domingo, 30 de maio de 2010

Confissões

Recebi, na sexta-feira, a prestação de contas de direitos autorais do primeiro trimestre de 2010, de uma de minhas editoras. Um dos livros de que mais gosto, e ao qual dediquei um esforço especial, Logo tu repousarás também, contos, vendeu, em três meses, 3 exemplares! Isto mesmo. Do Oiapoque ao Chuí, vendi três exemplares. Receberei, sobre estas vendas, 8,47 (oito reais e quarenta e sete centavos)!

Esta é a realidade dos escritores brasileiros. Certo, talvez seja apenas a minha realidade. Na década de 80-90 do século passado, eu vendia milhares de exemplares de Caminhando na chuva, por semestre. Hoje, em editora grande, publicado em São Paulo, vendo entre 25 e 40 exemplares por bimestre. Vendo hoje cinqüenta vezes menos do que vendia há uma década.

O que houve? Por que os meus leitores me abandonaram?

Em primeiro lugar, porque os meus textos ficaram obsoletos. A realidade, e é sobre isso que escrevo, não tem mais apelo mercadológico. Quem se interessa pela vida de sem-terras e pequenos agricultores, e outros infelizes e deserdados que habitam a minha Pau-d´Arco imaginária? Tentei o assassino em série, migrante na capital, e não acertei. Escrevi um livro complicado, demoníaco, como sugeriu um crítico local, O escorpião da sexta-feira, que assusta, incomoda, e os novos leitores querem amenidades. Na era do hedonismo e da imortalidade, lembrar às pessoas que um dia elas irão repousar sob sete palmos de terra, como se dizia antigamente, é fazê-las largar o livro antes que ele queime as mãos desavisadas.

Em segundo lugar, porque ninguém mais compra livros. Ao menos não os meus! Enquanto este blog já foi lido por mais de 12 mil pessoas nos últimos três meses, vendi 3 exemplares de meu melhor livro de contos!

Em terceiro lugar, porque o número de escritores, na última década, multiplicou-se geometricamente, enquanto que o número de leitores (de livros) aumenta aritmeticamente, se é que aumenta. (Suspeito de todas as informações que dizem que os livros estão vendendo cada vez mais). Provei, estatisticamente, que a Feira do Livro de Porto Alegre perdeu, no último lustro (alguém ainda se lembra que isso significa qüinqüênio?), mais de 30 por cento de seus compradores.

Pela inflação no mercado brasileiro de escritores, sou diretamente responsável, pois minhas oficinas lançam no sistema literário dezenas de excelentes novos autores e autoras a cada ano. Há 15 anos, um grande escritor dos pampas me disse: “Pô, tu estás jogando contra a gente! Daqui a pouco, não teremos mais leitores”.

Ele tinha razão.

Só me resta, agora, convencer aos meus alunos a comprarem livros. Alguns, não compram sequer os lançamentos dos colegas. Não conheço tipo social menos solidário que escritor. Eu mesmo, que compro uma boa quantidade de livros de meus alunos em seus lançamentos (mas somente obra que tenha passado pelo meu crivo editorial), não o faço por caridade. A despesa que tenho já está embutida no preço da mensalidade.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O poncho (conto)

Na tarde em que regressava a Pau d’Arco, sob os guascaços de uma chuva lateral e violenta, chuva que principiara no dia anterior e que continuaria por mais uma semana, Fernando Kõnning, meu avô, usava ainda o poncho que recebera de presente de Angélica, a mulher que tinha amado com urgência, antes de partir, e quase em desespero depois, que é como se pode amar um espectro. Nem a doçura, a suavidade, o carinho e o amor de Lídia, minha avó, o protegeram das emanações fantasmáticas do passado, dos pesadelos reiterados, da dor sem fim das coisas que não chegam à plenitude, frutas arrancadas à arvore da vida antes do amadurecimento. Calha, a algumas mulheres, o destino de recolher homens destroçados, cuidar de suas feridas, alimentá-los e protegê-los até que readquiram as forças, até que voltem a acreditar na própria capacidade de conquista e sedução. Quase sempre, essas benfeitoras, as mulheres ternas e compassivas, as enfermeiras da alma, recebem em paga o abandono e o desprezo. Fernando, ou porque estivesse cansado, entrava já na meia-idade quando se casou com Lídia, ou porque tivesse desenvolvido por ela algo mais que ternura, aquietou-se, recolheu-se à vida caseira, à felicidade miúda e cotidiana. Passava os dias no alambique, que herdara do pai, a produzir a melhor aguardente da região. Nunca se livrou da culpa, nem da saudade. Nos sábados quentes e chuvosos, quando o cheiro de terra molhada se espalhava pelo ar e a cicatriz na alma pulsava, ele sentava-me aos seus pés, na varanda, e me contava a sua história.

“Na tarde em que regressei, depois de cinco anos e três meses de ausência”, ele principiava a narrativa, concentrado, lento, ausente, como se mastigando as palavras, “compreendi que a saudade, ao contrário do que deveria ser, aumenta mesmo é na direta proporção da proximidade do ser amado.”

Distante da noiva, o amor de meu avô diluiu-se, esgarçou-se, perdeu-se nas sombras dos becos escusos e das ruelas mal-iluminadas de Uruguaiana, Montevidéu e Buenos Aires, e entre as muitas mulheres com quem dividiu catres e lençóis manchados, mas nenhuma esperança. A centenas de léguas, a mulher de olhos negros, de rosto magro e saliente, rosto emoldurado por cabelos longos e lisos, a mulher de fronte alta e orgulhosa transformara-se apenas num ritmo cadenciado, mais som que sentido, a persistir na memória com a renitência das chuvas de abril. No entanto, ao se aproximar do povoado natal, o rosto esquecido retornava tão vivamente à consciência que parecia vê-la sorrindo no horizonte leitoso; no resfolegar do cavalo como que ouvia a respiração sincopada da noiva, seus soluços secos diante do portãozinho na tarde da partida, e no taconeo dos cascos reconhecia a voz da amada: meu menino, eu te espero.

“A hora era a do crepúsculo, e imaginei divisar ao longe o casario dos arrabaldes de Pau-d’Arco. Senti um aperto na garganta, porque sabia que, no meio daquelas luzes desmaiadas, em duas delas, minha mãe e minha noiva me esperavam. O tordilho avançava lentamente, com a cabeça inclinada para baixo e para a esquerda, protegendo-se do vento e da chuva. A distância até a casa encolhia e o tempo, parecia-me, comprimia-se também, e já não eram seis anos, ou quase seis anos, pequinita, o tempo que eu estivera afastado de Angélica, mas três semanas, ou menos. Longe, eu estivera muito longe, porque longe é viajar sozinho. Agora, sentia-a ali, próxima, diante dos meus olhos, a fitar-me com dor e desolação no portãozinho de madeira, recusando-se a compreender que eu precisava partir para a revolução, cumprir meu destino ao lado dos outros dezessete homens que também partiriam, comandados por José Tarquino Rosas”.

Ele inclinava a cadeira de balanço para trás, até o limite, e respirava com a dificuldade dos velhos asmáticos e fumantes. Talvez quisesse perguntar-lhe por que os homens colocam tudo acima do amor, mas eu era uma guria tímida e assustada, incapaz de falar diante de um adulto, mais ainda dele, que não gostava de ser interrompido. Depois, quando cresci, a pergunta perdeu sentido, distanciei-me dos costumes de outras mulheres, como minha mãe e minha avó, deixei Pau-d’Arco com a promessa de não retornar nunca mais àquela terra maldita. Mas ele, ele que tinha partido, que conseguira desprender-se dos pegajosos cheiros da infância, dos ruídos familiares, da modorra das tardes de verão, dos liames invisíveis que tecem pais, irmãos, primos, amigos, ele retornava, atraído pelos dedos longos e delicados que haviam tecido o poncho que o envolvia, dedos que desejava em seu rosto hirsuto, enquanto sentia no nariz, na testa, no queixo, a violência da chuva, chuva que tornava o pano cardado pesado, mais grosso e mais áspero. Era um homem bom, justo e generoso, era assim que

se sentia, é assim que se sentem os homens que amam, e que desejam a mulher inalcançada, mesmo se cruéis, traidores e mesquinhos. Era um homem simples, de hábitos regulares, sem fanatismos, exceto a política, que regressava ao lar, um homem que se sentia protegido pelas forças do bem, sobrevivera a prisões, emboscadas e vendetas da revolução, não sobrevivera?

O cavalo resfolegava, desviava-se dos valetões produzidos pelas carroças carregadas de pesados dormentes. Fernando concentrava-se no caminho. Ou, tantos anos depois, imaginava ter se concentrado. Súbito, e ele o mostrava com um gesto repentino de mão, que me assustava, sentiu um deslocamento quase imperceptível a sua frente, como que a projeção de uma sombra no estradão escuro e encharcado, e um puxão nas franjas do poncho, seguido de um suave dedilhar de acordeona.

É o vento, ele pensou, e era, sim, o vento, era só o vento que soprava com fúria, que arcava os galhos das árvores, que zumbia nos ouvidos e o forçava a viajar com os olhos espremidos, estreitados quase a ponto de nada ver.

Tudo vem em ciclos, correntes alternadas, pulsão e repulsão, onda e repuxo, e o vento também. Depois de mostrar força, o vento arrefeceu e, por entre a espessa cortina de chuva, meu avô divisou, com espanto, mas não sem alegria, o salão de bailes da Esquina Grubert e percebeu que se equivocara, na verdade tinha tangenciado o povoado de Pau-d’Arco, tomara o estradão que conduzia à cidade de San Martin, hoje desaparecida sob as águas da barragem.

“Era como se o cavalo tivesse girado quarenta e cinco graus”, ele afirmava, quase cinqüenta anos depois, girando também a cabeça para o indicar.

“Um homem cansado, um homem faminto, um homem ansioso pode tomar as coisas pelo que não são, a aparência pela realidade, especialmente num entardecer chuvoso, não pode?”, indagava, a buscar na inocência da menina sentada aos seus pés um ponto de apoio contra o absurdo e a loucura, contra a fenda que se produzira no pano do Universo.

No mesmo instante, ainda antes de sofrenar o cavalo e retomar o caminho que o levaria, finalmente, para casa, recordou-se de que fora ali, naquele mesmo lugar, que vira Angélica pela primeira vez havia mais de sete anos.

Ela estava sentada entre duas amigas, e ria, ria com gosto, mostrava a dentadura branquíssima, jogava a cabeça para trás, sacudia os ombros, feliz, iluminada, um pintassilgo alvoroçado. Fernando não era alto, nem seus ombros largos, mas seus olhos tinham gume de faca assassina. Angélica sentiu dor no plexo solar e uma dormência nas pernas. Demorou a reagir ao braço oferecido. Depois dançou leve, flutuou pelo salão. E amou com a intensidade das pombas, das codornizes, das garças-pequenas. Fernando deteve-se, indeciso, um momento, apurou o ouvido e, apesar do vento, apesar do repique da chuva nas abas do chapéu, reconheceu, nos floreios da acordeona, que outra vez se fez ouvir, os compassos da milonga que o levara a encorajar-se e a convidar Angélica para dançar.

Estava exausto, cavalgara o dia inteiro, queria apenas um banho quente, um café com cardamomo, afagos de mãe e abraços de pai, queria chegar logo a Pau-d’Arco e rever a noiva, acertar com os sogros os detalhes do casamento, a lista dos convidados, o lugar em que fariam a festa, mas a música triste e arrastada continuava a colear na noite, a arrastar-se sob a chuva torrencial, a perder-se na mataria fechada e a doer no peito de meu avô como uma chaga.

O amor precisa de suportes para ser revivido, o amor precisa agarrar-se às coisas, aos objetos, à luz oblíqua da lua, às rosas murchas, às páginas amarelecidas das cartas e dos diários, ao nitrato de prata das fotografias para sobreviver à voracidade do tempo e do esquecimento. Como que por instinto, ou por cacoete adquirido nos anos de andanças pelo continente, meu avô alisou o poncho e sentiu nele, no forro de baeta e em si mesmo, o amor vivo, quente, o amor expectante.

“Guardei o poncho, pequenita, a vida inteira. Será teu, quando eu me for. Pra te proteger da solidão e das doenças”, ele murmurava, enchendo-me de esperanças de um dia possuir o objeto mágico e salvar-me com isso do ciúme dos deuses, porque eu ainda não tinha compreendido que fora o poncho, exatamente o poncho, que o submetera à solidão irredimível e à doença mais perniciosa e letal, a de viver com os olhos voltados para o passado.

Fernando puxou as rédeas, roseteou o tordilho nas ilhargas, mas o cavalo como que resistiu, deu dois arrancos para a frente e estacou diante da porta iluminada do salão de bailes. Vencido, meu avô decidiu desmontar. Ao retirar o pé do estribo, já no chão, sentiu algo roçar no poncho outra vez e supôs que fosse um ramo de espinilho, ou a própria roseta da espora. Amarrou o tordilho no palanque e, antes de entrar, ao virar o rosto para trás, deu-se conta de mais um engano. Já era noite fechada, o entardecer fora ilusão dos desmaios de luz da lua escondida por detrás de nuvens pesadas contra o vapor da chuva sobre a terra quente.

O salão fervilhava, os casais rodopiavam na pista, a copa estava atulhada, ele precisou meter-se ali, meio à força, usando os braços para abrir caminho, queria entregar o revólver e a faca, que era do costume da época desarmar-se, abandonar as armas maiores e mais visíveis.

“Sempre se escondia um ferro curto no cano da bota, que ninguém era tolo pra morrer de descuido”, ele dizia, armando em mim a falsa expectativa de uma luta de punhais, que não viria.

“Deixei as armas, o chapéu e o poncho na copa e aproximei-me da pista de danças. Tinha as roupas molhadas, mas não sentia frio, não ainda, e, além disso, a aguardente pura, de alambique, ajudava a esquentar o corpo”, ele continuava.

“No primeiro trago, reconheci a cachaça produzida pelo meu pai. Mais que a boca, a ardência queimou o espírito”, dizia, fitando-me com seus olhos ternos, compassivos e desesperadamente azuis. Para não fraquejar, ou porque fraquejava, meu avô batia as pálpebras, coçava a cabeça, ajeitava-se na cadeira de balanço.

“Passei e repassei os olhos pelos grupos de mulheres, atravessei o salão muitas vezes. Eu não pensava em dançar, doíam-me as costas, os braços, as pernas. Sequer sabia por que tinha entrado, deixara-me arrastar pelo cavalo, pela luz trêmula que fugia da porta principal, pela magia da milonga e, por que não dizer, pela saliva abundante que a simples lembrança da aguardente me provocava. O arruído, o movimento e a cachaça foram me prendendo e eu fui ficando. Aquilo, e o que viria depois, tinham hora para acontecer? Se eu tivesse partido antes, ou se não tivesse entrado no Salão Grubert, a coisa teria acontecido? Duas, talvez três horas mais tarde, no instante mesmo em que decidi retornar à estrada, arregalei os olhos de susto”, ele continuava e abria bem os olhos azuis e profundos que eu tanto amava, “arregalei os olhos de susto e não consegui acreditar no que vi. Sentada no meio de um grupo ruidoso de moças, com o cabelo em coque, um vestido florido que me era vagamente familiar, vestido que reconheci somente depois, Angélica sorria, ou quase”.

Com a sensação de que não vivia aquele instante, mas outro, afastado no tempo, Fernando aproximou-se da mulher que amava, a mulher que tinha deixado em Pau-d’Arco havia quase seis anos. Tímida, extremamente tímida, e silenciosa como um riacho no pampa, ela não ousou levantar os olhos para o noivo, mas aquiesceu em dançar. Ele não estranhou, porque era assim, tinha sido sempre assim, e assim fora desde o primeiro encontro. A intimidade seria construída depois, depois das bênçãos, depois dos fogos, depois dos festejos de casamento. Angélica ouviu calada a narração dos feitos revolucionários, a violência dos combates e das degolas, o frio do minuano nos acampamentos, a fome, a febre dos soldados feridos, o delírio e a saudade. Não indagou as razões do noivo, que não regressou com a coluna de José Tarquino Rosas, o Intendente de San Martin, ao final dos combates.

“O cheiro”, diria meu avô, “o cheiro não era o mesmo, minha noiva tinha cheiro de madressilva, mas naquela noite ressumava à lavanda”.

Entre os muitos equívocos de um homem cansado, somava-se mais este. O que, de fato, Fernando sentiu, foi o cheiro de mofo do vestido que estivera guardado em sua longa ausência, dobrado na cômoda, esquecido entre as anáguas e os corpetes. Sim, o vestido tinha estado enclausurado, longe da luz, como a própria noiva, que permanecera em casa nos dias de abandono. Ela resistira ao coro das amigas e dos parentes, que afirmavam, com absoluta certeza, que o noivo não regressaria, que estava casado em Alegrete ou Santiago do Boqueirão. Angélica mantivera-se fiel até nisso, no direito que tinha de se divertir, de tornar
mais leves os dias pesados. O cansaço, com certeza tinha sido o cansaço, ou a emoção de tê-la outra vez contra o peito, impediu Fernando de fazer a pergunta óbvia: Como é que ela sabia que o encontraria ali, no Salão Grubert? Ou então: Por que esperara tanto para regressar ao mundo das festas e dos bailes, ela que era tão jovem e tão linda, e por que só o fazia naquela noite, noite em que ele retornava?

Dançaram, ou ele dançou com ela, já que Angélica se deixou levar.

“Contei-lhe tudo e foi como se não tivesse me ouvido, sequer uma queixa diante das traições, um murmúrio sequer de espanto frente às mortes e aos perigos. Suas mãos frias, às vezes, se crispavam e eu podia sentir as suas unhas nas minhas costas”, ele prosseguia para, em seguida, mergulhar num silêncio aterrador.

“Não me perdôo por não ter percebido”, ele tornava a falar, muito tempo depois, contendo os soluços. Se delongava, meu avô, na descrição dos volteios, das marchas e contramarchas, dos passos que ambos executaram naquela noite que ficaria para sempre impressa na sua memória, e na minha.

Angélica tinha a boca pequena, os dentes um pouco projetados para a frente, um sorriso esquivo, a tez leitosa e pintalgada de sardas, os braços longos e finos, magra, muito magra, e mais alta que Fernando. Dançaram, os dois, polcas, valsas, chimarritas, bugios, xotes, milongas e chamamés, até que os músicos guardaram os instrumentos.

“Súbito, senti um frio no estômago, minha vista se escureceu. Percebi, então, que Angélica estava sozinha no baile, sem os seus pais, que sempre a acompanhavam. Teria se transformado numa dessas mulheres de vida fácil, que percorrem os salões atrás de forasteiros que não as conheçam?”

O convívio com prostitutas, que seguem as tropas, ou com as que os soldados buscam nos arrabaldes das cidades, levou meu avô a julgar mal a mulher que o amava. Fechou-se num mutismo infantil e despropositado, e perdeu, assim, a oportunidade de aproximar-se, pela última vez, da noiva.

Apanhou suas coisas na copa, as armas, o chapéu e o poncho, e arrastou-a para fora. Chovia ainda, a mesma chuva lateral do entardecer, mas já sem violência. Para protegê-la, vestiu-a com o poncho.

“Não sei se foi a luz do salão, ou talvez a claridade da madrugada, mas Angélica ficou como que aureolada, a tremer sob o tecido que ela própria havia tramado. Dela partira e a ela retornava. Era como se um ciclo se fechasse e a chuva que despencava fosse a mesma chuva que despencara na tarde da minha partida.”

Fernando enfiou o pé no estribo, montou, deu a mão à noiva, que saltou às suas costas.

“O poncho é teu outra vez”, ele disse, rude, cego, enlouquecido de ciúme, tentando feri-la, como se com isso devolvesse o compromisso, como se o objeto que a protegia da intempérie fosse o símbolo da aliança que se estabelecera entre eles. Meu avô não podia imaginar que Angélica viesse a devolver-lhe o presente, com o mesmo amor e carinho da primeira separação, ainda na tarde desse dia que então se inaugurava.

Entre o Salão Grubert e o povoado de Pau-d’Arco, Fernando remoeu um ódio tolo, construiu um passado falso para Angélica, passado que o redimia de seus erros e arrefecia a sua própria culpa. Se não fora capaz de esperá-lo, ele pensava, era indigna de seu amor. Assim, à tarde, quando visitasse a família da noiva, devolveria a aliança, romperia os laços de honra. Imaginou-se em casa, em seu quarto de solteiro, recolhendo, numa caixa de sapatos, as cartas, as abotoaduras, um prendedor de gravata, um marcador de livro de metal, uma espátula e outras quinquilharias com que os namorados costumam tutear-se. São tolos, os amantes, que imaginam devolver os sentimentos com as coisas devolvidas.

Diante do portão da casa de Angélica, depois que ambos desmontaram, a crise de desconfiança cedeu. Odiou a si mesmo por tê-la julgado infiel. Não foi capaz de suportar a própria comoção e chorou. Terna, ela recolheu suas lágrimas, abraçou-o com força, sempre em silêncio. Era como se ele não tivesse partido, como se continuasse ali, tentando consolá-la, como se a quisesse convencer ainda da importância da revolução. Por um instante, teve a sensação de que nada havia acontecido, a mesma chuva insistia em obscurecer o mundo, o mesmo medo de não tornar a vê-la enrodilhado no estômago, a mesma dor do abandonador. Fernando fechou os olhos por um instante e quando os reabriu percebeu-se sozinho na manhã recém-nascida. A chuva tinha cedido, ouvia os pássaros no arvoredo atrás da casa e cães a ladrar nas cercanias. Súbito, uma sensação de calafrio percorreu seu corpo, como se estivesse sendo observado. Voltou-se para a janela do primeiro andar e viu Angélica de relance, atrás da cortina que se fechava, sem saber que aquela imagem reproduzia outra, uma que não fora capaz de ver, porque não fora capaz de olhar para trás na tarde em que partira.

Como se fragmentasse o tempo da narrativa, meu avô abandonava a cadeira de balanço, dava algumas passadas pela varanda, escorava-se numa das vigas que sustentavam o alpendre. Depois, elidindo o trajeto entre a casa de Angélica e a de seus pais, ignorando a pintura de um café da manhã de filho pródigo e os sonhos de um sono justo em que mergulhara das nove às três horas da tarde, descrevia-se outra vez diante do portãozinho de madeira, sob a mesma chuva, mas com disposição de espírito muito diferente. Tinha sido injusto, precipitara-se em conclusões odiosas, felizmente não verbalizadas. O amor tudo pode suportar, exceto as palavras de fogo, aquelas que sabemos ferinas, maldosas, que atingem o outro no que ele tem de mais recôndito e sagrado. Estava banhado, vestira o terno guardado com zelo pela mãe, fizera a barba, perfumara-se.

“Toquei a aldrava várias vezes, até ser atendido pelo velho Armando. Um fantasma, se eu fosse um fantasma, teria causado menos impacto”, dizia meu avô e alisa va a face, como que a certificar-se da própria corporeidade.

A cena se repetiu diante de Luísa, a mãe de Angélica, cuja perplexidade transformou-se em demorado pranto. Era justo que se assustassem, era justo que resistissem à sua volta. Tinha decidido não explicar nada, fazer de conta que o tempo da ausência não fora tão dilatado assim. Agora, ali, ele próprio se perguntava: Por que não regressara antes? Depois da assinatura da paz em Pedras Altas, envolvera-se em negociatas, contrabandos, jogatinas. E se afastara cada vez mais de Pau-d’Arco. Os pais da noiva, recuperados, menos nervosos, convidaram-no, enfim, a passar à sala.

“Sentei-me no sofá e suspirei aliviado. Agora sim, agora eu podia dizer que estava em casa”, dizia Fernando, a cofiar o bigode branco e bem-aparado. Por mais que se esforçasse, não conseguia reter as lágrimas, que desciam pelas rugas de seu rosto, rugas que eu tomava por cicatrizes da revolução.

“Não se ouvia a chuva, que persistia, mas pelas persianas entreabertas podia-se ver a tarde nebulosa”.

Na sala, com seu balançar implacável, o pêndulo do relógio contabilizava as perdas e os ganhos, as palavras e os silêncios, os desejos e as indiferenças dos homens, das mulheres, dos bichos e das coisas. No princípio, a conversação remanchava, como que reboujava ao redor de ninharias, comentários a respeito da estação chuvosa, a certeza de quebra na safra de grãos, os planos de Armando de comprar um automóvel.

“Aquilo dava nos nervos, parecia proposital. A mãe de Angélica sequer me encarava e o pai me confundia com um vizinho, um amigo, um parente distante”.

Algum tempo depois, Luísa levantou-se, dirigiu-se à cozinha. Meu avô, sentado no canto esquerdo do sofá, esperava, impaciente, a descida da noiva. Apurava o ouvido, tentava perceber os ruídos costumeiros no segundo andar, os passos leves no assoalho, o ranger de portas, os estalidos secos no madeirame dos degraus, e nada.

Luisa retornou com café e bolachas de polvilho, que depositou sobre a mesa de centro.

“Pensei que Angélica não estivesse em casa, que saíra para visitar alguma amiga, por isso esperei ainda meia hora, talvez mais”.

Tempo que se dividiu, para meu avô, em intermináveis ponderações de Armando sobre a situação política do Estado, as movimentações de Getúlio Vargas, a crise da bolsa, a situação do banco pelotense, questões que, naquela tarde, perdiam o sentido para o homem apaixonado que desejava, apenas, rever a noiva e entregar-se, enfim, ao único assunto que justifica a existência.

“Bem”, ele disse, fazendo estalar a mão espalmada na coxa, “estou aqui para arreglar as coisas para o casamento”.

E, então, um grito, o que se ouviu foi um grito, de dor, de desespero, de ódio represado, e uma grande movimentação na sala. Sem que atinasse com o que estava acontecendo, Fernando viu Luisa subir os degraus da escada quase correndo, seguida de perto pelo marido. Meu avô quedou-se no primeiro andar a ouvir, badalada por badalada – pois contou uma a uma –, o relógio marcar cinco horas da tarde.

“Nunca mais vi Luísa, que me odiou até a hora da morte. Não a condeno por isso, eu teria feito a mesma coisa”.

Quando Armando desceu, meu avô soube a verdade:

“Todos os dias, ao entardecer, por mais de dois anos, minha filha ficava diante do portãozinho, a mirar a estrada que tinha te levado. Ela esperou, com a paciência e a dedicação que só as mulheres sabem ter, enquanto suas pernas conseguiram sustentar o corpo fraco. Depois, quando a tísica avançou e não conseguia ficar longe da cama por muito tempo, contentava-se em fitar a lonjura pela janela, a murmurar, já sem juízo e em agonia, o teu nome”.

Chovia, chovia sem parar, uma chuva imemorial, definitiva, como se os céus quisessem lavar a terra de todo o mal. Primeiro, Fernando se desconsolou, ganiu de desespero, não acreditou que fosse verdade, quis subir a escada para ver Angélica, e depois convenceu o pai da noiva a levá-lo até o cemitério, queria ver com os próprios olhos a terra que a tinha recebido.

“Fomos a pé, no meio do temporal que desabava sobre o vilarejo”.

Hoje, mais de sessenta anos depois, imagino os dois homens, inclinados sob a chuva e o vento, percorrendo as alamedas do cemitério. À imagem agrega-se a lembrança de mim mesma, pasma, lívida, sem fôlego, sentada diante do velho, a ouvi-lo ajustar contas com o passado. Sinto, consigo sentir, o cheiro de terra molhada, e ouço, consigo ouvir, o ribombar dos trovões. Daqui onde estou, nesse quarto repleto de livros e dos meus próprios amores e fantasmas, posso ver o poncho, que herdei, dependurado atrás da porta. Impressiona-me que, apesar dos anos, das revoluções, das tempestades e das insolações, seu pano ainda resista. Sempre que o minuano açoita esta cidade que escolhi por casulo e tumba, visto-o e estremeço, que me comovem a ternura e a grandeza com que foi trançado. Sinto em sua trama os dedos longos e finos de Angélica, e, na sua aspereza, os sobressaltos de uma longa espera.

O que de amor foi tecido, de amor permanece.

Sobre a tumba, encharcado, mas delicadamente estendido, meu avô reencontrou o presente que recebera da noiva na véspera da partida.

(In: KIEFER, Charles. O pêndulo do relógio & outras histórias de Pau-d´Arco. São Paulo: Manole, 2009).

terça-feira, 25 de maio de 2010

À espera do grande engarrafamento

Hoje, ao abrir a caixa postal do Refúgio, escritório em que me escondo para escrever, encontrei quatro faturas atrasadas de conta de luz. O que significa que há mais de quatro meses não escrevo nada.

Crise. Uma profunda "crise escritural". Já recolhi meu romance da editora, não quero mais publicá-lo, já decidi "dar um tempo" a mim mesmo, para examinar em que encruzilhada tomei a via errada. "Dar um tempo", na linguagem eufemística dos amantes é "sair de fininho", "deixar que as coisas se auto-destruam".

Ou será uma grande desilusão com a própria literatura, o que me aflige?

O argumento da falta de tempo é pífio, auto-enganador. Escrevi meus melhores romances e contos em épocas em que trabalhava dezesseis horas por dia. Escrevia aos domingos, de madrugada. em estações rodoviárias, dentro de ônibus e aviões, à mão, sem as facilidade eletrônicas que tenho hoje.

Não. Falta de tempo não é desculpa. É falta de fé. Em mim, na função da literatura, na humanidade.

Antes, como dizia o Sergio Faraco, eu escrevia com a sensação de que ia salvar alguém. Hoje, vejo que não há mais ninguém a ser salvo. Estão todos confortáveis, domesticados e bovinamente felizes. O petróleo jorra do fundo do mar, devastando a vida marinha, e ninguém se espanta, ninguém clama. Há trinta anos, havia gente que se acorrentava às árvores, para que não fossem derrubadas. Onde eles estão? Onde estamos? O que houve conosco? Fomos abduzidos? Ou a caverna platônica se expandiu tanto que tomou conta do planeta?

A solução talvez esteja num imenso engarrafamento, um engarrafamento de proporções apocalípticas, como aquele do conto de Julio Cortázar. Parados na Ipiranga, Sertório, Independência e Farrapos, talvez tenhamos tempo de refletir. Talvez uma saudável epifania nos acolha no meio do congestionamento.

Decisão tomada. Vou andar com o laptop no carro. Quando a cidade parar, sintonizarei a Rádio Universidade, e, entre um e outro acorde de Brahms ou Mozart, talvez eu volte a fingir que sou escritor.