As transformações tecnológicas, sociais e políticas das últimas décadas jogaram a literatura para escanteio. Hoje, resta à velha dama o papel de relicário da língua, como disse José Hildebrando Dacanal em Era uma vez a literatura.
E a crítica literária? Refugiou-se na Universidade, transformada em tema de TCCs de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado (que são lidos somente pelos professores que compõem as bancas e pelos próprios candidatos à titulação).
Agora, em blogs, sites e revistas eletrônicas a crítica literária parece ressurgir.
Um exemplo disso é o Campeonato Gaúcho de Literatura
http://www.gauchaodeliteratura.com.br/
capitaneado pelo Rodrigo Rosp. Alguns, mais sensíveis, e talvez supondo que a vida literária se resuma a elogios baratos e prebendas fáceis, estão assustados com a virulência das resenhas já publicadas. O que acontece no “Gauchão de Literatua” é pouco, se comparado ao que acontecia na imprensa brasileira, quando ela ainda veiculava crítica literária. Leiam, por exemplo, o ensaio “A polêmica da Confederação dos Tamoios”, que incluí em A última trincheira. A dureza e a acidez de José de Alencar, em sua crítica à obra de Gonçalves de Magalhães, superam o Rafael Ban Jakobsen em sua análise do livro publicado por Marco de Curtis. O tempo mostrou que o livro de Magalhães, como afirmava Alencar, era pífio e frouxo, mal feito. Da literatura de nosso tempo, e da nossa província, o que restará? Do século 19, sabemos, restou pouco: Machado de Assis. E alguns críticos de Machado de Assis erraram completamente.
O que não devemos esquecer – autores, editores e leitores – é que um livro, depois de publicado, pertence à sociedade e à história. E cabe a nós, sim, julgá-lo, mesmo que nossos juízos estejam equivocados. O tempo fará as correções necessárias.
Para ajudar nessa questão, afinal o trabalho do professor é esse, publico, aí abaixo, uma Ficha de Avaliação, que utilizo em aula. Ela tenta dar conta, criteriosamente, dos dois eixos que compõe o que chamamos de literatura: o eixo dos procedimentos construtivos e o eixo dos meios expressivos. Sempre afirmo e repito: a grande literatura é aquela que articula e equilibra, com harmonia, esses dois planos.
FICHA DE AVALIAÇÃO
NotasProcedimentos construtivos (de 0.0 a 5.0 pontos)
Personagens: se convencem ficcionalmente; se há verossimilhança de caráter; se são bem estruturadas do ponto de vista psicológico, histórico, social; se não são estereotipados e caricatos; se o que se sabe sobre eles é suficiente para a compreensão da história; (0.0 a 1.0)
Enredo: se é convincente; se tem um bom mythos (composição das partes orgânica e eficiente); se há adequação ao gênero (conto, relato, crônica); se não há descrições desnecessárias e sem articulação com a narração; se a ação é lenta e desconexa; se não há cenas ou situações inverossímeis; se há clichês narrativos; caso haja diálogo, se o método (d) escolhido é a mais adequado; se o diálogo (quando houver) está bem construído ou se é artificial e/ou inútil; caso haja alegoria, se ela é simples ou complexa, e se é bem construída; caso haja história cifrada, se funciona. (0.0 a 2.0)
Narrador: se o narrador escolhido e sua perspectiva (a), o focalizador (b) e a técnica narrativa (c) funcionam, ou se poderiam ser utilizados outros, mais eficazes para o texto. (0.0 a 1.0)
Conflito: se a história tem intensidade e se é significativa; se o conflito é bem construído (fraco, médio ou forte) (0.0 a 1.0)
Meios expressivos (de 0.0 a 5.0 pontos)
Linguagem: se há variedade e precisão vocabulares; se há adequação dos tempos verbais; se a adjetivação (quando houver) é eficiente; se há defeitos lingüísticos, sintáticos ou semânticos; se há clichês de linguagem; se o estilo é adiposo, desajeitado, flácido ou desarmônico; se há acidentes de leitura (e); se há ritmo, melodia, musicalidade e imagens bem construídas; se há investimento do autor nos campos semânticos para melhor compor o tom e o clima da narrativa; se há clivagem; se a textura da linguagem é simples ou complexa, superficial ou densa; se há investimento do autor na construção de um significante geral, organizador da narrativa; se há investimento do autor em figuras de linguagem (caso a poética do analisador entender que tropos ajudam a compor literariedade). (0.0 a 5.0)
(a) Técnicas de diálogo: discurso direto; discurso indireto; discurso indireto livre.
(b) Perspectiva do narrador: onisciente seletivo; onisciente seletivo múltiplo; onisciente intruso; onisciente neutro; eu-protagonista; eu-testemunha; modo dramático.
(c) Focalizador = foco narrativo = ponto de vista.
(d) Técnica narrativa: narrador-câmera; fluxo de consciência; monólogo interior.
(e) Acidentes de leitura: trava-línguas; repetições de palavras; excessos; ambigüidades; imprecisões semânticas e conceituais; ecos; cacofonias; assonâncias; uso excessivo de “ques”; impropriedades em geral.
(6) Figuras de linguagem ou tropos: metonímias; sinédoques; eufemismos; catacreses; hipalages; lítotes; autonomásias; perífrases; anáforas; disfemismos; apóstrofes; clímax/gradação; hipérboles; polissíndetos; paradoxos; oxímoros; antíteses; quiasmos etc.
Oi, Charles!
ResponderExcluirObrigado por dar apoio ao Gauchão de Literatura!
Queria aproveitar o espaço e dividir o mérito com a Lu Thomé, que é quem faz as coisas andarem no projeto, e com todos os outros organizadores (Ana Mello, Carlos André Moreira, Daniel Weller, Fernando Ramos e Marcelo Spalfing), que apoiaram e ajudaram desde o início.
Abraço,
Rosp.
Poxa, Charles. Que contribuição deste a este jovem (novato, digo) e solitário autor! Nem imaginas!
ResponderExcluirAgora vou, primeiro, compreender tecnicamente a sua ficha de avaliação, lendo-a várias vezes e estudando os passos. Posteriormente, tentarei, como um professor de mim mesmo, aplicá-la friamente ao meu rebento, O Homem Suprimido.
Abraços paulistanos!, e obrigado!
Cesar
Sobre a crítica em geral, penso que há aquela que se pode aproveitar e a inútil, movida por sentimentos menores. Essa última, desprezo. A outra, procuro absorver tudo. De qualquer modo, ouço todos, por mais tacanha ou abalizada que me possa parecer.
ResponderExcluirQuanto ao CGL, acho interessante, pois dá mais publicidade aos livros que já estão em um universo tão esmpremido, de poucos leitores, etc, etc, etc.
No caso do livro do Marco de Curtis e da resenha do Rafael Jacobsen, como disse lá no site, considerei corajosa a opinião crítica, mas, não posso concordar com tudo que está ali. Obviamente, vejo com normalidade que surjam opiniões favoráveis e desfavoráveis e, penso que o autor, também, deve ver assim. O que talvez tenha me deixado surpreso - e olha que não me incluo no rol dos sensíveis - foi o modo como o "árbitro" qualificou o texto e o procedimento do autor. Ou seja, não foi o conteúdo da crítica propriamente, mas a forma como ela foi apresentada que, na minha modestíssima visão, às vezes, foi desrespeitosa.
Mas, como dizia o finado Vicente Matheus: "Quem está na chuva é pra se queimar".
Muito interessante o texto e a ficha de avaliaçao que o acompanha. Vou utilizar nos meus processos de autocrítica, com certeza!
ResponderExcluirUm abraço, Charles,
Marcel Citro
É claro, que se deve levar em conta todos esses critérios de enredo, se tem conflito ou não, se tem situações verossímeis, ver se o texto é bem elaborado, sem clichês e com linguagem e discurso adequados etc, etc....mas o que realmente importa mesmo é se tocar o coração...chegar na alma e aflorar o sentimento!
ResponderExcluirOlá Kiefer! Uma contribuição e tanto para quem está neste estágio de produção, seja amadora, seja profissional. Há muito o que se avaliar até mesmo dos profissionais (quem dirá dos amadores). Sigo meu inventário de ideias e acescento com toda a atenção devida às minhas produções. Muito obrigado! Abraço!
ResponderExcluirNão vivi o passado onde a literatura tinha uma importância social superior a da atualidade. O que posso dizer, é que enquanto existir pelo menos um indivíduo a encantar-se pela literatura, podemos sim, ter esperança. O encanto de um bom contador de estorias ao se deparar com a cegueira de um ou dois receptores em um bar, praça ou cemitério é suficientemente eficaz. O contador nato de estorias, talvez nem mesmo aquele que escreve, e sim o que conta causos. Se esse for um apaixonado pela literatura, devido a sua eficácia em prender a atenção de seu receptor, ele é capaz de tirar a venda que tapa a sensesibilidade do outro. Seja em uma citação ou em uma descrição de um livro, esse vivente tem o poder de aproximar outros da literatura. E se o outro, for tocado. Se o livro citado cair como uma luva no universo limitado do outro, com certeza abrirá outras portas para outros calabolsos de estorias. Um livro ao casar estranhamento no leitor, é mais potente do que qualquer viagra.
ResponderExcluirCharles, mais uma vez um comentário oportuno e corajoso. O material teórico que postas avaliza e destaca ainda mais a grande contribuição do brilhante e irritantemente jovem Rafael Jacobsen. O pessoal da Copa tá de parabéns por ter criado um jogo perigoso e ousado onde as obras desnudas explicitam suas fraquezas e as posições de defesa e ataque se acirram. A tática da Copa é mais enxadrista do que futebolista (mas a oportunidade midiática era imperdível) e como em um bom jogo, sobrevivem os fortes e destacam-se os talentosos (estes, independentemente de vitórias). Desejo que entre mortos e feridos brilhem todos (...e o brilho frio das estrelas/iluminam o metal dos risos esfrangalhados dos meninos/passageiros
ResponderExcluirdescuidados dos sentimentais caminhos... Poeta Capinam).
Charles, na tua "Poética", vi que valorizas mais a linguagem do que o enredo. Me fez lembrar do meu tio Nenê, o contador de histórias da minha família, lá em Uruguiana, há muitos anos atrás. Olha só o que ele dizia: "A história não conta muito, o importante é saber florear bonito com as palavras". Abraço
ResponderExcluirGraça