sexta-feira, 4 de junho de 2010

A questão da "verdade" em literatura

Ficção e Realidade

Ao analisar as relações que se estabelecem entre ficção e realidade, Tzvetan Todorov recorda inicialmente uma afirmação de Paul Valéry, que se poderia chamar de a questão do efeito de verdade. Para o poeta francês, quando contemplamos um retrato de personagem antigo, inclinamo-nos a tomá-lo por verdadeiro, ainda que não se tenha nenhum meio de comprovação de sua veracidade. O mesmo se estenderia aos livros, já que os leitores não dispõem de mecanismos para distinguir entre livros de “testemunhos verdadeiros” dos de “testemunhos imaginários”. Estabelecer se os autores são inventores ou repórteres ficaria a critério do leitor. Todorov, brilhantemente, desnuda o que a proposição de Valéry esconde: o problema não está em declarar se estes ou aqueles são mais ou menos verdadeiros, mas em perceber o efeito de verdade, a verossimilhança, o efeito de realidade que cada texto instaura.

No entanto, Valéry pensava nos efeitos sobre o leitor e não na veracidade ou não da história. Alguns, ignorando esse detalhe, tomam a árvore pela floresta: acreditam que não existam fatos mas somente interpretações dos mesmos. Idéia que tem origem em Nietzsche, e que propõe uma perigosa generalização: além de inexistirem fatos, existem somente discursos sobre fatos. Conseqüentemente, não há verdade do mundo, mas somente interpretação do mundo.

Todorov lembra que não há nenhuma novidade na querela. Platão já provara que nos tribunais a eloqüência – e a conseqüente adesão dos juízes ao orador – era mais importante do que a verdade. Platão apenas opõe-se aos autores modernos, no sentido de recusar-se ao elogio do poeta e de seus “testemunhos imaginários”.

Além dessa primeira interpretação a respeito das relações entre ficção e história, o mundo moderno conhece outra: a de dizer que a ficção é mais verdadeira que a história. O que Todorov considera uma inversão de hierarquia e uma radicalização.

Como exemplos dessa inversão, Todorov cita Marc Augé, que elogia uma obra de etnologia francesa, por ser “tão patente de verdade como um romance de Balzac”. Augé, retomando as idéias de Aristóteles, elogia a verdade do romancista, que “não tem a superstição da palavra verdadeira”, e que assim pode ascender a uma verdade superior, acima e além dos meros detalhes históricos. Com ironia, Todorov recomenda que historiadores e etnólogos ingressem, pois, na carreira de romancistas.

Prosseguindo em sua exposição da inversão de hierarquia, Todorov traz o exemplo de Stendhal, para quem o romance era um meio mais filosófico que a história, mais concreto que a filosofia. Também para Stendhal, a questão não era de eloqüência ou de eficácia, mas de verdade. O que remete novamente à Aristóteles, para quem a poesia é mais nobre e mais filosófica que a história. Mas não mais verdadeira, acrescenta Todorov.

Depois de expor as duas teorias:

1) os fatos não existem, não passam de interpretações;

2) os fatos existem, mas são menos importantes que as suas interpretações;


Todorov propõe que desçamos do admirável mundo das idéias e mergulhemos na “humilde realidade da vida cotidiana”. Indaga-nos ele se, sentados num banco de réus por um crime não cometido, aceitaríamos como princípio apriorístico que ficção e verdade sejam equivalentes ou que a ficção seja mais verdadeira que a história? Diante de alguém que negasse o genocídio nazista, aceitaríamos que o debate não tem sentido, já que tudo não passa de interpretações? Ou alguém que, como ele, lesse nas paredes de um edifício “Os imigrantes são ocupantes nazistas sem uniforme”, se contentaria em analisar a estrutura da metáfora ou em emitir um juízo moral sobre os valores sugeridos pelo tema? Alguém, diante disso, não procuraria saber se a afirmação é verdadeira ou falsa? Como lidaríamos com o paradoxo de aceitar a distinção entre ficção e realidade na vida prática e negá-la na teoria?

E como fica o estatuto da verdade ficcional? Estavam enganados os autores do passado que acreditavam que a poesia pudesse dizer a verdade? Estávamos enganados ao sentir a verdade humana dos versos de Baudelaire e dos romances de Balzac? Vamos perseguir os poetas, já que não dizem a verdade? indaga-se Todorov.

O problema todo está na noção de verdade. Não se pode confundir a verdade-adequação com a verdade-revelação. A primeira é tudo ou nada, ou algo é verdadeiro ou é falso. Já quanto a segunda, a questão é de graduação: algo é mais ou menos verdadeiro, mais ou menos falso. João matou Pedro é algo verdadeiro ou falso, independentemente das circunstâncias atenuantes. O mesmo quanto ao fato de se saber se os judeus saíram dos fornos de Auschwitz em forma de fumaça ou não. No entanto, se a questão remontar às causas do nazismo, as respostas somente podem conter mais ou menos verdade, pois se propõem a revelar a natureza do fenômeno e não em estabelecer fatos. Para Todorov, o romancista aspira a essa segunda categoria de verdade e não tem nenhuma lição a dar ao historiador quanto a primeira.

A distinção das categorias de verdade não resolve completamente o problema das relações entre ficção e história, pois nenhum historiador se atém exclusivamente aos fatos nem pode contentar-se com eles. Fatos são fatos, mas não são convincentes por si sós. O que obriga o historiador a tentar a interpretação, deslizando inevitavelmente para a segunda categoria, a da verdade-revelação. Um único termo, verdade, para tratar de coisas distintas, não é o gerador das confusões? Ao dizer que Balzac é mais verdadeiro que os historiadores não estamos colocando em jogo critérios distintos da outra verdade, distintos e necessariamente superiores? Critérios, afinal de contas, meramente morais. Se a verdade se submete à moral (ao juízo), se não há mais do que verdades pragmáticas, que tribunal julgará o que é mais verdadeiro ou mais filosófico que a verdade? O filósofo-rei? A maioria dos cidadãos? Onde isso vai dar, todos sabemos...

Na segunda parte de seu ensaio, Todorov conta duas histórias, com a intenção de comprovar suas conclusões e de matizá-las. Vamos sintetizá-las.

Em 1704, aparece em Londres uma obra sobre a ilha de Formosa. Nela se narra como os japoneses invadiram a ilha e como os formosenses sacrificavam 18 mil meninos menores de 9 anos por ano. Descreve os sacerdotes, o povo, o ritual, enfim.

O segundo tema do mesmo livro, narra a história de George Psalmanazar, nativo de Formosa, onde viveu até os dezenove anos, educado por um preceptor europeu. Um dia, o preceptor volta à Europa levando o jovem consigo. Lá, Psalmanazar descobre que se encontra em meio a jesuítas e que seu educador é um deles. Exigem sua conversão, ameaçam-no com a Inquisição, mas o rapaz foge. Nos Países Baixos, encontra-se com o exército inglês e acaba conhecendo um capelão escocês anglicano. Depois, vai a Londres, onde é recebido pelo bispo, que lhe dá proteção. Sob a tutela do bispo, Psalmanazar escreve seu livro.

O livro vira um sucesso e Psalmanazar se torna famoso e requisitado pela sociedade inglesa. A própria Royal Society o convida a uma reunião ordinária, no dia 2 de fevereiro de 1704. Cientistas expõem casos interessantes e chega enfim a vez de Psalmanazar falar. Os cientistas desejam indagar-lhe algumas coisas. O doutor Halley, descobridor do famoso cometa, pergunta-lhe, maldosamente, qual era a duração do crepúsculo em Formosa. Diante da resposta errada, Halley declara-o impostor. O jesuíta Jean de Fontanay, que conhecia a China, afirma que Formosa não pertencia ao Japão. Além disso, o religioso nunca ouviu falar que lá se fizessem sacrifícios humanos, e sequer consegue compreender a língua formosense utilizada por Psalmanazar.

Arma-se um grande qüiproquó. Psalmanazar escreve um prólogo, defendendo-se; apresentam-se outros viajantes, descrevendo outras inverdades sobre Formosa. Objetado sobre a impossibilidade da ilha de repovoar-se com o sacrifício anual de 18 mil meninos, ele explica que por isso mesmo a poligamia era permitida lá. As considerações de verossimilhança não detém a verdade. Suprimisse ou modificasse o seu relato como quisesse e mesmo assim Psalmanazar não poderia afirmar com certeza se era originário da ilha ou não e se seu relato era ou não verdadeiro.

Outro argumento é perguntar: “De que ângulo se conta?” ou “Qual o interesse de quem conta?” Assim, na Inglaterra, os livre-pensadores acataram a posição de Halley porque ele era um livre-pensador. Os que eram contra o cientista, acataram a versão de Psalmanazar. Os jornais se apoderaram da questão, também divididos. Psalmanazar foi colocado à prova: chegou a comer pedaços de carne humana. Mas ao invés de convencer, produziu horror e mais dúvidas. O conjunto dos desconfiados é já maior do que o dos crédulos.

Passam-se muitos anos e se começa a esquecer Psalmanazar e suas aventuras. Idoso, vivendo modestamente, tornando-se cada vez mais religioso, a história de sua juventude começa a pesar-lhe na consciência. Em 1747 (aos sessenta e oito anos), escreve um artigo anônimo sobre Formosa para uma enciclopédia geográfica. Afirma nele que Psalmanazar o havia autorizado a revelar que seu relato fora, em sua maior parte, fictício. Todorov observa que o reconhecimento da ficção exige nova ficção, a da diferença entre Psalmanazar e o autor do artigo. Depois, Psalmanazar escreve suas Memórias, terminadas em 1758 e publicadas em 1764, um ano depois de sua morte. Os historiadores posteriores também acrescentaram alguns detalhes sobre o caso.

Nas Memórias, Psalmanazar conta muitas coisas e esconde outras (apesar da religiosidade crescente). Como ele não disse seu verdadeiro nome nem onde nasceu, alguns o consideram gascão (porque os gascões eram tidos por mentirosos), outros judeu (por que era um homem andarilho?). Não parece japonês e fala qualquer língua. Seu primeiro livro fora escrito em latim. A verdade histórica parece ser a seguinte: Vive com sua mãe, na juventude, no sul da França e estuda num colégio jesuíta. Um dia, sua mãe o manda a casa de seu pai, que mora na Alemanha. O pai não quer nada com o rapaz e ele vai para a Holanda. No caminho, encontra uns religiosos e se faz passar por japonês convertido ao cristianismo. Acha divertida a história e inventa uma gramática, um calendário e uma religião. Adota o nome Psalmanazar a partir da Bíblia, de Salmanazar.

Ao chegar à Holanda, nova aventura: apresenta-se como pagão e adorador da lua, mas que se converteria se conseguisse proteção. Então encontra o capelão, que percebe tudo, mas que resolve tirar proveito da situação. O capelão escreve ao bispo e batiza Psalmanazar. Resultado: o capelão sobe de posto e o bispo traz Psalmanazar para Londres. Resta ao jovem escrever o livro, para confirmar suas afirmações. Recorda-se então do jesuíta Alejandro de Rodas, que vivera em Macau e tivera um auxiliar chinês, que depois virou jesuíta também. Da história de Alejandro, Psalmanazar retira muitos elementos, inclusive o nome para o seu preceptor. O mais são recordações de outros livros.

Hoje se sabe com certeza que a Descrição da ilha de Formosa é uma grande fraude, que Psalmanazar nunca esteve na China e que não se chamava Psalmanazar.

Diante disso, Todorov indaga se as descrições dos sistemas fonológicos, dos ritos observados e relatados por etnólogos podem ser situados com tanta segurança ao lado da linha que separa os testemunhos verdadeiros dos testemunhos imaginários.

Ironicamente, Todorov sugere que os leitores procurem na Biblioteca Nacional a história de Psalmanazar, pois ele próprio pode ter inventado tudo isso, a exemplo do que Borges fazia.

Todorov conclui afirmando que a descrição de Formosa nem possui verdade-de-adequação nem verdade-de-revelação. Mas, como ela não se apresenta como ficção, mas como verdade, não é ficção mas mentira e impostura. O que fizeram Halley e Jean de Fontenay não foi um interpretação, um discurso, para confrontar a interpretação e o discurso de Psalmanazar. Eles apenas dizem a verdade onde o outro mente. Para conhecer Formosa, afirma Todorov, é preciso fazer a distinção entre as duas coisas.

Como escrito histórico, a Descrição é uma falsificação. Como ficção, não extrai admiração porque não se apresenta como tal e porque seu autor não é extraordinariamente eloqüente. Mas, pergunta Todorov, e se fosse?

* * *

Cristóvão Colombo descobriu a América. Eis uma frase que todo menino conhece. No entanto, está cheia de ficções, afirma Todorov, ao passar a relatar a segunda história. A frase é eurocêntrica. Abandonada essa perspectiva, seria preciso dizer que a América foi invadida. Além disso, Colombo não foi o primeiro a atravessar o Atlântico. Mas o paradoxo sobre o qual Todorov irá se debruçar é o fato da América chamar-se assim, e não Colômbia. Para isso, há uma resposta histórica simples: em 1507 foi publicado um tratado geográfico, Cosmographie Introductio, em que se julga que os méritos de Américo Vespúcio teriam sido maiores que os de Colombo e portanto o continente merecia ter seu nome. Espanha e Portugal não aceitaram tão facilmente a proposta e continuaram chamando as novas terras de Índias Ocidentais até o século XVIII. A verdadeira questão, no entanto, é: Por que os letrados de Saint-Dié, responsáveis pela cosmografia citada, julgaram a contribuição de Américo mais importante?

Por que Américo foi o primeiro a tocar terra firme? A prova dessa façanha de 1497 é uma carta. E embora a carta seja verdadeira, Américo não foi o comandante da expedição e o mérito seria dele, como normalmente acontece. Além disso, não fora ele o primeiro a alcançar o continente. Juan Cabot (Giovanni Caboto) antecipou-se a ele. Por outro lado, devemos pensar no que os navegantes acreditavam ter feito e não no que fizeram. Imaginavam estar nas Índias. E por último, para Todorov, não é a anterioridade da viagem o que determina a homenagem do nome do continente.

Outra resposta se impõem: Américo fez o descobrimento intelectual do continente. As suas cartas de 1503 e 1506 afirmam e confirmam a consciência de ter encontrado um novo continente. O essencial é que compreendeu. Isto poderia ter feito teoricamente em casa, sem viajar.

Mas no plano intelectual do descobrimento, Américo foi antecipado por Pierre Martyr d’Anghiera, que sem sair de casa, dirigia cartas abertas onde resumia as notícias das viagens, já em 1493. Para ele, Colombo “descobriu essa terra desconhecida” e “encontrou todos os indícios de um continente até então ignorado”. Um ano depois, em carta a Borromeu, emprega até a expressão novo mundo. As cartas de Pierre Martyr não são privadas, são a fonte de informações dos europeus de então sobre as viagens extraordinárias.

O próprio Colombo, no plano intelectual, também antecipou-se a Américo. Na Relación aos reis de Espanha, em 1497, manifesta a certeza de ter pisado terra firme no Hemisfério Sul e não do Norte.

Pergunta-se, então: o que levou os letrados de Saint-Dié a dar toda a honra a Américo, mesmo sabendo das informações de Colombo e Pierre Martyr? Simplesmente porque ele escrevia melhor. Foi a qualidade literária das quarenta pequenas páginas das cartas que lhe deu a glória.

Para determinar a qualidade, Todorov passa a comparar uma carta de Colombo a outra de Américo. Primeiro, o crítico analisa a composição geral. A carta de Colombo não apresenta nenhum plano bem ajustado. Descreve a viagem, a natureza das ilhas, descreve seus habitantes. Depois, fala da geografia, acrescentando novas notas sobre os índios. Então passa ao capítulo dos monstros e conclui, afirmando que as terras são riquíssimas e agradece a Deus pelos descobrimentos que fez.

A carta de Américo, em contraste, revela alguém com formação retórica. Começa e termina com vários parágrafos que resumem o essencial. E é ali que se encontra a afirmação comovedora da novidade desse novo mundo. No interior desse marco, o texto se divide em dois: a primeira parte faz a descrição da viagem (com uma digressão auto-elogiativa) e a segunda descreve novos países, com três sub-tópicos anunciados já no final da primeira parte, concernente aos homens, à terra e ao céu. A carta de Américo tem uma forma quase geométrica, ausente em Colombo.

Enquanto que as cartas de Colombo são utilitárias, dirigidas aos reis de Espanha, as de Américo são escritas para “perpetuar a glória de meu nome”, “para a honra de minha velhice”. Suas cartas pretendem encantar e distrair seus amigos. O primeiro faz documentos; o segundo, literatura.

O narrador de Américo atrai a atenção do leitor com elogios, com sutilezas, com antecipações narrativas. Além disso, ele produz deliberadamente uma distância entre o narrador que é e o personagem que foi, convidando o leitor a introduzir-se exatamente nesse espaço criado. Quando vai justificar-se, recorre à experiência do próprio leitor. Colombo produz sempre a mesma imagem: a dele mesmo.

Também na escolha de temas, Américo se preocupa com o leitor. Os fatos observados tanto por ele quanto por Colombo não são diferentes. Diferente é a forma de apresentá-los. Américo cria a imagem do bom selvagem, associando a nudez, a ausência de religião e indiferença pela propriedade às representações antigas da Idade de Ouro. Para Colombo, os índios são desnudos, sem religião e, às vezes, canibais. Somente isso. Antes de opinar, ou julgar, por exemplo, o canibalismo dos índios, Américo proporciona ao leitor detalhes picarescos e encanta.

Por último, acrescenta Todorov, Américo elabora mais detidamente a questão da sexualidade. Enquanto Colombo se limitava a dizer que os homens (índios) se contentavam com uma única mulher, Américo enfeita e inventa, açulando a curiosidade e a lubricidade do homem europeu.

O texto de Américo agrada o conjunto dos leitores (europeu comum) e os sábios do tempo, com citações de autores antigos e modernos, Plínio, Dante, Petrarca. Américo afirma ser o único no barco a saber ler as estrelas e utilizar o quadrante e o astrolábio. Como os sábios de Saint-Dié não se comoveriam com a superioridade dos intelectuais-teóricos sobre os marinheiros-práticos? Como recompensa, ofereceram-lhe um continente. Não é por acaso que as imagens das gravuras da época apresentam-nos um Américo sábio.

Por fim, Todorov lembra que Américo apresentava a seus leitores um mundo referencial, conhecido, com poetas italianos, filósofos da Antiguidade e pouquíssimas referências cristãs. Colombo só apresenta imagens dos textos cristãos e das viagens de Marco Polo. Colombo é um homem da Idade Média; Américo, da Renascença. O mundo de Colombo é povoado de monstros, o de Américo de homens. Um é anacrônico, o outro é moderno.

As mesmas qualidades literárias de Américo aparecem em outro texto, no Quatuor Navigationes, analisado por Todorov também.

A partir dessa análise literária das cartas de Colombo e de Américo, Todorov compreende porque este teve um extraordinário êxito, não só em edições mas também na homenagem de Saint-Dié. A fértil descrição fez com que as cartas de Américo fossem as mais ilustradas da época. Assim, as primeiras imagens que procuram captar a especificidade americana são as que ilustram os relatos de Américo Vespúcio.

Para Todorov, foi isso que levou os sábios de Saint-Dié a escolhê-lo como nome do continente. Mesmo que inconscientemente.

Mas permanece uma questão: a justiça estética se apoia ou não na justiça histórica? O papel de Américo corresponde ao papel que ele criou para o personagem Américo? Afinal, o nome do continente glorifica a ficção ou a realidade? Todos os argumentos a favor de Américo poderiam aplicar-se a um texto completamente falso, como o de Psalmanazar.

O que nos leva ao problema da autenticidade das cartas. Quem é o verdadeiro autor delas? Essas cartas contam a verdade? As cartas podem ser verdadeiras, escritas por Américo, e, no entanto, podem ser pura ficção. Mas também podem ser falsas, atribuídas indevidamente a Américo, mas não obstante dizerem a verdade sobre o continente.

Mundus novus e Quatuor navigationes foram as únicas cartas publicadas em vida pelo autor. Depois da sua morte, outras apareceram. Duas são muito interessantes, pois se referem às viagens à América, uma de 18 de julho de 1500 e a outra de 1502. A primeira foi publicada em 1745 e a outra em 1789. Até recentemente, eram consideradas apócrifas. As outras, publicadas em vida, autênticas. Uma das razões para justificar esta decisão era uma diferença de estilo entre as cartas publicadas e as cartas manuscritas. Outra se baseava nas contradições internas das segundas, ou nas inverosimilhanças.

Em 1626, Alberto Magnaghi deu uma reviravolta na questão. Para este especialista, são autênticas as cartas manuscritas e falsas as publicadas. Além disso, Mundus Novus e Quatuor Navigationes contém tantas contradições internas e inverosimilhanças quanto as cartas manuscritas. Não é impossível imaginar que florentinos doutos, usando as cartas verdadeiras de Américo, tivessem produzido os livros para agradar o público leitor através de uma literatura divertida e instrutiva. É mais verosímil que uma publicação seja falsificada do que uma carta manuscrita, destinada ao esquecimento nos arquivos e encontrada somente duzentos e cinqüenta anos depois! Para Magnaghi, seus autores seriam escritores profissionais, que provavelmente nunca saíram de sua cidade.

Roberto Levillier combateu Magnaghi, dizendo que todas as cartas atribuídas ao explorador são autênticas... A questão do verdadeiro autor das cartas não interessa para Todorov, mas sim a veracidade das cartas.

A verossimilhança ou não de detalhes das cartas não resolvem o problema. Em Américo há exageros sobre longevidade e gigantismo dos índios. No entanto, as cartas de Colombo, estas sim incontestavelmente autênticas, contém até mais exageros que aquelas. Os viajantes observam o mundo desconhecido, mas também projetam sobre ele seus preconceitos e fantasmas. As contradições internas das cartas publicadas de Américo podem ser atribuídas ao tradutor do latim, ou até mesmo aos copistas (já que o texto original fora escrito em italiano, perdeu-se e não existe dele nenhum manuscrito).

Todorov compara as duas cartas publicadas e encontra contradições temporais, descritivas e numerais entre elas próprias. Também entre Mundus novus (1503) e a carta manuscrita de 1502 há problemas. Ambas são dirigidas a Lorenzo de Medici. Têm conteúdos parecidos, e datas de redação muito próximas. Não havia necessidade de uma segunda carta, ainda mais que Lorenzo havia falecido no intervalo entre uma e outra. (Mas Américo podia não saber de sua morte.) Mas repetem-se contradições internas.

A análise literária de Mundus novus não advoga em favor da autenticidade. A descrição da natureza é convencional, poderia ter sido descrita a partir de um gabinete de Florença. A parte cosmográfica é pobre e sua função parece ser de indício: veja que sábio sou (e ao mesmo tempo: presumo que tu, leitor, também sejas). A descrição dos índios não acrescenta nada ao que Colombo dissera dez anos antes, embora esteticamente seja bem melhor. O relato da viagem não apresenta nenhum feito memorável, nele não figura nenhum nome próprio. Nada, em Mundus Novus, indica tratar-se de um caso de verdade. Tudo, inclusive a forma harmoniosa do conjunto, advoga em favor da ficção (da qual Américo poderia ser o autor ou não).

Para Todorov, Quatuor Navigationes possui indícios de experiência real, mas seu relato foi retocado. Não pode, portanto, ser tomado como pura verdade, não pode ser tomado como documento digno de confiança. É uma obra feita tanto de mentira quanto de verdade.

Ao longo dos séculos, a balança ora pende para o lado de Américo Vespúcio, ora para o lado de Cristóvão Colombo. E o que se pode concluir disso? Que a verdade e falsidade são indistinguíveis? Vamos nos alegrar com o triunfo da ficção ou lamentar-nos?

Enfim, Todorov declara que sua opinião decepcionaria as duas correntes. Para ele, as viagens de Américo parecem incertas e sua descrição pouco digna de confiança. Contém elementos verdadeiros, mas nunca saberemos quais são. Américo, para ele, está do lado da ficção e não do lado da verdade. E o historiador deve preferir os testemunhos verdadeiros. Mas, por outro lado, Tzevetan Todorov considera os escritos de Américo incontestavelmente superiores aos de seus contemporâneos e sua insuficiente verdade de adequação acaba compensada por uma maior verdade de revelação. Não apenas da realidade americana, mas também do imaginário europeu. Assim, seu mérito é grande, mas não se encontra onde em geral tem sido procurado. Longe de se lamentar por Américo não ter ido mais que um fabulador, Todorov se alegra ao ver que metade da terra carrega o nome de um escritor, ao invés de carregar o nome de um conquistador qualquer, um aventureiro ou um mercador de escravos. A verdade dos poetas não é idêntica a dos historiadores, mas disso não se deduz que os poetas sejam uns mentirosos e que devam ser expulsos da cidade, muito ao contrário.

Não sabemos se Américo escreveu mesmo as cartas e se são exatamente as cartas que podemos ler hoje em dia, mas não cabe dúvidas de que seja ele o personagem-narrador e é como tal que deve ser homenageado. Todorov finaliza dizendo que se ele lamenta alguma coisa, é que Américo não tenha se contentado com esse papel de personagem metade imaginário e que tenha desejado ser, ademais, um autor de todo real: desprendida do livro, a fabulação se converte em mentira.

9 comentários:

  1. Anônimo4/6/10 15:16

    EXCELENTE.
    Uma vez, em aula, tu perguntou por que a gente escrevia. A minha resposta foi que eu escrevo para construir uma verdade.
    Agora corrijo e complemento: escrevo para construir uma verdade-de-revelação. Chique!
    Beijo.

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  2. Mesmo quem é ateu não pode duvidar da existência de Deus enquanto personagem da Bíblia.

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  3. Dentre tantas considerações que poderiam ser feitas acerca deste excelente ensaio, a mim saltou aos olhos a velha problemática que tanto me aporrinha sobre contos e crônicas(porque vejo que as pessoas não conseguem diferenciar minimamente um de outro, mesmo com tanta coisa escrita a respeito). Grosso modo, me resta, apoós ler este texto, saber que em literatura não há verdades. Tudo é recriado.

    abço

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  4. A verdade na volta do parafuso,
    na martelada do carpinteiro,
    no discurso dos músculos da face
    do pastor,
    na galinha morta ao lado da garrafa
    de cachaça no meio da rua,
    o último gole do bêbado inveterado,
    a primeira vez que viu deus depois
    de fumar um baseado,
    a cura de um paraplégico,
    o super homem na tela
    vencido por um câncer
    na janela real.
    A cabeça guilhotinada.
    O escorregão de Dyonelio Machado.
    O suícidio de um casal que esgotou em vida.
    O nascimento de "Sophia",
    o "filo-lamento" da existência,
    o fruto, o pão, o pulso pulsando
    dentro das cores primárias do quadro,
    o escorregão do malabare
    a corda bamba
    a voz
    a saudação

    o sòu.
    o nós.

    o sim de clarice.

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  5. Muito bom esse poema de Sandro. Parabéns!

    Abraço,

    CK

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  6. Achei muito interessante esse ensaio. Nós como escritores não temos obrigação com a verdade, mas pelo que eu entendi de parecer verdade, de ser convincente na escrita.

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  7. Excelente ensaio, professor! A questão da verossimilhança está sempre "assombrando" críticos, escritores, estudiosos da literatura, filósofops, não necessariamente nesta ordem. Por vezes, é Platão que se revolve no túmulo, por outras, Aristóteles. Muito bom trazer a reflexão de Todorov, instigando-nos mais uma vez a refletir sobre a realidade e a ficção. Às vezes "tudo" ou "todas as provas" levam a um falso veredicto, a história tem sido perita nisso. Nesse sentido, a posição de "advogado do diabo" parece ser muito sábia. Para nós da literatura há que considerar as palavras do velho Machado - "A verdade pode ser às vezes inverossímel", eis o grande desafio. Dom Casmurro criou a sua verdade, colheu somente os argumentos que confirmassem a sua tese.
    Essa discussão rende...
    Abraço,
    Cátia simon
    PS: Maravilhoso o poema do Sandro!

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  8. Professor, gostei do texto e das relações estabelecidas.
    Penso que quando cruzamos a fronteira do real e escapulimos para a ficção podemos (ou não)estabelecer espaços de produção literária.
    A palavra quer contato, porque quer ser arte.
    Abraço, Gilka Coimbra - Turma quarta 15h30

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  9. tudo gira em torno da verdade e da mentira e isto me fez lembrar de uma poesia que diz assim; porque sorris qdo na verdade queres chorar? o teu mundo e tão grande, não precisas te isolar, larga a mentira e volta ao teu único eu, aquele que esconde e ninguém nunca conheceu. bjssss

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