segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Anton Tchecov e a poética da simplicidade e da ressonância

Um escritor, disse Anton Tchecov a uma amiga, não é um confeiteiro, um maquiador ou um bufão, mas um repórter.

O que nos leva a uma primeira indagação:

– E o que é um repórter?

Ou mais que isso:

– O que um repórter deveria ser?

Um fato, em si, é apenas um fato. E um bom repórter é aquele que nos conta um fato sem interpretação, sem retórica excessiva e com a maior honestidade possível.

Sejamos repórteres e examinemos com atenção a obra de Tchecov.

Uma pesquisa em panorama, que abarque desde os contos de juventude até as peças teatrais da maturidade, passando pelas novelas e romances, estabelecerá seis fundamentos na arte do contista e dramaturgo russo, a saber:

1. Brevidade

2. Objetividade

3. Veracidade

4. Originalidade

5. Sobriedade

6. Generosidade



Tratemos de examinar cada um desses pontos.



Brevidade

Na terra de escritores verborrágicos como Dostoievsky e Tolstoi o advento de um escritor tão sucinto quanto Tchecov deve ter causado espanto. Mesmo em seus romances, Tchecov não se alonga, não se demora em descrições inúteis, não narra detalhes desnecessários.

Quais seriam as causas dessa economia verbal e narrativa?

A proposta de um texto mais enxuto havia sido lançada em 1842, nos EUA, por Edgar Alan Poe. E Tchecov, nos confins das estepes russas, quarenta anos depois, fazia algumas traduções de contos do escritor de Boston para o alfabeto cirílico. Ambos eram homens de imprensa, trabalhavam em jornais e revistas, e sabiam que a modernidade emergente e o capitalismo em desenvolvimento exigiam eficiência e rapidez. O tempo era do trem veloz e do texto curto.

Se em Poe ainda temos textos longos, cuja leitura requer talvez duas horas, em Tchecov o tempo de leitura se encolhe ainda mais. Seus contos podem ser lidos em dez, quinze minutos.


Objetividade

A objetividade, em Tchecov, é um elemento fundamental, estruturante de seu fazer artístico.

Além do olhar de repórter, que busca o essencial, que trata do que efetivamente pode interessar ao leitor, o olhar de Tchecov é o olhar do cientista, do médico.

Sabemos que são seis as funções da linguagem: a função fática, a referencial, a expressiva, a conativa, a metalingüística e a poética.

Em Tchecov, a função referencial é quase tão importante quanto a função poética, como se o cientista zelasse pela objetividade, e o artista, pela poeticidade da linguagem.

A função referencial, como diz Wander Emediato, “tem a intenção de informar o interlocutor, fazendo referência a pessoas, objetos e estado de coisas da realidade, levando até ele um conhecimento que necessita ou que é considerado importante”.

Características:

Linguagem denotativa, objetiva;

É centrada sobre o referente;

É informativa, narrativa e descritiva.

Anton Tchecov sabia que a realidade descrita com objetividade pode ser compreendida por qualquer pessoa. E ele queria ser lido por todos. Por isso, evitava o rebuscamento, a filigrana, o torneio sintático exótico, pois eles mais afastam do que aproximam o leitor.

No entanto, e especialmente nos contos da juventude, o escritor deixa-se levar pelo canto de sereia da função poética da linguagem, e usa algumas figuras, especialmente a metáfora e a metonímia. Nos nomes das personagens, às vezes, com a intenção de provocar riso, Tchecov apela para a metalinguagem, usando toponímicos engraçados, fazendo derivações e composições insólitas, mas que se perdem na tradução para o português.

Enfim, pode-se dizer que a mistura que Tchecov faz da linguagem referencial e da linguagem poética, com laivos metalingüísticos, resulta num bom equilíbrio estilístico, tornando seus textos facilmente compreensíveis e deliciosamente poéticos. Raymond Carver, nos EUA, foi o escritor contemporâneo que mais se deixou influenciar por essa aparente “simplicidade” e por esse estilo “jornalístico”.


Veracidade

Embora de recorte aparentemente moral, a veracidade artística diz respeito à relação que um escritor estabelece com seus personagens e não com o mundo real que o cerca. O que nos leva ao paradoxo de imaginar um escritor mentiroso na vida real, mas sincero como artista. Não sabemos se o cidadão Tchecov foi verdadeiro e sincero, e isso nem interessa. Mas o escritor, sim, o foi.

Qualquer conto, qualquer peça de teatro, qualquer romance de Tchecov, ressuma uma profunda veracidade. Estamos diante de personagens absolutamente verdadeiros. A qualquer um de seus personagens, poderíamos aplicar a máxima de Aristóteles: de que o personagem, para ser bem feito, precisa ser verossímil.

Poderíamos encontrar, por exemplo, a Dama do Cachorrinho em qualquer praia. Aliás, nesse exato instante, centenas de milhares de Damas do Cachorrinho entregam-se a seus amantes, em ateliês de pintura, em gabinetes de estudo, em motéis. Mais de um século depois, ao lermos um conto de Tchecov, sentimos, ainda, que seus personagens estão vivos. As vidas que eles vivem poderiam ser vividas por qualquer um de nós. Por isso é que sentimos tanta compaixão por eles.


Originalidade

No contexto russo, em que os escritores se dedicavam aos grandes panoramas épicos, como Tolstoi, ou aos grandes conflitos da alma, como Dostoievsky, a literatura de Tchecov, que descrevia o cotidiano sóbrio e sem brilho de homens e mulheres comuns, foi de uma originalidade sem precedentes. A pequena classe média que sequer emergira, e que seria contida pela revolução bolchevique em marcha, poderia ter encontrado nele o seu cantor. O realismo socialista, imposto por Stálin, valorizou o soldado, o camponês, o burocrata fiel. É de se supor que agora, com o fim da era soviética, e quando o capitalismo russo for capaz de constituir uma nova e sólida classe média, Anton Tchecov venha a tornar o seu grande representante.

Talvez Anton Tchecov não tenha sido original quanto aos temas que abordou, já que na década de 80 do século 19, escritores como Hart, Crane e outros já se dedicavam à vida miúda, mas quanto à linguagem foi originalíssimo, fazendo uma perseguição implacável ao lugar comum, por exemplo. São inúmeras as cartas em que manifesta ojeriza às platitudes.

A originalidade maior de Anton Tchecov está no recorte que faz da cena: ele narra e/ou descreve somente o essencial, permitindo que o leitor seja um ativo participante da trama. A este processo chamamos de ressonância. Ou seja, a história que acabamos de ler continua ressonando em nossa consciência, muito tempo depois da leitura. Nessa incompletude, nessa indeterminação, nessa abertura reside a grande originalidade de Tchecov. Hoje, quando tantos escritores fazem isso, parece simples e fácil. Mas o simples e o fácil é difícil quando se é o precursor de um novo modo de narrar.


Sobriedade

Nada, em Tchecov, é bombástico, altissonante, exagerado. Frugal e sóbrio, lembra os artistas japoneses, que num único traço desenham um extraordinário passarinho. A cena de Iona Potapov, por exemplo, aquecendo as mãos no bafo da égua e contando-lhe aquilo que os humanos não se dispuseram a ouvir, é de uma sobriedade franciscana, mas tem um efeito devastador. Este tipo de composição de cena, de narrar o extraordinário como se fosse a coisa mais simples do mundo, é muito freqüente nas narrativas de Tchecov.


Generosidade

Embora se pudesse, aqui, alardear a generosidade de Tchecov, capaz de exercer a medicina sem cobrar dos camponeses, capaz de construir escolas e hospitais, de ler com paciência os jovens autores e sugerir-lhes modificações em seus textos, perdendo o seu tempo precioso, já que a morte se avizinhava, não são questões morais que interessam aqui, mas artísticas.

A generosidade artística de Tchecov se revela no amplo espectro social de seus personagens. Proprietários de terra, militares graduados e recrutas, bispos e clérigos inferiores, comerciantes e camponeses, madames e prostitutas, professores e estudantes, cantoras líricas e donas de casa, todos os estratos da sociedade de seu tempo tiveram de Tchecov o mesmo olhar compassivo e generoso, a mesma paixão e solidariedade. A nenhum deles o escritor ridicularizou. Mesmo dos mais simplórios e ignorantes soube extrair o essencial de sua humanidade.

Por isso, pela brevidade, objetividade, veracidade, originalidade, sobriedade e generosidade este escritor se tornou um exemplo para jovens escritores e escritoras do mundo inteiro.

Katherine Mansfield, por exemplo, seguiu as suas pegadas. Raymond Carver, também.

A poética da simplicidade não é fácil, como pensam alguns. Às vezes, requer uma vida inteira de reescrituras.

5 comentários:

  1. ck, deus é deus! escolhemos ou somos "desescolhidos" (teoria da influência - Bloom)... aprendi contigo a me encantar com o mestre russo... leio com arrepios na alma VANKA, entre outros contos.
    ah, li teu novo llivro: PARA SER ESCRITOR... impressões e prática... parabéns. abraços, medina.

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  2. Charles,

    Perfeito este teu artigo sobre Tchekhov. Eu, como novato escritor que sou, já tive a fase que você muito bem especifica aqui: "o escritor deixa-se levar pelo canto de sereia da função poética da linguagem..". É isso mesmo. Impressionante como no início somos tentados a parecer eruditos, dominadores do idioma e de seus mistérios. Depois, como acontece na vida do homem ao envelhecer, nos vêm uma serenidade, um descompromisso com os demais. Aí estamos a caminho da simplicidade, onde reside tudo o que há de melhor.

    Digo tudo isso porque, como escritor, vivo justamente esta fase. A fase de procurar o simples, de me encantar com o simples, o singelo. Como você explica neste trecho: "...o cotidiano sóbrio e sem brilho de homens e mulheres comuns"

    Oh, e como é difícil ser simples!

    Excelente aula, Charles.
    Obg.,

    Cesar Cruz
    S.Paulo, Capital

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  3. não tenho nenhuma pretensão literária, e nem gosto de escrever tanto assim...{ talvez, algumas coisinhas, em segredo, somente pra mim}mas adoro ler, principalmente teus livros. Ja li todos. Adoro teu estilo e tuas aulas são ótimas!!! tu e o Juremir são meus escritores prediletos bjsss

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  4. Breve e brilhante, como o mestre russo. Valeu, CK! beijo

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