, minha vista se escureceu. Percebi, então, que Angélica estava sozinha no baile, sem os seus pais, que sempre a acompanhavam. Teria se transformado numa dessas mulheres de vida fácil, que percorrem os salões atrás de forasteiros que não as conheçam?”

O convívio com prostitutas, que seguem as tropas, ou com as que os soldados buscam nos arrabaldes das cidades, levou meu avô a julgar mal a mulher que o amava. Fechou-se num mutismo infantil e despropositado, e perdeu, assim, a oportunidade de aproximar-se, pela última vez, da noiva.

Apanhou suas coisas na copa, as armas, o chapéu e o poncho, e arrastou-a para fora. Chovia ainda, a mesma chuva lateral do entardecer, mas já sem violência. Para protegê-la, vestiu-a com o poncho.

“Não sei se foi a luz do salão, ou talvez a claridade da madrugada, mas Angélica ficou como que aureolada, a tremer sob o tecido que ela própria havia tramado. Dela partira e a ela retornava. Era como se um ciclo se fechasse e a chuva que despencava fosse a mesma chuva que despencara na tarde da minha partida.”

Fernando enfiou o pé no estribo, montou, deu a mão à noiva, que saltou às suas costas.

“O poncho é teu outra vez”, ele disse, rude, cego, enlouquecido de ciúme, tentando feri-la, como se com isso devolvesse o compromisso, como se o objeto que a protegia da intempérie fosse o símbolo da aliança que se estabelecera entre eles. Meu avô não podia imaginar que Angélica viesse a devolver-lhe o presente, com o mesmo amor e carinho da primeira separação, ainda na tarde desse dia que então se inaugurava.

Entre o Salão Grubert e o povoado de Pau-d’Arco, Fernando remoeu um ódio tolo, construiu um passado falso para Angélica, passado que o redimia de seus erros e arrefecia a sua própria culpa. Se não fora capaz de esperá-lo, ele pensava, era indigna de seu amor. Assim, à tarde, quando visitasse a família da noiva, devolveria a aliança, romperia os laços de honra. Imaginou-se em casa, em seu quarto de solteiro, recolhendo, numa caixa de sapatos, as cartas, as abotoaduras, um prendedor de gravata, um marcador de livro de metal, uma espátula e outras quinquilharias com que os namorados costumam tutear-se. São tolos, os amantes, que imaginam devolver os sentimentos com as coisas devolvidas.

Diante do portão da casa de Angélica, depois que ambos desmontaram, a crise de desconfiança cedeu. Odiou a si mesmo por tê-la julgado infiel. Não foi capaz de suportar a própria comoção e chorou. Terna, ela recolheu suas lágrimas, abraçou-o com força, sempre em silêncio. Era como se ele não tivesse partido, como se continuasse ali, tentando consolá-la, como se a quisesse convencer ainda da importância da revolução. Por um instante, teve a sensação de que nada havia acontecido, a mesma chuva insistia em obscurecer o mundo, o mesmo medo de não tornar a vê-la enrodilhado no estômago, a mesma dor do abandonador. Fernando fechou os olhos por um instante e quando os reabriu percebeu-se sozinho na manhã recém-nascida. A chuva tinha cedido, ouvia os pássaros no arvoredo atrás da casa e cães a ladrar nas cercanias. Súbito, uma sensação de calafrio percorreu seu corpo, como se estivesse sendo observado. Voltou-se para a janela do primeiro andar e viu Angélica de relance, atrás da cortina que se fechava, sem saber que aquela imagem reproduzia outra, uma que não fora capaz de ver, porque não fora capaz de olhar para trás na tarde em que partira.

Como se fragmentasse o tempo da narrativa, meu avô abandonava a cadeira de balanço, dava algumas passadas pela varanda, escorava-se numa das vigas que sustentavam o alpendre. Depois, elidindo o trajeto entre a casa de Angélica e a de seus pais, ignorando a pintura de um café da manhã de filho pródigo e os sonhos de um sono justo em que mergulhara das nove às três horas da tarde, descrevia-se outra vez diante do portãozinho de madeira, sob a mesma chuva, mas com disposição de espírito muito diferente. Tinha sido injusto, precipitara-se em conclusões odiosas, felizmente não verbalizadas. O amor tudo pode suportar, exceto as palavras de fogo, aquelas que sabemos ferinas, maldosas, que atingem o outro no que ele tem de mais recôndito e sagrado. Estava banhado, vestira o terno guardado com zelo pela mãe, fizera a barba, perfumara-se.

“Toquei a aldrava várias vezes, até ser atendido pelo velho Armando. Um fantasma, se eu fosse um fantasma, teria causado menos impacto”, dizia meu avô e alisa va a face, como que a certificar-se da própria corporeidade.

A cena se repetiu diante de Luísa, a mãe de Angélica, cuja perplexidade transformou-se em demorado pranto. Era justo que se assustassem, era justo que resistissem à sua volta. Tinha decidido não explicar nada, fazer de conta que o tempo da ausência não fora tão dilatado assim. Agora, ali, ele próprio se perguntava: Por que não regressara antes? Depois da assinatura da paz em Pedras Altas, envolvera-se em negociatas, contrabandos, jogatinas. E se afastara cada vez mais de Pau-d’Arco. Os pais da noiva, recuperados, menos nervosos, convidaram-no, enfim, a passar à sala.

“Sentei-me no sofá e suspirei aliviado. Agora sim, agora eu podia dizer que estava em casa”, dizia Fernando, a cofiar o bigode branco e bem-aparado. Por mais que se esforçasse, não conseguia reter as lágrimas, que desciam pelas rugas de seu rosto, rugas que eu tomava por cicatrizes da revolução.

“Não se ouvia a chuva, que persistia, mas pelas persianas entreabertas podia-se ver a tarde nebulosa”.

Na sala, com seu balançar implacável, o pêndulo do relógio contabilizava as perdas e os ganhos, as palavras e os silêncios, os desejos e as indiferenças dos homens, das mulheres, dos bichos e das coisas. No princípio, a conversação remanchava, como que reboujava ao redor de ninharias, comentários a respeito da estação chuvosa, a certeza de quebra na safra de grãos, os planos de Armando de comprar um automóvel.

“Aquilo dava nos nervos, parecia proposital. A mãe de Angélica sequer me encarava e o pai me confundia com um vizinho, um amigo, um parente distante”.

Algum tempo depois, Luísa levantou-se, dirigiu-se à cozinha. Meu avô, sentado no canto esquerdo do sofá, esperava, impaciente, a descida da noiva. Apurava o ouvido, tentava perceber os ruídos costumeiros no segundo andar, os passos leves no assoalho, o ranger de portas, os estalidos secos no madeirame dos degraus, e nada.

Luisa retornou com café e bolachas de polvilho, que depositou sobre a mesa de centro.

“Pensei que Angélica não estivesse em casa, que saíra para visitar alguma amiga, por isso esperei ainda meia hora, talvez mais”.

Tempo que se dividiu, para meu avô, em intermináveis ponderações de Armando sobre a situação política do Estado, as movimentações de Getúlio Vargas, a crise da bolsa, a situação do banco pelotense, questões que, naquela tarde, perdiam o sentido para o homem apaixonado que desejava, apenas, rever a noiva e entregar-se, enfim, ao único assunto que justifica a existência.

“Bem”, ele disse, fazendo estalar a mão espalmada na coxa, “estou aqui para arreglar as coisas para o casamento”.

E, então, um grito, o que se ouviu foi um grito, de dor, de desespero, de ódio represado, e uma grande movimentação na sala. Sem que atinasse com o que estava acontecendo, Fernando viu Luisa subir os degraus da escada quase correndo, seguida de perto pelo marido. Meu avô quedou-se no primeiro andar a ouvir, badalada por badalada – pois contou uma a uma –, o relógio marcar cinco horas da tarde.

“Nunca mais vi Luísa, que me odiou até a hora da morte. Não a condeno por isso, eu teria feito a mesma coisa”.

Quando Armando desceu, meu avô soube a verdade:

“Todos os dias, ao entardecer, por mais de dois anos, minha filha ficava diante do portãozinho, a mirar a estrada que tinha te levado. Ela esperou, com a paciência e a dedicação que só as mulheres sabem ter, enquanto suas pernas conseguiram sustentar o corpo fraco. Depois, quando a tísica avançou e não conseguia ficar longe da cama por muito tempo, contentava-se em fitar a lonjura pela janela, a murmurar, já sem juízo e em agonia, o teu nome”.

Chovia, chovia sem parar, uma chuva imemorial, definitiva, como se os céus quisessem lavar a terra de todo o mal. Primeiro, Fernando se desconsolou, ganiu de desespero, não acreditou que fosse verdade, quis subir a escada para ver Angélica, e depois convenceu o pai da noiva a levá-lo até o cemitério, queria ver com os próprios olhos a terra que a tinha recebido.

“Fomos a pé, no meio do temporal que desabava sobre o vilarejo”.

Hoje, mais de sessenta anos depois, imagino os dois homens, inclinados sob a chuva e o vento, percorrendo as alamedas do cemitério. À imagem agrega-se a lembrança de mim mesma, pasma, lívida, sem fôlego, sentada diante do velho, a ouvi-lo ajustar contas com o passado. Sinto, consigo sentir, o cheiro de terra molhada, e ouço, consigo ouvir, o ribombar dos trovões. Daqui onde estou, nesse quarto repleto de livros e dos meus próprios amores e fantasmas, posso ver o poncho, que herdei, dependurado atrás da porta. Impressiona-me que, apesar dos anos, das revoluções, das tempestades e das insolações, seu pano ainda resista. Sempre que o minuano açoita esta cidade que escolhi por casulo e tumba, visto-o e estremeço, que me comovem a ternura e a grandeza com que foi trançado. Sinto em sua trama os dedos longos e finos de Angélica, e, na sua aspereza, os sobressaltos de uma longa espera.

O que de amor foi tecido, de amor permanece.

Sobre a tumba, encharcado, mas delicadamente estendido, meu avô reencontrou o presente que recebera da noiva na véspera da partida.

(In: KIEFER, Charles. O pêndulo do relógio & outras histórias de Pau-d´Arco. São Paulo: Manole, 2009).