sábado, 26 de dezembro de 2009

Haicai: uma dialética

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

Um ofício estranho

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Três modelos teóricos

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O guardião da floresta

Sempre que penso em escrever sobre meu clássico preferido entro num labirinto, ou num bosque, como diria Umberto Eco. São tantas as árvores seculares, tantas as trilhas, que acabo andando em círculos.

Diante de qual delas devo me deter e investigar com mais atenção? Os fungos, os liquens e as trepadeiras que se agarram a seus troncos sólidos e bem enraizados até que as enobrecem, reforçam seu caráter de eternidade.

Também em relação aos livros basilares, os epígonos, com suas afiadas gavinhas, antes de prejudicá-los colaboram na criação dos sistemas literários.

Sei que estou girando em torno da árvore, sem coragem ainda de escolher uma no meio da mata e abraçá-la. Poderia aproximar-me mais desta aqui, um Flaubert legítimo, ou desta outra, um Tolstoi embaraçado em longas barbas-de-pau.

A copa alta e digna daquela tem o porte de Madame Bovary; este galho — Ivan Ilitch — parece apoiar-se no ombro de um empregado.

Sigo adiante e encontro algumas sequóias gigantescas, pura hybris. Suas folhas despencam no chão e se transformam no húmus de que as outras se alimentarão.

Sófocles, Eurípedes e Ésquio, indiferentes ao bulício da floresta, apenas farfalham.

Descanso um pouco à sua generosa sombra, no vento escuto o dorido lamento de Édipo, o ranger de dentes de Medéia, o brado de insubmissão de Antígona.

Continuo a caminhada. Sei que devo escolher uma, apenas uma, talvez este Shakespeare, de frutos amargos e variados; quem sabe este Proust silencioso, coberto de cortiça? Ou esta, reunião de muitos livros e destinos, Bíblia chamada?

Do outro lado, densos cipoais enlaçam Crane, Poe e Tchecov. Dou mais um passo e deparo-me com esta, estranha, de espinhos no tronco. Ainda lívida e trêmula, tem o aspecto de quem, nesta manhã invernosa, houvesse sido transformada num asqueroso inseto. Adiante, retorcida, tensa, fera na selva, Henry James me espreita.

No meio da neblina do labiríntico bosque da ficção clássica, percebo uma sombra e me recordo de Virgílio a conduzir Dante num outro inferno. Tem o passo claudicante, bate nas árvores com uma bengala, parece reconhecê-las pelo som que emitem. Não se assuste, ele me diz, sou o guardião da floresta. A um passo de distancia, percebo que meu futuro guia, Jorge Luis Borges, é cego.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O Jardim do Eden é aqui

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domingo, 13 de dezembro de 2009

Ainda sobre lançamentos em bares e assemelhados...

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Acerca de lançamentos

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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O gaudério maneta

Once upon a midnight dreary chegamos — eu, caindo de sono, e o Luiz Antonio de Assis Brasil, exausto de fadiga — a uma curiosa e esquecida cidade ao sul de Pau-d’Arco e muito próxima de Pasárgada. A viagem de ônibus fora longa e trepidante, e era no meridional novembro. Esperamos longo tempo na rodoviária deserta, a andar de um lado para outro, e como ninguém aparecesse para nos apanhar tomamos um táxi para o hotel. Numa sinaleira no centro da cidade, no instante em que o motorista perguntava de onde vínhamos, alguém encostou um revólver na sua cabeça. O sujeito, maneta, de chapéu, lenço vermelho ao pescoço, bombachas, botas e esporas, queria perseguir uns desafetos, ou sabe-se lá o quê, e precisava do carro! Lívidos de espanto, como o poeta que recebeu a visita do Corvo no poema de Edgar Alan Poe, pedimos para descer ali mesmo, a gente dava um jeito na vida, com mais calma.

— O hotel é logo ali, ó — disse o taxista e apontou para trás. A entrada em cena do pistoleiro de um só braço livrou-nos de passear um pouco mais às custas da desonestidade. Antes que o tiroteio começasse, pegamos nossas bagagens e procuramos abrigo no hotel.

— Tenham uma boa noite — murmurou o Assis, sem perder a elegância, antes que nos afastássemos.

Nonada, tiros não ouvimos, mas cantorias sim, a noite inteira. De um lado, a zoada de um baile; e, de outro, um grupo de adolescentes bêbados. Só consegui adormecer quando a aurora surgiu matutina com seus dedos de rosa. Será que o Luiz Antonio teria saído para a sua costumeira caminhada como em Porto Alegre sempre faz?

Mais tarde, no refeitório do hotel, vi-o com olheiras de Baudelaire. Espartano, apesar de indormido, saíra sim. Entre uma fatia e outra de melão, ficamos a imaginar continuações para o caso do tropeiro mutilado. Em que revolução perdera o braço? Num jogo de truco? Numas carreiradas? Vítima da talidomida? E se o motorista tivesse reagido e no meio do entrevero nos sobrasse chumbo quente? Bolamos manchetes para os jornais, chamadas para os noticiários de rádio e TV. Tínhamos a pretensão de imaginar que um desfecho insólito nos colocaria, enfim, na primeira página! Depois, vieram nos buscar para o encontro com os alunos.

Ao meio-dia, fomos arrastados para uma churrascaria, onde, além de carne gorda, emborcamos alguns copos de cerveja. Quando meu companheiro de viagem fitava os garçons com aquele olhar fixo de quem adormeceu sem fechar os olhos, sugeri à anfitriã que me deixasse no cemitério. Sugeri, com a maldade que me é inerente, que o Assis Brasil nos acompanhasse. Como ele não é de fugir da raia, topou. E lá fomos nós, sob um sol abrasador, levemente altos, passear entre as tumbas, nesse silêncio respeitoso que a morte sempre impõe. Sobre o ombro de um anjo barroco, vi um pássaro negro. Chupim, pensei. Never, ele poderia ter grasnado, mas calou. O que se ouviu, subitamente, foi a voz da professora. Diante de um pequeno mausoléu, contou-nos a história de um menino que tivera um braço amputado num acidente no início do século. A mãe, zelosa com a integridade do filho, mandara embalsamar o braço. Homem feito, o mutilado desentendeu-se num bolicho, sacou o revólver, mas não chegou a fazer pontaria, o outro foi mais rápido. O bracinho embalsamado seguiu o corpo ao caixão.

Nossa cicerone sequer havia terminado a narrativa, eu e o Assis gritamos: “É minha! A história é minha!”. Eu ia dizer ouvi primeiro, mas me detive a tempo. Decidimos no palitinho a quem pertenceria o episódio. O bracinho embalsamado repousa hoje no nicho que lhe convém, no segundo andar do casarão Brechen, no interior de meu romance Os ossos da noiva.

Ao relembrar, compadre Assis, aquela viagem, fiquei meio sestroso: o gaudério da madrugada, agarrado ao 38, não te pareceu estranho? Aquele rosto macilento, esbranquiçado e enfermiço, era efeito só da luz da lua? Luiz Antonio, tu que estavas sentado no lado esquerdo do táxi, ali a um passo, ou a um braço, do vivente — viste ou não viste o reflexo do maneta no espelho do retrovisor?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Desaforismos (1)

Do coração

Não faço mais poemas bucólicos.

O coração já não pasta.


Da lingüística

Ora, direis, pensar em decassílabos!

Prefiro as sílabas.


Da noite

Era noite alta.

Caí da cama.


Da TV

Ciclópico olho quadrado.

Fita as coisas na sala.


Da xícara

Toda molhada, ela se dá

inteira aos lábios lúbricos.


Do guardanapo

Desconfio que napo

seja sinônimo de baba.


Da leitura

Para se ler A montanha mágica

é preciso fôlego de alpinista.


Da verdade matinal

Quando lavas o rosto não sentes

que acaricias uma caveira?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Antes que a Feira do Livro de Porto Alegre desapareça!

Escritor mente, político mente, todos mentem, mas a matemática não mente. Se não mentem os números apresentados pela Câmara Rio-Grandense do Livro, números consignados nos balanços de finais de feira, a maior festa literária de nossa cidade está definhando.

Vamos aos números, que eles são apolíticos, não têm ideologia, servem apenas para a interpretação da realidade, por mais dura que ela seja.

Em 2005, a Feira do Livro vendeu 530.980 exemplares; em 2006, vendeu 472.348 exemplares; em 2007, vendeu 459.521 exemplares; e, em 2008, vendeu 424.046 exemplares. Uma retração, em quatro anos, de 106.934 exemplares! É pouco? Vinte por cento de queda nas vendas é pouco? Arrisco um palpite: em menos de 10 anos, estaremos vendendo, no máximo, 200 mil exemplares por edição da feira!

Alguém aí poderia me dizer quantos automóveis foram vendidos, ano a ano, em Porto Alegre, desde 2005? Garanto que lá, nas revendas automotivas, naquele produto um “pouco” mais caro que o livro, houve uma evolução muito positiva. Ou não?

Senhores, a Feira do Livro de Porto Alegre está se encolhendo rapidamente. Se as nossas estratégias não forem alteradas, e elas não são simples, e não há espaço aqui para discuti-las, os nossos filhos serão obrigados a “fechar o bolicho”, como se dizia na minha terra natal.

Discurso é discurso, comércio é comércio. Discurso vive de ilusão, de fantasia, de desejo sublimado. Comércio vive do tilintar das moedas. E sem moedas, o discurso se transforma em saudade do passado. Não é de hoje que murmuramos pelas alamedas floridas da praça, “como eram boas as feiras de antanho”! Mais um pouco e faremos um Centro de Tradições da Feira do Livro!

Urge convocar a sociedade local para um amplo e profundo seminário sobre as estratégias para o futuro da feira. Como apaixonado pelo evento, e seu participante desde 1977, convoco a CRL, a Prefeitura, o Governo do Estado, a Imprensa, as Associações de Escritores, a Câmara de Vereadores, o Parlamento Gaúcho e demais interessados, para uma reflexão sobre o assunto. Se meu discurso não convence, atentem para os números. Eles são silenciosos, frios e irretorquíveis!

Ou, nas próximas edições, os antigos freqüentadores da feira ficarão em casa, lendo os seus e-books, navegando na Internet, fazendo palavras cruzadas! E eu vou abrir uma empresa de pronta-entrega de pipocas!

Charles Kiefer

domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre concursos literários

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

domingo, 25 de outubro de 2009

Adjetivar ou não, é uma questão?

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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Apresentação de “O pêndulo do relógio e outras histórias de Pau-d´Arco”

Gosto de ver estas três histórias reunidas num só volume – todas se passam em Pau-d´Arco, a cidade ficcional que inventei em 1982. O pêndulo do relógio talvez seja o meu texto mais seco, mais econômico e mais sofrido, como é a vida dos colonos mini-fundiários de minha terra natal, onde não cantam as jandaias, que as árvores todas foram derrubadas para o plantio de soja. Mas este livro raquítico, de frases sincopadas, de capítulos minúsculos, me deu a primeira grande alegria literária – uma estatueta do Jabuti, o prêmio da Câmara Brasileira do Livro, aos 26 anos. Prêmios, num país que dá tão pouca importância à literatura, são selos de autenticação, abrem portas, consolidam carreiras. Não me senti vaidoso com a honraria, mas cresceu em mim o sentido de compromisso, de auto-exigência e de postura artística. Outros prêmios vieram, mas nenhum foi tão importante como aquele, pois ele afirmava que era possível que o coloninho de Três de Maio se transformasse em escritor. E agora, tantos anos depois, ao reeditar a obra em cuidadosa nova edição, ampliada de outras duas histórias, comovo-me outra vez.

Nós, escritores brasileiros, somos como aquele personagem da literatura grega que tanto me fascinou na infância. Empurramos a pedra montanha acima e não desistimos, despenque ela, montanha abaixo, quantas vezes o destino quiser.

Na história de Alfredo Müller, o protagonista, o pêndulo parou. Na minha, não. Continuei escrevendo outras histórias, povoando a minha cidade inventada com outros dramas, outras lutas, outras desgraças e outras vitórias. Vinte e cinco anos se passaram desde a primeira edição, e os pequenos agricultores de meu país não só perderam as suas propriedades como foram parar na periferia das grandes cidades, nos acampamentos de sem-terra. Relendo a obra agora, me dou conta que ela não envelheceu, que ainda mantém a contundência, que ainda pode ser lida pelas novas gerações. Esta é a décima vez que ela desce ao prelo, e não será a última.

"A traíra" também se passa em Pau-d´Arco. De certa forma, o narrador poderia ser neto de Alfredo Müller. Essa história, publicada em 1992, me deu dois prêmios, o Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, e mais um Jabuti. Gosto do meu tom melancólico e dos ecos de Nick Adams, o grande personagem de Hemingway. Aquele deslocamento, aquela incompreensão de que meu narrador se sente vítima, ainda hoje me persegue. O albatroz, de Charles Baudelaire, explica melhor isso tudo, mas eu só li o poema muitos anos depois de haver escrito a história.

E "O poncho", publicado em 1996, não me deu prêmio nenhum, exceto o de sentir a impagável sensação de ter escrito uma boa história. Ao relê-lo, ainda me emociono, e é como se eu próprio visse um poncho dependurado num canto do quarto. Ele representa tudo aquilo de que não conseguimos nos livrar. A influência aí é de O capote, de Gogol, mas não na linguagem. O núcleo do enredo é antigo, data do século XII, no Japão: a história de um homem que vai à guerra e que, ao regressar, muitos anos depois, reencontra o fantasma da noiva que abandonou. Eu não conhecia a narrativa japonesa, mas conheço a força do mito, que renasce em todos os tempos e em todos os lugares. No fundo, estamos reescrevendo sempre as mesmas histórias, ora na pele do camponês sedentário, que, sem ter viajado, imagina as maiores peripécias, ora na pele do viajante marinheiro, que, ainda insatisfeito com tudo o que viveu em suas andanças, mente desbragadamente.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A morte do livro

(Publiquei este ensaio em 1997, num livro a que chamei de O guardião da floresta. Agora que o e-book chegou, o que disse virou profecia.)

Uma questão aterroriza editores, livreiros e escritores: a morte do livro de papel, do volumen, este objeto quase sagrado para alguns, peçonhento para outros e indiferente às massas.

Um rápido exame da personalidade de gente que pensa assim nos leva a uma conclusão óbvia: são editores provincianos, atrasados no sentido lato do termo, e mal-informados. Sentem- se, quase, como que os inventores do livro. A multimídia não lhes está roubando um produto, mas uma visão de mundo. Não é por nada que os livros de papel são quadrados ou retangulares, atraem insetos, emboloram e fazem orelhas-de-burro (nas desastrosas edições sem orelha). Os livreiros que temem o livro eletrônico são, em geral, comerciantes tacanhos, que não enxergam além da prateleira ou do balcão, tanto se lhes dava se vendessem batatas, ilhoses, sardinhas ou as obras de Shakespeare, Dante e Cervantes, para ficar com a trindade da Idade Média (não por acaso, foi mais ou menos nessa época que o suporte material do livro começou a tomar a atual e indefinitiva forma). Livreiros desse naipe recusam-se a comercializar em seus armarinhos, ou diremos livrarinhos?, os produtos da multimídia, que têm inclusive o mesmo formato do livro comum. Até nisso os editores da nova tecnologia são mais avançados. Sabem utilizar bem o fetichismo do tamanho. Os escritores não conseguem compreender o que está acontecendo. Estão mais preocupados com a questão do direito autoral, como se ganhassem rios de dinheiro, e com a crítica, como se crítica literária, no final do século XX, tivesse qualquer importância.

Na verdade, o livro, o grande livro, o livro mundial, está nascendo. A Biblioteca de Babel, sonhada por Jorge Luis Borges, já se tornou realidade via Internet. Nenhuma nova tecnologia, jamais, em lugar algum, destruiu uma antiga, mas apenas aperfeiçoou, incrementou e popularizou a que existia. A mudança nos meios de produção trará, é claro, alterações profundas nas relações entre editores, livreiros e escritores. O que já vem tarde, que a hipocrisia é medonha. O editor finge que edita, o livreiro finge que vende e o escritor se dá por satisfeito, desde que seu livro apareça na vitrine da livraria. Na grande rede da infovia, todos serão leitores de todos. O problema, outra vez, será incorporar o máximo de excluídos ao sistema informatizado. A voz de meu pai, na já distante infância, afirmando que jamais poderíamos comprar uma televisão, me consola. Certo, alguns ficarão de fora. E quando, na incrível e triste história do gênero humano sobre a Terra, muitos não ficaram?

Meu Deus, alguns editores, alguns livreiros e alguns escritores estão se indagando, e o sagrado livro de papel? Sobreviverá, não tenham dúvida. E ainda mais, ficará mais atraente — já se percebe a mudança na concepção gráfica, no acabamento, no tipo de papel — e mais acessível aos pobres (produtos tecnologicamente superados vêem seus preços despencar. Ei, não está na hora de nossos sebos caírem na real, sem trocadilho, por favor, e venderem seus livros usados pelo que eles valem no mercado internacional?). O que o sistema editorial se recusou a fazer — verticalizar a produção e diminuir custos e preços — a indústria de reprografia fez. Por isso, a choradeira de editores, livreiros e escritores contra o xerox é melancólica, risível e ineficaz. Venha para o lado de cá e tente convencer um aluno sem dinheiro a pagar o triplo por um livro convencional.

A aura do livro de papel não vai cair na sarjeta, meu poeta, vai brilhar com mais intensidade. Hoje, depois que o videocassete e as Tvs a cabo trouxeram os filmes para dentro de casa, o escurinho do cinema ficou revalorizado. O livro, depois de vários séculos de imobilidade, encontrou um concorrente, o que há de levar os editores a se tornarem mais eficientes, os livreiros mais dinâmicos e os escritores mais informados, mas continuará sendo o melhor companheiro para as solitárias noites chuvosas, o melhor contrapeso para segurar portas, a não ser que se inventem laptops ou videobooks com cheirinho de mofo, poeira e buraquinho de traça e páginas para se acariciar.

(In: Kiefer, Charles. O guardião da floresta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997),

domingo, 18 de outubro de 2009

Apontamentos sobre "As metamorfoses", de Ovídio

Publius Ovidius Nasão nasceu em Sulmona em 43 a.C. e provavelmente morreu em 17 a.C. Segundo os manuais de história da literatura, que se copiam em cadeia infinita, foi um jovem talentoso e culto, brilhante e original, refinado, elegante, irreverente e irônico. Sobressaía-se entre os discípulos dos retores Arelio Fusco e Porcio Latro pela facilidade com que versificava. Seu pai quis vê-lo dedicado à carreira judicial, mas ele consagrou-se à poesia. Entre 20 a 15 a.C. apareceram suas primeiras obras, que tinham um caráter erótico, como as Heróides e Amores, escritos dentro dos cânones alexandrinos. Mais tarde, ao final do século I a.C., ou já na era cristã, publicou novas obras: A arte de amar, Os remédios do amor e Produtos de beleza para o rosto da mulher.

Depois de retratar a futilidade, a frivolidade e a inconseqüência dos poderosos de Roma, Ovídio dedicou-se a uma obra de grande envergadura, uma espécie de constelação mitológica, uma reunião de mitos e lendas sob o nome de As metamorfoses.

Inspirando-se em poetas como Nicandro de Colofon, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio de Nicéia, sua obra compõem-se de quinze livros em versos hexâmetros dáctilos, não mantidos na maioria das traduções, versos que organizam cerca de duzentas e cinqüenta lendas etiológicas sobre a origem dos mais diversos seres (mares, astros, fontes, plantas, animais) como produtos de metamorfoses.

Segundo Millares Carlo, o argumento do grande poema As metamorfoses “por sua prodigiosa variedade, se prestava a ser tratado por um poeta de tanta imaginação e facilidade como Ovídio, cujo mérito principal reside não só em ter impresso unidade à variedade inconcebível de acontecimentos, episódios e personagens (Deucalião e Pirra; Faetonte; Cadmo e o Dragão; Perseu e Andrômeda; Dédalo e Ícaro; Filemon e Baucis; Ifigênia; Hécuba etc.), mas também na diversidade de descrições e na mestria com que no mais das vezes soube evitar a repetição de procedimentos narrativos idênticos”.

Para Zélia de Almeida Cardoso, é difícil classificar-se o poema de Ovídio quanto ao gênero, já que ele não é, para ela, uma epopéia, apesar de seu tom épico e o emprego sistemático da narração, mas também não se caracteriza como um poema didático, pois se quiséssemos considerá-lo uma tentativa de explicação do universo pela teoria neopitagórica, esbarraríamos na falta de qualquer fundamentação científica, no superficialismo e no tratamento irônico e brincalhão dado a algumas lendas. Assim, Cardoso considera-o um poema lírico, já que encontra nele “uma sucessão de quadros coloridos e belos, onde não falta o movimento, a caracterização pessoal e a expressão da sentimentalidade.”

Para Ettore Paratore, ao abandonar o dístico elegíaco com que compusera seus livros anteriores e optar pelo hexâmetro na nova obra, Ovídio nos dá um exemplo do tour de force de sua inventiva caprichosa e do seu virtuosismo habilíssimo, entrelaçando, com achados técnicos os mais variados (por exemplo, inserir um ou mais contos dentro de outra narrativa, aliar um tema a outro baseado numa semelhança exterior, unir uma série de narrações por uma afinidade formal que os reagrupa etc), todos os mitos de transformação que a poesia anterior lhe oferecia.

Ao ligar com um tenuíssimo fio os numerosos episódios do poema – a alegoria da constante transformação dos seres e das coisas – Ovídio desenvolveu até ao inverossímil os artifícios da técnica helenística introduzidos na poesia latina por Catulo e por Virgílio, a técnica de inserir uma narrativa mítica dentro da outra (Catulo e Virgílio devem ter aprendido esta técnica com Homero, que na Odisséia a utilizou com grande eficiência).

Ovídio buscou apoios em todas as tradições culturais para dar ordem ao imenso e informe material que tinha em mãos. Procurou alinhá-los em perspectiva como uma história do cosmos e apressou-se a passar dos mitos gregos para a história de Roma, a cantar os prodígios monstruosos prenunciadores da morte de César e a esconjurá-la, e a improvisar um final filosófico-religioso que nobilitasse a sua longa insistência no tema da metamorfose.

Regina Zilberman, em prefácio à dissertação de Márcia Helena Saldanha Barbosa sobre O louco do Cati, lembra que a “metamorfose já se encontra na gênese do universo e acompanha pari passu a trajetória dos deuses e dos homens, mas que encontra-se igualmente na origem da própria literatura, porque Ovídio constrói seu poema à sombra de outras obras: abeberou-se em Homero, na tragédia ateniense, nas novelas de aventuras e na epopéia latina.”

Segundo Zilberman, Ovídio condensou a prosa e a poesia que o precederam e, a partir daí, serviu de inspiração inesgotável para a literatura, o drama e as artes plásticas. Criar é metamorfosear, ensina Ovídio. O mundo só adquire sentido depois de um deus conferir forma ao caos; um texto só ganha significado porque se constrói a partir de outro texto previamente existente mas que, por sua vez, só é entendido porque novos textos o iluminaram.

Tanto o cosmos quanto a literatura não têm início: eles principiam, mas algo sempre os precede; e esse precursor não representa nada, enquanto o sucessor não explicitar algumas de suas significações.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Um domingo de tsunamis poéticos

Sábado, dia 10 de outubro, estive em Recife, na VII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Com Marcus Accioly, participei de um sarau. Ele declamava um poema, eu lia um conto. Depois daqueles tsunamis produzidos pelos grandes poemas épicos de Accioly, meus contos pareciam buscapés molhados.

A superioridade da poesia sobre a prosa é estonteante. Só a completa vulgarização do mundo podia ter gerado isso que chamamos de ficção.

Foi uma tarde memorável. Temi, antes do evento, que teríamos três ou quatro ouvintes. Tivemos várias dezenas, auditório lotado. Que lá estiveram não para me ouvir, mas para ouvir o poeta.

No domingo, Accioly levou-me a Ilha de Itamaracá, onde ele tem uma casa de praia e vários barcos, além de cães que só faltam falar. Convidou-me a passear em alto-mar, a bordo de uma jangada.

"Nem amarrado", eu disse.

E finquei pé. Garantiu-me que era seguro, que se a jangada virasse não seria problema, ela não afundaria. Mesmo parecendo mal-agradecido, não aceitei o convite. No mar não entro, só em transatlântico, e olhe lá!

Ele perdeu o passeio, eu ganhei uma viagem a mares mais profundos e assutadores. Depois de compreender que eu não subiria naquela jangada de jeito nenhum, aceitou mostrar-me seus livros inéditos.

Assim, passei a manhã ouvindo-o ler trechos de seus 10 livros inéditos.

Fascinado e assombrado, aos 14 anos, na Biblioteca Pública de Três de Maio, eu lia Sísifo de Marcus Accioly. E neste último domingo, ganhei, e autografados, os livros Xilografia, Érato, Narciso, Guriatã e Poética pré-manifesto.

A cada dia mais me convenço de que vivo num estranho país. O maior poeta épico de toda a nossa história, só comparável a Homero, a Dante, a Eliot,  vive quase esquecido em Olinda, enquanto outros, que mais barulho que poesia fazem, são incensados constantemente pela mídia.

Se queremos um país de verdade, e não um arremedo, precisamos valorizar quem tem valor.

Ei, Luciana Villas-Boas, já te indiquei os dois últimos prêmios de literatura de São Paulo, o Cristóvão Tezza e o Altair Martins, e te indico agora, para publicação dos inéditos, e republicação dos livros antigos, o Marcus Accioly. Quando ele, publicado por ti, ganhar os grandes prêmios, me manda um queijo de Minas!

Se algum dos meus leitores imagina exagerada a minha admiração por Accioly, saiba que ele foi admirado também por Augustina Bessa-Luís, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Wilson Martins, Nely Novaes Coelho e Antonio Houaiss, entre muitos outros.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Amigas (Conto)

Quem podia imaginar que a Juliana ficaria tão chateada? Na hora de comprar os ingressos, só deu pra três. Na última hora, ela não pode nos acompanhar, e aí, na hora de pagar, vimos que faltava dinheiro. Dava pra três, mas não pra quatro. Usamos um pouco da grana que ela ela deu pra Camila, pra completar.

— Mas era o dinheiro para o meu ingresso — ela disse, furiosa.

— Tinha uma fila enorme, se a gente não comprasse naquela hora, depois, só em cambista.

— Se vocês fossem minhas amigas de verdade, não teriam comprado ingresso nenhum.

— E perder o jogo?

— Sim, a gente perdia o jogo, mas não a amizade.

Era a nossa melhor amiga, a mais festeira, não recusava convite pra nada, trabalho ou passeio, encarava todas. Fosse passear no shopping ou fazer trabalho em grupo, montar peça de teatro pra melhorar a nota de literatura. A gente não desgrudava nunca, as quatro sempre no fundo da sala, nem aí pro professor se esgüelando lá na frente. Ou bem aí, se a aula era de Química. Não pela matéria, um saco, mas pelo teacher, um baita gato. Nem na hora do recreio a gente desgrudava, ficávamos andando pelo pátio, paquerando os guris da terceira série, que os da nossa turma eram uns bolhas. Na hora do vôlei, quase formávamos um time, era só convidar mais duas, e aí não interessava quem, podia ser a Tatiana e a Elisa. Ou a Beti e a Clarisse. Desde que não fosse a metida da Aline-Nariz-Empinado. Êta guria mais cheia. Só os abobados da nossa turma agüentavam ela, faltavam carregar a dondoquinha no colo.

A idéia de ver a final do campeonato de basquete masculino tinha sido da Camila, que era louca pelo cestinha do Pitti-Corinthias.

Na segunda-feira, durante a aula de matemática, a Juliana recebeu o bilhete da Camila. Teve que disfarçar, porque o Aluísio, vulgo Banana, parece que tinha olhos nas costas. No instante em que a guria pegou o papelote enroladinho por baixo do sovaco, o Hipotenusa se virou com a lentidão da tartaruga de Aquiles e cravou os olhos de mal-amado nela. O silêncio tomou conta da sala, um silêncio denso e ansioso, aquele mesmo silêncio que se abateu sobre a gente na hora em que o Ayrton Sena seguiu direto pro muro. E ele veio, o professor de matemática, bólido, pisando firme, com o andar de ganso velho e gordo, os tacos dos sapatos ecoando além da sala de aula, retumbando dentro da gente. Ah, mas a Juliana era uma cretina, sabia mentir na lata, sem tremer a sobrancelha.

– Quero ver o bilhete – ele disse, a voz rouca de quem fumava feito maria-fumaça.

– Que bilhete? – ela perguntou, com inocência suficiente pra fazer corar os anjinhos do Michelângelo.

– Esse que a senhorita tem na mão.

A sala inteira concentrou-se na mão fechada de Juliana, por um segundo os planetas deixaram de girar ao redor do sol. Quarenta e oito pares de olhos, centenas de braços e pernas, paredes, portas e janelas, as carteiras da escola, os corredores, as escadas, os degraus, as ruas e as avenidas, as cidades ao redor de Porto Alegre, tudo parou por um breve instante, convergindo para os dedos longos de Juliana. Sádica, ela manteve o universo fechado dentro da mão por um longo tempo.

– Vamos lá – disse o Banana –, abra!

Juliana girou a cabeça, fitando a sala toda como se perguntasse: “Abro ou não abro?”. Deve ter visto em nossos olhos o desespero, era mais que evidente que o homem ia explodir, e abriu.

No princípio, ele concentrou o olhar, enrugou a testa, como se procurasse ver uma coisa muito pequena. Depois, foi ficando amarelo, vermelho, azulado, roxo.

– Quer ler a minha sorte? – ela perguntou e abanou a mão vazia.

Ninguém mais agüentou, a avalanche de medo represado arrastou tudo.

O Hipotenusa se arrastou até a mesa, recolheu o caderno de chamada, os livros, as canetas e os pedaços de giz, fechou a maleta 007 e sentou-se, a cabeça entre as mãos. Não era um bom sinal, por isso o silêncio retornou, mas desta vez como um nevoeiro que subisse lento do Guaíba nas frias manhãs de junho. Quando a gelatina de silêncio tinha se tornado compacta e pegajosa, ele pegou a maleta, levantou-a acima da cabeça e jogou-a contra o tampo da mesa. O estrondo deve ter sido ouvido até em Pasárgada.

– Tirem uma folha, vamos fazer um teste – ele anunciou, solene, carrancudo, os olhos faiscando de raiva, depois de quase matar todo mundo de susto.

Nem é preciso dizer que a Juliana foi a única a gabaritar o teste. Tudo o que o Hipotenusa queria era humilhá-la com uma nota baixa, mas a Juliana era linha-dura, fazia programa de estudo com a mãe, que também era professora. A velha perguntava e ela respondia. Pra gente, mais de seis era a glória; pra ela, menos de nove era tragédia.

Na hora do recreio, depois do suplício do teste de matemática, a Camila perguntou:

– O que achou da idéia?

– Que idéia?

– Que te escrevi no bilhete...

– Não li, não deu tempo.

– Como não deu tempo?

– Engoli.

Deu um ataque de riso na Camila.

Era a nossa melhor amiga, agora anda aprontando cada uma. Roubou até o namorado da Márcia Batonzinho.

Tudo por causa da maldita final do jogo de basquete.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Eu assino o que escrevo

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

domingo, 27 de setembro de 2009

Questões táticas e estratégicas do Acordo Ortográfico

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

domingo, 20 de setembro de 2009

Labaredas na política gaúcha

(Publiquei hoje, no Jornal O Estado de São Paulo, o artigo que transcrevo abaixo):


A grande fotografia é aquela capaz de aprisionar um instante significativo e sintetizar num único quadro a história e suas contradições. E o grande fotógrafo, às vezes, é aquele que esteve com a câmera apontada exatamente para este ponto único no espaço onde o símbolo de um momento se condensa.

Nesta semana, em que principiamos os festejos de uma guerra que perdemos, e da qual estranhamente nos orgulhamos, ao acender a pira da “chama crioula”, este fogo que representa aqui a Revolução Farroupilha, a governadora Yeda Crusius viu-se envolta em chamas, e livrou-se por pouco de um grave acidente. Um escapamento de gás quase transformou a comemoração de uma tragédia noutra tragédia, sob as lentes de Daniel Marenco, o fotógrafo.

Diante das tantas situações estranhas, exóticas e inusitadas que envolvem a figura de nossa mandatária nos quedamos “pasmados”, como diria o Fernando Pessoa. Ou há, no estado, um gigantesco complô contra ela, capitaneado por “forças ocultas”, ou há nela uma gigantesca “força oculta” que faz com que atraia sobre si a fúria dos elementos (e nem só da oposição, pois os primeiros tiros vieram de trincheira amiga, de seu próprio vice-governador).

Mais que chamas, um mar de suspeitas nos assombra.

Nem bem nos recuperamos de outras fotos patéticas (ela carregada nos braços de um oficial da BM, depois que um palanque desabou; ela aprisionada na própria mansão, fotografada como que detrás das grades de uma prisão) e somos surpreendidos com mais esta pérola, ela sendo imolada simbolicamente pelas chamas, como que vítima de um sacrifício ritual. Um de seus mais fiéis defensores, e deputado, num instante de perplexidade, exclamou que a governadora devia ter atirado pedra na cruz!

Já não temos palavras e as fotos valem por mil, como se dizia antigamente.

A foto desta semana é, em si mesma, um retrato do clima incendiário que estamos vivendo já há vários meses, desde que surgiram suspeitas de envolvimento de altas lideranças políticas num esquema fraudulento que desviou 44 milhões de reais do Detran. Recentemente, acossado pelas chamas, o presidente do Tribunal de Contas afastou-se do cargo, para tratar da saúde. Há mais tempo, um alto servidor perdeu toda a saúde no lago Paranoá, e não sabemos ainda, conclusivamente, se foi por “morte morrida” ou por “morte matada”, como se dizia nos idos de nossa “gloriosa” república dos farrapos.

As labaredas da Operação Rodin já chamuscaram e destruíram a reputação de dezenas de pessoas, queimaram secretários, assessores, servidores, e estão levando o estado a uma situação patética, acirrando ainda mais o já natural clima de confronto que nos divide, raivosamente, em gremistas e colorados, governistas e oposicionistas, como já nos dividiu, no passado, em pica-paus e maragatos, assisistas e borgistas, monarquistas e republicanos.

O atual governo esteve envolto em chamas desde o seu começo. E, com o passar do tempo, muito combustível foi jogado na fogueira. Aqui, aliás, a política, desde sempre, é feita a ferro e fogo. Começamos com os bandeirantes, expulsando a fogo de bacamarte os religiosos espanhóis das reduções guaraníticas, passamos pelos incêndios das fazendas e das degolas (nas revoluções de 1893 e 1923), atravessamos o país com Getúlio Vargas armado até os dentes, nos entrincheiramos com Brizola no Palácio Piratini em 1961, tocamos as trombetas da guerra quando Olívio Dutra chegou ao poder, e agora, diante das suspeitas de corrupção, não damos trégua à primeira mulher que nos governa. A começar por Paulo Feijó, que ainda na campanha eleitoral, desentendeu-se com a então candidata. Se hoje as chamas chamuscam os cabelos da primeira dama, o primeiro incendiário foi o vice-governador. Sem buscar consenso, fazendo política com arrogância e mão de ferro, desprezando os próprios aliados, oxigenando os conflitos com confrontos, a governadora semeou ventos e hoje colhe tempestades, inclusive de fogo.

Enquanto o gás explodia diante da governadora em grandes labaredas na pira simbólica de nossa guerra perdida, na Assembléia Legislativa outra guerra se declarava - a de seu impedimento por improbidade administrativa. Essa guerra que a oposição comanda repetirá os feitos de nossos guerreiros farrapos: serão energia e tempo perdidos, pois a base aliada já decidiu pela absolvição, por pragmatismo, independentemente dos indícios ou das provas, se surgirem. Se a governadora fosse afastada do cargo, assumiria Paulo Feijó, o terror dos pampas, o homem que gravou o subordinado que tentava explicar-lhe o funcionamento da realpolitik. De Bismarck, Paulo Feijó não tem nada. Se é difícil com Yeda, com Paulo seria pior, ponderam os velhos sábios da política. E se esse não pudesse assumir, por este ou aquele motivo, o cargo cairia no colo de Ivar Pavan, o presidente da Assembléia Legislativa, que é petista, o que pavimentaria o caminho para Tarso Genro.

Se a governadora for, realmente, inocente de todas as acusações que lhe impingem, se o Ministério Público Federal se equivocou ao incluí-la no processo que encaminhou à Justiça Federal de Santa Maria, estamos realizando aqui a maior e mais vil injustiça de todos os tempos. Se assim for, o futuro nos acusará de termos feito o seu linchamento pelo simples fato dela ter sido uma mulher forte e determinada, capaz de mexer em feudos corporativos, e também por ter sido “estrangeira”, mais precisamente paulista.

Neste dia, então, é bom que se apague, definitivamente, a tal de “chama crioula”, e que se acenda outra, a “chama da nossa vergonha”, diante da qual deveremos nos persignar e orar à Santa Mártir que nos governou.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

De diamantes esquecidos (e escondidos)

De diamantes esquecidos

Postei hoje (em http://gosteimuito.blogspot.com) um pequeno conto chamado “Sumô”, de Carlos Stein. Se eu fosse mineiro, estaria agora num saloon, festejando esse achado, um verdadeiro diamante esquecido da literatura brasileira!

Carlos Stein fez parte dos Nove do Sul, a famosa antologia de contos que revelou o talento de Caio Fernando Abreu, Moacyr Scliar, Josué Guimarães, Tânia Jamardo Faillace, Lara de Lemos, Sergio Jockymann e Ruy Carlos Ostermann. Lá, ainda estavam Cândido de Campos e Sergio Ortiz Porto, também desaparecidos (para a literatura, mas não para a história).

Por estes estranhos motivos e caminhos da vida de escritor, depois de um começo brilhante, Carlos Stein calou. E calado ficou por 40 anos. Em 1970, publicou um livro de contos que anunciava um grande escritor, Maurina. E, então, calou. Não tivesse parado de escrever por 40 anos, Carlos Stein estaria hoje, certamente, entre os grandes escritores brasileiros.

Há um ano, procurou-me. Queria freqüentar minhas aulas de oficina literária. Mas me pediu uma coisa difícil de compreender e mais difícil de cumprir. Que eu não fizesse menção ao seu passado, não revelasse a ninguém quem ele era, literariamente falando. Queria ser apenas um aprendiz entre aprendizes. Respeitei a sua vontade.

Mas nesta semana, depois de muita espera e indecisão, levei Maurina comigo, numa edição que guardo, a edição princeps. Levei-a e pensei: “Se der, peço autógrafo. Brabo comigo ele não há de ficar”.

Aproximei-me dele no balcão do barzinho e disse-lhe: “Tenho um pedido pra te fazer: autografa pra mim” e estendi-lhe o velho exemplar. Enquanto ele rabiscava o autógrafo, senti o brilho em seus olhos, senti renascer nele o “autor”, e pedi-lhe autorização para revelar, em aula, quem ele era.

E o escritor, que nunca morre, que nunca desiste, topou!

E (estranhas coincidências que sempre me acontecem) justo neste dia ele trouxera, para apresentar em aula, a reescritura de um conto seu, que faz parte de Maurina, o delicado e triste “Sumô”.

Depois da leitura e do silêncio respeitoso, pedi-lhe ainda que me permitisse postá-lo no http://gosteimuito.blogspot.com

Topou!

E mais, aceitou a minha sugestão de reescrever todos os contos, para relançarmos, com festa e champanhe, uma reedição de Maurina, depois de 40 anos.

Topou!

Se eu fosse mineiro, depois de achar uma pepita deste tamanho, não devia estar num saloon, comemorando?

domingo, 6 de setembro de 2009

A nova edição de Os Ossos da Noiva

Acabo de revisar a nova edição, a quarta, de Os ossos da noiva, que sairá na Feira do Livro de Porto Alegre deste ano, publicado pelo selo Amarylis, da Editora Manole.

É uma edição requintada, com ilustrações (de Hélio de Almeida) que são verdadeiras filigranas. O pintor captou a essência do livro e da história. Se fosse pintora, Circe Brechen, a protagonista, faria desenhos desse naipe, e com essa delizadeza.

Vivo um momento raro e ímpar na vida de qualquer escritor. Ainda em vida, vejo a reedição de todos os meus livros. Poder retomar as antigas histórias, revisá-las, reescrevê-las, se necessário, é uma experiência muito interessante.

Não mexi nesta novela, exceto uma ou outra correção lexical ou semântica. Seria arrogância, e inciência, chamar a este livro de romance. Minha novela, depois de treze anos de sua publicação, resistiu, tanto na forma quanto no conteúdo. E isto dá uma sensação boa, de aceitável orgulho: fiz um bom livro, apesar da idade.

Dizem alguns críticos e teóricos que somente se escreve bem depois dos cinquenta, depois de se atingir a muturidade. Escrevi Os ossos da noiva aos 34, 35 anos.

Um dia, num pequeno restaurante da avenida Cristóvão Colombo, na zona norte de Porto Alegre, onde eu costumava almoçar, fiz amizade com um casal de Santo Ângelo. Ela, uma loira exugebrante; ele, um negro alto e sorridente. Haviam abandonado a sua terra natal por causa do preconceito.

No dia em que os conheci, estava à mesa do bar escrevendo um dos capítulos de Os ossos da noiva.

Sou fascinado por coincidências. Assim, não me acanhei. Apresentei-me, disse-lhes o que escrevia, uma triste e trágica história de amor entre uma branca e um negro.

Ainda nos encontramos algumas vezes, no Bar do Alemãozinho. E eles sempre me perguntavam sobre o andamento do livro. Depois, quando o lancei, na Feira de 96, compareceram à sessão de autógrafos.

Nunca mais os vi. Minha memória não lhes reteve os nomes.

Se, por estas injunções do destino, algum deles estiver lendo estas linhas, faço-lhe um pedido. Faz contato (charleskiefer@uol.com.br). Quero lhes dar um exemplar da nova edição, autografado.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Jorge Amado e sua gente

Regressado de Salvador, e ainda gestando os comentários que farei aqui a respeito da viagem, transcrevo a palestra que fiz na Academia de Letras da Bahia:

"Jorge Amado e sua gente"

Senhoras e senhores,

Meu primeiro impulso, ao receber o convite de participação para este evento, foi o de dizer não. Embora eu seja formado em teoria da literatura, não sou especialista na obra de Jorge Amado. Fiz um mestrado sobre Mário de Andrade, em que analisei mais de quatro mil cartas, extraindo delas a visão do poeta a respeito dos elementos conscientes e inconscientes da obra de arte, e um doutorado sobre Nathaniel Hawthorne, Edgar Alan Poe, Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar, autores com os quais trabalhei por mais de uma década, para compreender as variantes estéticas do conto moderno, o fruto artístico mais luminoso do capitalismo emergente e da industrialização iniciada no século XIX.

O conhecimento acadêmico, como o sabemos, especializou-se de tal forma, concentrou-se tanto, que já não há espaço para a mera opinião, para a declaração ingênua de gosto e para a manifestação pura e simples de admiração e ternura. Há trinta anos estudo o conto e suas variantes, e mesmo assim me sinto pouco conhecedor da história curta. E o que dizer, então, do romance? E o que dizer de um romancista como Jorge Amado, criador de um universo tão amplo e diversificado? Se alguém, no Brasil, pode ser comparado a Balzac, no campo da diversidade tipológica de personagens, este escritor é Jorge Amado, que faz o retrato dos representantes das mais variadas classes sociais, abrigando sob a sua pena uma miríade de seres, num impressionante recorte vertical da sociedade brasileira, que vai do lumpem e do proletariado urbano e do campesinato, aos extratos médios, como os profissionais liberais e intelectuais, aos grandes proprietários, banqueiros, militares de alta patente e componentes do clero, entre tantos outros. Paulo Tavares, na obra Criaturas de Jorge Amado; Dicionário Biográfico de Todos Os Personagens Imaginários, Seguido de índice Onomástico Das Personalidades Reais Ou Lendárias Mencionadas, de Elenco Dos Animais E Aves Com Nomes Próprios, publicada em 1969, fez um eficiente mapeamento das criaturas geradas pelo mestre baiano.

No entanto, ao mesmo tempo em que o professor e racionalista em mim queria recusar, queria declarar-se incapacitado, queria fugir da empreitada, o escritor, mais inconseqüente, e menos preocupado com os rigores formais, queria participar, queria opinar sobre um dos maiores romancistas da história brasileira. Venceu o último, e aqui me encontro, diante de vocês, muito entusiasmado, mas também bastante apreensivo.

Estou animado pela oportunidade de falar de um escritor de enorme importância em minha vida, o escritor que me ensinou que meninos de rua, trabalhadores braçais, prostitutas, soldados rasos, e outros aflitos e humilhados podem, sim, ser tratados ficcionalmente com respeito e dignidade. Além disso, Jorge Amado ensinou-me a não temer as minhas próprias opiniões, tivessem elas este ou aquele matiz. Com ele aprendi que escritores também podem, e devem, participar da vida pública, direta ou indiretamente. E que a literatura, por sintetizar os embates pessoais e sociais, por simbolizar os desejos e as pulsões, pode ser, muitas vezes, mais eficaz que o discurso político a respeito das mazelas de um povo.

Mas me confesso apreensivo por que me cabe falar dele em sua própria terra natal, em meio a sua própria gente, que são os maiores conhecedores de tudo o que ele escreveu, de tudo o que ele viveu. Imagino como seria falar de Sófocles na Grécia, de Shakespeare na Inglaterra ou de Goethe na Alemanha. Peço-lhes, pois, desculpas por este olhar estrangeiro, por este olhar pouco acadêmico a respeito do mais importante escritor desta terra. E peço-lhes também, e ao mesmo tempo, licença para falar dele como de um companheiro de ofício, como de um mestre que me ajudou a construir minha própria identidade de escritor e de cidadão brasileiro.

Segundo Stuart Hall, “a identidade preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-as “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados.”

No limite, posso dizer que devo a Jorge Amado boa parte da minha visão de literatura, especialmente no que diz respeito ao conteúdo social que também imprimo aos meus contos, novelas e romances. Meu primeiro contato com a sua obra se deu ainda na juventude, em Três de Maio, uma pequena cidade a noroeste do estado do Rio Grande do Sul, onde nasci. Descobrir em Gabriela Cravo e Canela, por exemplo, um Nacib em tudo semelhante ao Mahmud, dono de uma loja de armarinhos no centro de minha cidade, e amigo de meu pai, gerou em mim o singular espanto de constatar que a literatura não era só aquilo que eu encontrava nos romances de José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e Visconde de Taunay. Os personagens de Jorge Amado não eram seres distantes, de fala aportuguesa e maneirista, de vocabulário exótico e complicado. Os personagens de Jorge Amado, que escrevia no outro lado do Brasil, numa Bahia onírica e fantástica, podiam ser encontrados nas ruas da minha cidade, nos bares, nas praças, nas festas religiosas, misturados aos nossos próprios nativos. Se antes da leitura de Suor, Capitães de Areia e Terras do sem fim eu imaginava que a arte literária fosse “o sorriso da sociedade”, o “glacê no bolo”, depois dela passei a compreender que a literatura pode, e deve, ser muito mais. No pequeno espaço da obra, entre as duas capas, toda a vida social pode estar representada, como acontece nos seus romances. Com ele aprendi também que os autores podem afirmar os valores vigentes ou contestá-los, a depender de sua própria Ideologia, mas nunca ignorá-los. Lendo Jorge Amado descobri que eu também podia ser escritor, porque os homens e mulheres de minha cidade também tinham vidas suficientemente interessantes para serem contadas. Em Três de Maio havia também os Pedros Bala, as Doras, os Sinhôs, os Jucas Badarós, os Teodoros Martins e os Horácios da Silveira. Lendo Jorge Amado descobri que a literatura, por lidar com a palavra, o mais social dos bens culturais, no dizer de Jean Paul Sartre, não pode ser neutra, não consegue ser neutra, por mais intimista e subjetivista que se apresente. A literatura nos constrói enquanto indivíduos, criando um espaço imaginário onde existimos linguisticamente, e nos constitui enquanto sujeitos históricos, dando-nos a visão de mundo de que ela é a expressão. Gostar ou não de escritores do naipe de Jorge Amado diz muito a respeito de nossa própria identidade. Eu podia, por exemplo, gostar de Sidney Sheldon, ou de Paulo Coelho. Não gosto. Por que não me encontro neles, não me reconheço neles. Mas em Jorge Amado eu me encontro, eu me reconheço. Porque Jorge Amado me dá a noção de brasilidade e de cidadania, me dá a sensação de pertencimento a uma mesma nação, que meus avôs, imigrantes alemães, também ajudaram a construir. Sei que a identidade nacional, como disse Benedict Anderson, é uma comunidade imaginada. Talvez Mahmud, em realidade, fosse muito diferente de Nacib, mas nesse país imaginado e costurado pela literatura, eles eram a mesma pessoa. Este processo, por identificação e transferência, me fez íntimo de Jorge Amado, tão íntimo quanto um parente. Por isso, quando ele morreu, feneceu com ele uma parte da minha adolescência e do meu imaginário. Em mim, como Quincas Berro D´água, Jorge Amado morreu duas vezes. Uma, no plano real. E outra, no imaginário.

Depois de sua morte, disseram, e ainda dizem, que ele escrevia mal. O fato dele não ser um esteta, no sentido aristocrático do termo, de não ser um purista obsessivo da língua, como foram Machado de Assis e João Guimarães Rosa, não o torna um mau escritor. Como Jorge Amado, Lima Barreto, Fiodor Dostoievski e Roberto Arlt também escreveram mal, se por escrever mal se entende uma literatura mais de conteúdo social que estilística, menos de capricho de frase e de refinamento lingüístico, e mais de contundência erótica, vital. Jorge Amado, como tantos outros escritores, optou por expressar sua visão de mundo numa linguagem carnavalizada, pouco se importando, é verdade, com o burilamento expressivo, sem a preocupação exagerada da frase bem torneada. No entanto, mesmo nos momentos de maior descuido e de prolixidade, sua prosa é carregada de metáforas, de imagens poéticas que beiram o poema em prosa. Em Terras do sem-fim, por exemplo, há passagens de extraordinário lirismo. Este livro, não resta dúvida, é um monumento literário. No dizer do professor José Hildebrando Dacanal, é a sua melhor obra, e uma das mais típicas e bem realizadas do Romance de 30. A morte e a morte de Quincas Berro-d’Água, por seu turno, é uma das melhores novelas da história da literatura brasileira.

Jorge Amado, com Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Cyro Martins e Erico Verissimo, entre outros, construíram uma literatura com forte apelo social, voltada para os problemas brasileiros, uma literatura que desvendava o Brasil para os brasileiros, uma literatura em busca de identidade e afirmação, um passo adiante no projeto que seus pares românticos tinham iniciado quase um século antes. Os romancistas de 30, como são chamados pela crítica literária, abandonaram os salões da aristocracia litorânea e meteram-se nos grotões, revelando ao próprio país a vida dura dos seringueiros, dos retirantes, dos gaúchos a pé.

No mundo inteiro, e em todos os tempos, há sempre dois tipos de escritores: os estilistas e os conteudistas. Os primeiros, sacrificam o que dizem pelo modo como dizem. Os segundos, tratam de escrever “mal” quase que por dever programático, recolhem das ruas o falar popular, os miasmas dos esgotos, os fortes odores dos cortiços. Na prosa dos primeiros, encontramos os ademanes de linguagem, a ironia mordaz, o refinamento intelectual e a cinza teoria, no dizer de Goethe. Na ficção dos outros, identificamos a reprodução mais direta e brutal da vida, com suas lutas intestinas e sua linguagem descuidada. No entanto, ambos os tipos denotam que linguagem é uma questão de poder, que falar e escrever corretamente mais que uma questão cultural é uma questão política e econômica. Bastou o nosso presidente, por exemplo, ascender ao mais alto posto de mando da nação para que aos poucos sua linguagem fosse se transformando. A transformação ideológica foi só uma questão de tempo, em decorrência da transformação lingüística. Mas não por que a linguagem tenha, por si só, como queria Platão, essa capacidade, mas porque ela é o reflexo de transformações mais profundas.

Sim, até se pode concordar que Jorge Amado, em alguns momentos, escrevia mal, e que em sua fase mais panfletária chegou a ser maniqueísta. Mas não se pode negar seu extraordinário amor pelo seu povo e pela sua gente, não se pode apagar o exemplo fantástico de integridade e compromisso social que nos deu, nem se pode ignorar os romances plenos de vitalidade e de alegria de viver que escreveu.

Penso que Jorge Amado optou por esse estilo trágico-satírico em alguns momentos, estilo que comporta sim uma má escritura, cônscio de que essa era a melhor forma de transformar em arte um pouco desse triste e descuidado Brasil. O que lhe apontam como defeito pode ser uma de suas singulares virtudes. Aliás, tenho certeza de que esta é a principal virtude de sua literatura. Se tivéssemos, no Brasil, um crítico literário do porte de Mikhail Bakthin, capaz de compreender as conexões ideológicas entre a linguagem, a sociedade e o indivíduo, ele não teria dúvidas em apontar o escritor baiano como um dos principais representantes da polifonia e da carnavalização, ao lado de Dostoievski e Rabelais. O que chamamos de Homero, por exemplo, é a lenta sedimentação de um processo popular polifônico, que a tardia gramática helenista transformou em modelo de bem escrever. A depender dos rumos políticos que a sociedade brasileira vier a adotar no futuro, a depender de seu papel no concerto das nações, autores como Lima Barreto e Jorge Amado podem vir a ser paradigmáticos nesta espinhosa questão lingüística. O que sabemos hoje, neste momento histórico e no atual contexto, é que na obra deles cristalizou-se, de forma plena e fascinante, um outro Brasil, não aquele que, como uma emanação fantasmática, partia de São Paulo e do Rio de Janeiro em direção às províncias, mas aquele que brotava autenticamente do próprio chão em que nascia.

O que nos leva a outra questão, à discussão do que a crítica literária costuma chamar de regionalismo ou universalismo. Nos manuais de literatura, com sua pedagogia pedestre e sua teorização infantil, Jorge Amado aparece como um grande escritor regionalista! Um escritor que, apesar de ter nascido baiano, e de ter descrito a vida da Bahia, teria alcançado a universalidade!

No contexto de um mundo globalizado, na era da simultaneidade das comunicações e dos mercados, ainda é possível falar-se em local, regional, nacional e universal ou outras formas de caracterização sociológica do mundo do passado?

E em que consistiria – hoje – isso que chamamos de local e nacional?

Pode ser chamada de local uma história que se passa em Porto Alegre, no bairro Bom Fim, ou em Salvador, na Baixa do Sapateiro, mas que tem, por exemplo, personagens adolescentes que em tudo se assemelham aos adolescentes dos grandes centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos?

Pode ser chamado nacional um romance que trata de sujeitos fragmentados, contraditórios e não-resolvidos, como são os sujeitos da pós-modernidade, independentemente de terem nascido em Berlim, Hong-Kong, Salvador ou Passo Fundo?

Ainda podemos pensar em termos de regionalismo e universalismo na era das operações econômicas transnacionais, época em que conferimos a hora em relógios produzidos na China, em que andamos em sapatos fabricados em Cingapura?

São locais e nacionais os textos de autores baianos ou porto-alegrenses que “caem na rede” e que são acessados por qualquer pessoa em qualquer ponto da terra, textos que tratam da solidão, da violência e do sexo fácil na civilização contemporânea?

Ou estamos a entender, aqui, por locais aqueles textos e autores que são publicados por editoras com sede em nossas cidades e estados, e por nacionais aqueles publicados por grupos editorais do eixo São Paulo – Rio de Janeiro? E universais seriam aqueles publicados nos grandes centros capitalistas? Diante do paradoxo, os teóricos alegam que a universalidade se dá nos temas e no tratamento dos temas. Assim, a descrição da vida de um seringueiro é regionalista, mas a vida de um colhedor de laranjas norte-americano, não? Falar em cacau é regionalismo lingüístico; e
em Kiwi não?

Na fase pré-globalização, ainda se podia falar em centros hegemônicos, do ponto de vista cultural. Ou as coisas vinham de Paris, Londres e Berlim, ou de Nova Iorque. Mas hoje, com a descentralização do poder cultural, é possível usar essas mesmas categorias?

Desde sempre, me recusei a aceitar essas generalizações que chamavam de literatura regionalista aquela não produzida fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, sempre insisti que esta era apenas uma questão econômica, de fluxo de capitais e de informações. Se o dinheiro escorre do centro para a periferia, ele leva consigo, como numa enxurrada, os valores sócio-culturais do local de onde flui. Mas, quando a informação não depende mais do capital para escoar, ainda se pode pensar assim?

Em comparação com Nova Iorque, o que é produzido por São Paulo é bairrista, periférico e regional? Em comparação com o restante do país, a literatura de São Paulo é multicultural, central e universal?

Acredito que hoje, como sempre, a pergunta a ser feita é: De onde vem a informação? De onde vem o capital? Quem gera o quê e com que destinação? Uma vez estabelecidos esses fundamentos, podemos começar a discutir o local e o nacional, o regional e o universal, para contestá-los, para problematizar ainda mais a sua existência.

Uma das características da pós-modernidade, iniciada já em meados dos anos 40, é a multiplicidade. E penso que nesta própria discussão o múltiplo se instala. Não se pode mais ter certezas absolutas. O poder, e até o poder de compreensão, como tudo na era da globalização, se pulveriza, se multiplica, se descentraliza.

Descentralizada e múltipla, as forças culturais também brotam como cogumelos de verão pelo planeta. Hoje, se quisermos ver um filme produzido no Casaquistão, não precisamos mais esperar um ciclo especial de cinema casaque! Basta baixá-lo em nossos potentes computadores pessoais e vê-lo confortavelmente em casa, pirateado! Não é por acaso que hoje se fala em copyleft, o direito gratuito e universal à informação e aos produtos culturais. Gratuito? Mas as empresas de transmissão de dados não serão as grandes beneficiárias do novo sistema? Eles receberão dividendos, venderão os nossos textos, os meus e os do Jorge Amado, e nós não receberemos um centavo de direitos autorais? Enfim, é possível ainda pensar-se a relação de direitos autorais como a pensávamos ao tempo de nossa juventude? Não seria melhor liberarmos tudo na rede e criarmos novos mecanismos de remuneração do autor? Ou criaremos sistemas informáticos absolutamente autoritários, que bloqueiem tudo o que não for autenticado pela Microsoft, como pretende fazer o Nicolas Sarkozy? Mas, ao criarmos sistemas imunes à pirataria, não estaremos entregando, também, a nossa liberdade e o nosso livre arbítrio na mão de empresas e governos?

A verdade, por mais difícil que seja admitir isso, é que o Big Brother já nos vigia. Esta palestra, por exemplo, de alguma forma, pode ser acessada pela empresa de software que criou o programa de processamento de texto que utilizei para elaborá-la. Eles só não o fazem porque não tenho importância nenhuma. E por que a literatura, no admirável mundo novo que criamos, já não tem, também, nenhuma importância, a não ser como relicário da língua e estuário de nossos sonhos, desejos e fantasias. Se isto aqui fosse um plano terrorista, em poucas horas eu estaria preso. Não. Precavido, eu o digitaria numa velha máquina de escrever, como as que usaram Erico Verissimo e Jorge Amado.

Antes de encerrar este percurso que se iniciou com declarações pessoais, quero fazer mais uma. E que diz respeito a minha vivência como professor.

Às vezes, ao observar que meus alunos, filhos agitados da globalização, conhecem mais a vida afegã ou iraquiana, entristeço-me. E conhecem-na da leitura de romances aguados e rasos, e de filmes produzidos em série, pasteurizados e sem arte. São raros, entre os estudantes universitários, aqueles que ainda lêem, por exemplo, os nossos romancistas de 30, entre eles o próprio Jorge Amado. Mas é uma tristeza passageira, pois sei, pelo que conheço da história da literatura, que esses esquecimentos são geracionais e, portanto, passageiros. Mais adiante, quando o tsuname globalizante tiver homogeneizado tudo, ou quando voltarmos a uma nova idade média por conta das guerras de conquistas de mercados, travestidas de guerras religiosas, ou pelas pandemias provocadas pelo aquecimento global, por esgotamento e reação dialética os brasileiros hão de voltar às suas raízes. Por mais fragmentado e desnacionalizado que o sujeito do futuro venha a ser, para não mergulhar na completa alienação mental, chegará o momento em que ele retornará à pergunta essencial, que vem sendo feita desde a antiguidade: Quem sou? E, para respondê-la, como no encontro de Édipo com a Esfinge, só há um caminho. Sem se conhecer o próprio passado não há como se saber quem se é. Então, as leituras verdadeiramente significativas e substanciais serão retomadas.

Naquele dia, Jorge Amado, Erico Verissimo, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, e outros que ajudaram a construir nossa identidade, que forjaram a nossa nacionalidade, serão recolocados nas mesas de cabeceira. Ou injetados nos livros eletrônicos. Ou convertidos em memória virtual.

Sim, reconheço que isto pode não passar de um delírio romântico, como o final do romance Capitães de areia, mas foi exatamente com Jorge Amado que aprendi a acreditar em meus próprios sonhos, por mais absurdos que eles fossem.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sobre os comentários

Leio com atenção e carinho todos os comentários que meus leitores fazem neste blog. Tardiamente, aceitei a idéia de postar, e estou gostando muito da experiência. Venho de um tempo em que o escritor fechava-se numa redoma de vidro, no alto de seu castelo interior, e recusava-se a ouvir os comentários de seus leitores. Alguns, não davam entrevistas, não faziam palestras, fugiam do público.

Standhal orgulhava-se de ter 17 leitores.

Machado de Assis devia ter uns 300.

Ao longo dos 32 anos de minha carreira literária, vendi um pouco mais de 340 mil exemplares de meus livros. Se a UNESCO estiver correta, já fui lido por um milhão e setecentos mil pessoas. E nesse tempo todo eu não ouvia a voz de meus leitores. Agora, sim. Aqui, neste espaço, posso aferir a emoção que meu texto provoca. Ou a aversão.

Além disso, posso medir a reação que os comentários dos leitores exercem sobre outros leitores. É fascinante. Eis aí um bom assunto para uma dissertação de mestrado em teoria da recepção. Jauss deve estar rindo sozinho...

Vou à Bahia, fazer palestras sobre Jorge Amado na Academia Baiana de Letras em escolas, universidades e livrarias. Não sei se o acarejé, o vatapá, a Marta e a Sofia me permitirão escrever durante a viagem.

Então, até setembro.

sábado, 22 de agosto de 2009

Sete regras para viver com sabedoria

1. Viver com simplicidade, sem complicar, sem criar problemas onde não há problemas;

2. Amar sem culpa, essa peste da civilização judaico-cristã;

3. Não ter pressa, por mais rápidos que sejam os sentimentos;

4. Respeitar sempre a liberdade do outro;

5. Saber que as coisas são o que as coisas querem ser;

6. Dar antes de pedir;

7. Saber que todo sentimento amoroso traz consigo, enrodilhado em si mesmo, potências destrutivas. É preciso aprender a compreendê-las, dominá-las, sob pena de repetir sempre os mesmos erros.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Polêmica sobre as oficinas literárias

Saiu, enfim, o tão aguardado livro do professor José Hildebrando Dacanal, no qual ele enxovalharia e destruiria as oficinas literárias.

Aguardei a publicação de Oficinas literárias: caça-níqueis, estelionato e bordel, com tranquilidade, por conhecer o autor, pois fomos amigos por mais de duas décadas, e por saber que mais que destruir, ele tentaria explicar o fenômeno, e por saber que ele ampliaria e aprofundaria a discussão, divertidamente.

Quem conhece o Dacanal sabe que por trás da retórica agressiva há um coração generoso e carente. No alto da montanha, como Zaratustra, ele sente frio. Se nós, que vivemos na planície, pagamos o preço de suas chibatadas, ele, no alto da sua montanha, paga o preço da solidão. Como ele sempre me disse, sou um coloninho ingênuo. Nem por isso deixarei de emprestar-lhe um cobertor.

Li com atenção Oficinas literárias: fraude ou negócio sério? Confesso que eu preferia o título anterior, mais agressivo, mais polêmico e mais comercial.

Li e concordo com muita coisa. Aliás, num artigo que publiquei em Zero Hora, na década de 90, e que incluí em meu livro A última trincheira, eu já argumentava de forma semelhante. O ensaio se chama “O bem e o mal das oficinas literárias”.

A rigor, Dacanal afirma que há oficinas e oficinas. Ele não nega o fenômeno sociológico, não cita nomes, não ofende ninguém. Cumpre, apenas, seu saudável e socrático papel de pedagogo.

Nenhuma oficina literária que se preze afirmará ser capaz de criar escritores. A oficina desenvolve escritores. Aliás, elas se chamam oficinas exatamente por isso, por não serem fábricas de escritores. A fábrica é deus, a confluência entre o biológico e social, a tradição e o DNA. A oficina, como a etimologia desvela, é local de conserto e retoque, de polimento e pintura.

O livro do professor Dacanal é útil, importante e necessário. Ele coloca na pauta da discussão cultural um setor emergente, sobre o qual não se pode mais calar. Há uma semana, por exemplo, o Caderno Mais, da Folha de São Paulo, dedicou várias páginas ao assunto.

Eu já incluía na grande bibliografia de leitura de meus alunos de oficina os outros livros escritos pelo teórico e professor, especialmente o Era uma vez a literatura, bem como os clássicos Ensaios escolhidos e Pontuação: teoria e prática. Agora, acrescento mais este.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A revolta das coisas

Estou em estado de graça. Naquele estado de graça que só a arte requintada, elegante e sublime, como dizia o Falso-Longino, é capaz de gerar.

Recebi hoje, de minha editora carioca, Ana Paula Costa, da Record, as provas de meu novo livro, A revolta das coisas. O livro, graficamente, ficou magnífico, de uma beleza estonteante. Ao ponto de eu ficar meio acanhado, por achar que o texto não esteja à altura das ilustrações.

Quando acordei na CTI, naquele choque hipovolêmico já descrito em um dos capítulos de minhas memórias, veio-me ao pensamento duas coisas:

1. Não dei à Sofia a cachorrinha que ela tanto queria;

2. Não criei a Associação Jovem Leitor.

Assim que deixei o hospital, pedi que Marta comprasse uma cadelinha.

Bibi chegou e mudou tudo aqui em casa, inclusive a minha opinião, ou preconceito, sobre animais domésticos.

Essa experiência rendeu-me A revolta das coisas, uma novelinha infantil onde conto essa história toda.

Dentro de dois meses, ela estará nas livrarias do Brasil e todos hão de ver que tenho razão, que a edição é maravilhosa e que as ilustrações são de tirar o fôlego.

Por enquanto, mantenho segredo sobre o nome da ilustradora.

Já acertei com a Câmara Rio-grandense do Livro uma leitura pública da obra para o dia 01 de novembro, às 18h, domingo, no Cais do Porto, na Arena das histórias, área infantil da Feira do Livro de Porto Alegre.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Trilogias

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

domingo, 16 de agosto de 2009

Carta para Sofia

Filhota,

tive certeza da tua existência na madrugada em que tua mãe acordou e me disse que estava com vontade de tomar suco de laranja.


– Estás grávida – eu disse, sentando-me na cama.


Atravessei o longo corredor que me separava da cozinha com um sentimento de euforia imenso. Há muito queria ser pai outra vez. A Maíra tinha crescido tão rápido e eu fora pai tão jovem, que restava em mim uma sensação de incompletude, como se tivesse perdido alguma coisa, ou como se não tivesse conseguido ser o pai que planejara ser. Agora, ao reviver a experiência, compreendo que o pior da vida é o esquecimento. Vivi, sim, a infância da tua irmã com toda a intensidade que me foi possível. O problema é que não registrei, por escrito, o que senti.


Hoje, corrijo um erro do passado, ao escrever para o teu futuro. Um dia, lerás estas páginas e poderás lembrar de um tempo que, neste instante, mergulha vertiginosamente no vórtice das tuas sensações, descobertas, imitações primárias. E eu, se puder reler estas páginas, poderei encontrar nelas um homem de quarenta e quatro anos completamente fascinado com a aventura de acariciar tua pele de coelhinha saltitante, de contemplar o vasto céu azul de teus olhos incendiados, de sentir a força de teus maxilares de castorzinho inquieto.


Escrevo, Sofia, para lembrar.


E para te fazer lembrar de um tempo sem lembranças. Ainda não disseste a tua primeira palavra, mas já tentas te comunicar comigo com assoprões babados, com leves batidas de tua mãozinha no meu rosto, com arranhões na guarda do sofá. Tens, minha filha, uma extraordinária capacidade imitativa. Prevejo, sem corujice, que aprenderás com rapidez e profundidade. Sou professor e a prática ensinou-me que a curiosidade é a mãe da inteligência.


Hoje, a 31 de outubro de 2002, acordaste em meu colo e viste, por que compreendeste pela primeira vez, um quadro, dependurado na parede de teu quarto, onde sorri um menino azul. Por um longo tempo, teu olhar saltou dos bonecos em terceira dimensão, espalhados pelo assoalho, para a representação plana, aprisionada na tela. Numa visada aguda e significativa me encaraste, como a pedir explicação. Ou como a me dizer: São iguais, papai, mas são diferentes. Por repetidas vezes, quando olhei para outro ponto no quarto, tua mãozinha bateu no meu peito. Como na história de Eduardo Galeano, tu querias que eu te ajudasse a ver. Teus gritos agudos, o frenesi de teus braços tentando alcançar o pequeno menino silencioso deixaram-me em silêncio. Passei a tarde pensativo, mas não melancólico. O mesmo processo que multiplica escandalosamente as tuas células, destrói as minhas.


À noite, dei aula, mas não fui o professor de sempre. Uma parte de mim, a maior talvez, ficou congelada na tarde, refugiada na eternidade da arte. E agora, esta mesma parte, cristaliza-se nestas páginas.


Escrevo à mão, sem pressa, como se o tempo tivesse, enfim, se estancado. Tu dormes no quarto ao lado, com a serenidade de um pequeno buda, teu corpo tremula com a delicadeza da cauda de um peixe. Estou aqui, na sala, e me transporto à manhã em que nasceste.


Tua mãe escolheu um hospital afastado da cidade, no alto de um morro, para te proteger dos problemas da civilização, para que o verde das árvores se colasse aos tais olhos, para que a brisa agreste limpasse os teus pulmões ainda congestionados de muco. Fiquei com a pediatra, no corredor, a espera de teu primeiro choro. Não há, pequena, palavra humana capaz de descrever o que senti ao ouvir tua ruidosa entrada triunfal neste planeta. Ainda que eu reescrevesse os livros da Biblioteca de Alexandria, não seria capaz de exprimir um milésimo da emoção que se aninhou em meu espírito. Como um pequeno facho de luz na escuridão, ele está lá, gerando a energia que me fará amar ainda mais o que foi, o que é, e o que há de ser.


Hoje, e aqui, quero te contar uma coisa que me faz estremecer, que me impressiona. Tu tens o olhar do pai de meu pai, Bernardo Augusto Kiefer. Mestre, guia e modelo, eu o amei muito. Não sou espírita. Sei que esta reencarnação é genética, mas ela me faz bem. De alguma forma, recupero, e salvo, também nisso, um tempo que estava fadado ao esquecimento. Contigo, na manhã em que nasceste, renasceu o meu avô e sua lição de paciência, de ternura, de serenidade.


Agora, ainda mais que antes, quero ser como ele – quero te levar pela mão e te ensinar a complexa ordenação das formigas e das abelhas, o caminho dos ventos e das tempestades, a gramática do pão e das frutas.

sábado, 15 de agosto de 2009

A era das pandemias

A superpopulação mundial e a sua concentração em centros urbanos, o aquecimento global, a circulação incessante de produtos e de pessoas no mundo globalizado sinalizam a forte possibilidade de estarmos ingressando na era das pandemias. A SARS e a gripe aviária se encolheram, mas não sumiram. A gripe A, que ninguém previa, explodiu no México e rapidamente espalhou-se por todos os continentes. Se o H do vírus não fosse o 1, mas o 5, estaríamos todos num mundo congelado, com fronteiras fechadas, toque de recolher, falências em cadeia e mortes em proporções descomunais. O H1N1, nos princípios do século XXI, é apenas o ensaio do que está por vir, se a humanidade, e especialmente os países, não tomar urgentes medidas político-profiláticas.

O primeiro enfrentamento a ser feito é o educacional.

A atual pandemia recolocou na pauta da educação a questão da higiene. Agora, felizmente, as escolas e universidades estão redescobrindo a necessidade de se lavar as mãos, de se ficar em casa quando gripado, de se usar lenços descartáveis, de se vacinar sempre que possível. Sou professor na PUC. Quando comento que me vacino contra a gripe todos os anos, recebo comentários irônicos, como se eu fosse um velho precoce. Muitas vezes, utilizo os banheiros coletivos, também usados pelos estudantes. Enquanto eu me demoro ensaboando e lavando as mãos, eles saem das baias sem fazer a higienização. Minha filha, aos sete anos, tem hábitos de higiene que não encontro, muitas vezes, entre meus alunos adultos. No retorno às aulas após o recesso, poderei fazer a minha pregação básica sem parecer exagerado ou neurótico.

O segundo enfrentamento a ser feito é o de políticas eficientes na área da saúde pública.

A pandemia está demonstrando cabalmente que é necessário investir mais, muito mais, em saúde pública. Bastou um aumento inesperado na demanda por internações para que o sistema quase colapsasse. No perigoso mundo do futuro, a prevenção será fundamental. E prevenção significa pesados investimentos em infra-estrutura hospitalar, melhoria de vencimentos do corpo médico, luta política pela quebra de patentes, leis mais rígidas contra os cartéis de remédios, de produtos higiênicos e de produtos hospitalares. Antes da pandemia, para ficarmos em apenas um exemplo, um tubo de gel nas prateleiras das farmácias era muito mais barato do que agora, no auge da disseminação do vírus. Não nos disseram sempre que a produção em escala diminui custos? Ah, esqueceram de nos avisar que o aumento de demanda aumenta a infâmia...

Creio que esta pandemia de gripe A, felizmente de baixa letalidade, é um momento ímpar para refletirmos sobre educação e saúde, estes setores tão desprezados e esquecidos. Com as lições desta pandemia, talvez venhamos a estar melhor preparados para as próximas.

E não se enganem os ingênuos e excessivamente otimistas, o século recém começou.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Glaciares (conto)

Já não conseguia mover os braços, as pernas e o pescoço sem que sentisse dores intensas, que se irradiavam dos nervos e tendões ao cérebro, onde explodiam em filetes cortantes, como que de lâminas, e que depois se espalhavam com ardência de fogo pelos tecidos e articulações. Morfina aliviaria, só que era preciso ir ao banheiro, aplicar a injeção em si mesmo, e não conseguia mais se levantar.

Agora, ouvia estalidos secos, de ossos se partindo, prestes a implodirem. Ou eram ilusões auditivas, memórias de uma distante viagem aos glaciares da Patagônia Austral?

Mantos de gelo desciam pelas encostas, ruidosos, buscavam o oceano por achar.

Ilhava-se, mas ainda foi capaz de ouvir a mulher dizer à vizinha, antes de afundar no mar obscuro:

– Esse aí não serve pra mais nada, não sai da cama, o vagabundo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

História de uma noite

(Uma momentânea crise depressiva interrrompeu o fluxo de minhas memórias. Sei que em breve a caixa-de-pandora se reabrirá e voltarei a escrever Suor no rosto. Enquanto isso, para não deixar meus leitores na mão, ofereço-lhes um conto inédito, que será lançado no dia 18 de agosto, em São Paulo, na antologia Futuro Presente, editado pela Record, sob a organização de Nelson de Oliveira)

História de uma noite
(Conto)

Verônica atravessou a sala quase com arrogância, elegante e determinada. Era alta, magra e mais linda que a Gisele Bünchen, um dos ícones de beleza feminina do século XXI. O sul da Ameríndia, onde se localizava um país chamado Brasil, era famoso por produzir mulheres com uma excelente genética. Por um momento, desobedecendo ao Código de Conduta de Relacionamentos, antes de inclinar a cabeça para cumprimentar-me, encarou-me, e compreendi o que um escritor do século XIX quis dizer sobre o estranho efeito de um certo tipo de olhar. Como se eu estivesse numa de nossas maravilhosas praias de realidade virtual, com os pés enterrados na areia, senti que o chão cedia, à força da ressaca. Fitar os olhos de Verônica era como ser arrastado mar à dentro. Magnetismo animal, diziam os velhos romances açucarados; pathos, exclamavam os personagens da literatura expressionista. Verônica tinha pernas longas, seios pequenos e bunda arrebitada, qualidades que me excitam nas mulheres reais e virtuais. Seu olhar como que atravessava as coisas. Observei-a atentamente. Não era um programa de simulação de realidade, mas talvez fosse adepta de meditação transcendental, capaz de passar dias conectada ao Grande Cérebro. Hoje é difícil dizer qual a porção real, qual a porção simulada dos seres humanos. Eu mesmo tenho mais de 62 por cento de minha massa corporal composta de componentes artificiais.

– Ela é transcendental – comentou André, assim que a mulher se ausentou da sala.

– Desculpe – eu disse – esqueci de desligar meu Interceptador...

– Não tem problema – ele respondeu – não sou ciumento.

Imediatamente, regulei meu Interceptador de Pensamentos e Produtor de Realidade Virtual em freqüência que evitasse novas situações constrangedoras. Desde o final do século XXII, esses aparelhos são absolutamente necessários. Dispendiosos, mas eficientes. Nas regiões pobres, aonde a nova tecnologia ainda não chegou, os conflitos são permanentes. Contam que, no passado, a hipocrisia é que possibilitava as relações sociais. Nesses tempos arcaicos, a mente humana ainda era indevassável. Imaginem, já vivemos um período da História em que tínhamos livre arbítrio e direito à absoluta intimidade! (Por um bom período, as exclamações estiveram desativadas. Desde o advento do novo governo, instalado em 2357, sutilmente mais liberal, exclamações e reticências retornaram ao léxico. No entanto, conforme o Novo Manual de Conduta, recentemente lançado na Rede, recomenda-se o seu uso com parcimônia). Hoje, para se preservar um mínimo de autonomia mental, é preciso gastar-se fortunas. O aparelho de IPPRV, em si mesmo, é barato; caras são a manutenção e os créditos de freqüência. Agora que meu Interceptador está ajustado, posso confessar: eu o tenho usado pouco por falta de dinheiro. André não pode saber disso, seria muita humilhação. Espero que ele não consulte os registros no Grande Computador, onde há cópia desse texto. Nada, absolutamente nada do que escrevemos ou pensamos escapa ao Arquivo Universal. Os ativistas dos direitos civis que defendiam a confidencialidade desses dados estão presos ou mortos.

Verônica retornou com os cabelos úmidos, sem a maquiagem pesada, num vestido de cetim negro que se grudava às suas ancas como fazem as roupas magnetizadas pela eletricidade que emitimos. No escuro, aquele vestido, que mais lhe revelava o corpo do que o escondia, produziria faíscas ao ser tirado. Evitei encará-la outra vez. Era esplendor demais, sedução demais. E não era minha. Observei André e ele parecia achar perfeitamente natural que ela retornasse à sala, mesmo com minha presença ainda na casa. Vi, inclusive, no canto de seus olhos, um ar de satisfação, quase prazer. Meu primo parecia deleitar-se com a exposição da própria mulher, em mais um de seus fetiches.

Somos memória, um absoluto presente que se apaga no mesmo instante em que é, ou um arremesso para o além, um vir a ser que não se completa jamais no ser? Agora, que recordo e revivo o que vivi naquela noite, é o passado que se regenera, é o presente que se esvai ao retornar ao passado ou é o futuro que insiste em sobreviver?

Sou fotógrafo e estou de volta à Ameríndia depois de oito anos de ausência. Morei em Nova Bruxelas, Nova Amsterdã e Nova Paris. Um dia, acordei com saudade da família e da terra natal. Fiz as malas e regressei. Mal encostei os pés na sala de teletrans-de-chegada e me conectei com André. Nunca, naqueles oito anos, perdêramos contato.

– Vais jantar na minha casa, no sábado – respondeu, eufórico com o meu retorno.

No dia em que viajei à Grande República do Islã, que congrega num só Califado as terras do Oriente e da antiga Europa, “para não voltar nunca mais”, como eu alardeara, ele estava lá, na ante-sala do teletrans-de-partida, com os olhos vermelhos e a voz embargada.

– Tenho certeza que vais voltar – ele me disse, quando me abraçou.

André nunca se interessou por arte, preferia as coisas da terra. Cães e gatos, que horror. Passar os dias, os meses, os anos a cuidar de cães e gatos! Não me surpreende que tenha se transformado em veterinário depois que a fazenda da família foi sugada pelas transformações sociais sofridas nas últimas décadas. Perdeu os anéis, mas ficou com os pêlos! Eu, ao contrário, tinha – e tenho –, nojo desses brinquedos vivos, de suas tosas, de suas tosses, de suas sarnas, de suas fezes. Adoro animais domésticos, desde que empalhados, ou em fotografias. Sou, como tantos, fascinado pela aura que exalam, mas que não me lambam, e que estejam sempre bem aprisionados.

Jamais consegui deletar Verônica de minha mente. Introduzi em meu cérebro novas memórias, algumas reais, outras virtuais, e a mulher de longas pernas e olhar doce continua lá, como um vírus devastador. Talvez os relacionamentos amorosos devessem ser sempre assim: intensos, epifânicos e únicos. Repetir o que foi maravilhoso é o começo do fim. Só o que aconteceu uma única e irredimível vez é capaz de sobreviver ao desgaste; só a aura do absolutamente novo é que dá permanência à paixão.

Infelizmente, não a fotografei, mas a registrei, talvez para sempre, na memória – essa tela virtual em que podemos pintar e repintar a realidade ao nosso gosto, eliminando as manchas, corrigindo os tons, valorizando este ou aquele aspecto. Hoje, sempre que me deito com alguém, são fragmentos da imagem dela que acesso para me excitar. O que eu não daria para regressar àquela noite de sábado? O que eu não faria para recuperar, na língua, o seu sabor? Basta-me fechar os olhos e sentir-lhe o cheiro, uma suave mistura de canela, chocolate, baunilha e algo mais. Um perfume? O sabonete com que se banhava? O seu próprio suor? Seria dessas mulheres selvagens que se recusam a extrair as glândulas sudoríparas? Houvesse, mesmo, um néctar dos deuses, e teria essa mistura. Às vezes, Afrodite concede, a certas mulheres, alguns de seus próprios predicados. Mas a deusa é avara e ciumenta, e teme a concorrência. Por isso, ela evita derramar sobre uma e mesma mulher todos os seus dons. O que, talvez, explique a necessidade que temos de amar tantas delas, ao mesmo tempo. O homem que encontrasse a mulher que reúne beleza, inteligência e sedução deveria jogar-se a terra e cobrir a cabeça com cinzas, ou esconder-se no fundo de um poço para que os deuses não o vissem. Verônica recebeu mais do que merecia. Soubesse de seu poder, iniciaria um culto, abriria um templo, como tantas dessas falsas pitonisas que infestam os nossos grandes centros urbanos.

Murmurou qualquer coisa, que não entendi, quando André, um sorriso enorme no rosto bem escanhoado, nos apresentou. Mais tarde, durante o jantar, dei-me conta de que ela, na verdade, não falava – ronronava. Os olhos, meio enviesados, não olhavam – devoravam. Inquietos, não se fixavam em nada. Parecia uma fera enjaulada, a andar de um lado para o outro. Eu podia sentir, enquanto bebericava o excelente vinho local servido por André, o odor que o corpo de Verônica trescalava. Sua pele, que o sol devia acariciar três vezes por semana, nas salas de bronzeamento do clube, brilhava à luz mortiça que se espalhava pelo ambiente. De muito bom gosto, por sinal. Dela, naturalmente, que ele não tinha nenhuma sensibilidade para combinar tons e cores, móveis e cortinados, abajures e telas.

Verônica jogava a cabeça para o lado, para livrar-se das madeixas que insistiam em tombar-lhe diante do olho direito. Sobre os lábios finos surgia, de vez em quando, a ponta de sua língua avermelhada. Felizmente, meus quadris estavam sob a mesa. Ah, se eu não tivesse esquecido a câmera! Dizem que o novo governo pretende mudar a Lei, permitindo que não-fotógrafos possam registrar a realidade, como se fazia na antiguidade. Um fotógrafo não pode, jamais, sair sem o seu instrumento de trabalho. Sempre que estamos desprevenidos, o pássaro de fogo alça vôo diante de nossos olhos (Figura de estilo repetida 8.967.324 vezes ao longo do último ano, conforme registra o Arquivo Universal. Deseja utilizar uma metáfora menos desgastada?). Fiquei a imaginá-la em poses sensuais, com uma luz amarelada a pontilhar seus cabelos de brilhos fugazes. Seu nariz, de perfil, lembrava o de uma deusa egípcia. Se eu pudesse fotografá-la no chão, de quatro, como uma cadela, eu a transformaria num monumento ao desejo, ao prazer, ao festim da carne. Eram recém-casados, menos de um ano, se tanto. Não me aventurei a propor uma sessão de fotos, André poderia se ofender. E o que eu não queria jamais era perder a companhia deles, mesmo que ficássemos somente nos encontros casuais. Estar ali, naquela noite, já me bastava, enchia-me de gozo. Eu me sentia vivo outra vez, capaz de reformatar as trilhas do passado sob camadas de novas lembranças.

Depois dos pistaches, damascos, castanhas e queijos, Verônica serviu a janta, salmão grelhado com legumes, salada verde com pedaços de manga, regado a um maduro Côtes-du-Rhône, um de meus vinhos prediletos, e que eu trouxera como delicadeza de visitante educado. De sobremesa, a anfitriã serviu-nos musse de maracujá e licores de pêssego, amêndoas e amarula, essa exótica fruta africana que os macacos e os elefantes tanto adoravam. Os novos espécimes, geneticamente transformados, comem somente ração industrial, que não produz metano. Eu quis recolher os pratos e talheres, mas André não permitiu. Arrastou-me para o living, enquanto Verônica trabalhava na cozinha. Ele passou a mostrar fotos do casamento e a contar sobre a festa, num dos clubes mais sofisticados da cidade. Ah, o orgulho provinciano, a arrogância da antiga classe rural-proprietária! Como se isso, em nosso novo mundo, ainda tivesse qualquer importância. Um bom programa de computador, hoje, vale mais que milhares de alqueires de campo e gado. Pobre André e seus valores arcaicos e decadentes. Recostados no sofá, terminamos de beber a segunda garrafa de vinho tinto da noite. Um calor doce e aconchegante invadia os meus músculos, relaxava-os, e os meus pensamentos como que dançavam sob o efeito do álcool.

– Imagina – disse André subitamente, dirigindo-se à esposa, que acabara de sentar-se num dos almofadões – éramos dois adolescentes, quatorze ou quinze anos, e nenhum de nós conhecia mulher...

– E como faziam? – ela quis saber.

– Realidade virtual – ele respondeu...

– Pobrezinhos... – ela ronronou.

Mal disse isso, Verônica levantou-se e desapareceu no longo corredor. Antes de sair da sala, percebi um ar maroto em seu rosto. André não se deu conta de nossa troca de olhares. Quando ela retornou, poucos minutos depois, senti, no interior do bolso da camisa, onde eu colocara o meu Interceptador, a sutil vibração do pedido de acesso para a faixa de realidade virtual.
Fui ao banheiro e autorizei o contato. Antes de retornar, algum tempo depois, dei a descarga, para justificar a minha saída intempestiva da sala.

Encontrei André com os evidentes sinais do torpor produzido por excesso de vinho. Às vezes, entre breves cochilos, ele contava alguma história, sorria bovinamente, e nós respondíamos como se estivéssemos muito concentrados no que ele dizia. Para o meu primo, parecíamos ouvintes educados, pois ríamos com gosto de suas piadas grosseiras. Mas, no plano da outra realidade, Verônica, recém-banhada, vestia um minúsculo negligê vermelho, reagia às minhas caricias e... (Nesse ponto, o autor, em flagrante desobediência ao Artigo 236, parágrafos 23 e 24, do Código de Postura de Escritores, inicia uma longa e minuciosa descrição sexual, que o Programa de Censura Geral deletou para preservar os nossos valores e instituições. Ave, Grande Cérebro, que nos protege de nossas próprias perversões, anomalias e delírios!).

André nunca mais me convidou para jantar. Às vezes, nos encontramos em churrascarias, ou na casa de minha mãe. É um tipo sangüíneo, o meu primo. Ele tem necessidade de carne, de preferência mal passada. Imagino, sempre, que virá com Verônica, mas minha espera tem sido vã. Desconfia de alguma coisa? Seu Interceptador estava ligado na mesma freqüência do aparelho de Verônica? Terá ela contado a ele o que fizemos? Descarto a hipótese de que tenha acessado o Arquivo Universal e lido este texto. André é um analfabeto funcional, jamais lê qualquer coisa. Literatura, muito menos.

Sei que eu devia apaixonar-me por alguém, para esquecê-la, mas amor não é coisa que se queira, que se determine. Há ou não há. Amor pode ser uma mistura de canela, chocolate e baunilha.

E de suor, talvez.