sábado, 16 de janeiro de 2010

Sacrifício de cavalo (Conto)

(Para Pena Cabreira)

Tinha, enfim, conseguido. Depois de muitos anos de treinamento rigoroso, privações, milhares de partidas de grandes mestres estudadas e decoradas, intermináveis exercícios táticos e estratégicos, estava a um movimento de desencadear a possível variante que o levaria, através do sacrifício de seu último cavalo, à vitória e ao título.

Uma vida inteira dedicada a este instante: um casamento fracassado — a mulher não suportara a sua obsessão, não podia compreender tamanha paixão por um jogo que se esgotava em si mesmo, que a nada levava, que nada produzia — e uma carreira profissional em ascensão barrada por peões passados, torres em sétima e bispos em fianqueto.

Avaliou e reavaliou a situação: tinha vantagens teóricas evidentes, cadeia de peões contra peões isolados, todas as peças ligeiras bem desenvolvidas, dama com maior mobilidade, além do violentíssimo impacto psicológico que o seu próximo lance desencadearia na alma do oponente.

Sorriu, antegozando o prazer de esmagá-lo. Já podia comemorar o título, alguns lances a mais e o inimigo estenderia a mão, rendido, humilhado.

Levantou o cavalo, a mão úmida tremeu. “Sacrificar um cavalo”, pensou. “Um cavalo...“ Manteve a peça no ar uma eternidade, indeciso ainda.

O sacrifício de uma peça gera sobre o tabuleiro uma verdadeira tempestade, quebra toda a harmonia, instaura o caos. E ele amava a ordem, a lógica precisa e retilínea, o jogo posicional. Era imprescindível reavaliar a situação. E se o Outro, hábil caçador, farejasse o perigo e recusasse a oferta? Se sob aquela fraqueza estrutural tão evidente se esgueirasse um terrível e pantanoso golpe tático, uma daquelas seqüências crípticas, demoníacas, tão freqüentes no mais amaldiçoado dos jogos?

A mão suspensa, ouvia o tiquetaquear do relógio, mas não desviou os olhos, a menor desconcentração podia ser fatal. Teve a nítida impressão de ouvir risos, velados ainda, é verdade, mas que cresciam e se transformavam em chacota. Uma vida inteira. Anos a fio, dia após dia, jogando, jogando, jogando, correndo atrás da fugaz alegria, sofrendo o brutal esmagamento do ego, empurrando peões montanha acima. Precisava reconhecer, era um jogador medíocre, dos que ao final de uma vida de disciplina espartana e incessantes estudos perdem fragorosamente para crianças-prodígios, esses seres tocados pelo Grande Arquiteto. Lembrou de Mequinho, Bob Fischer e Judith Polgar.

Segurou o cavalo no ar e sentiu uma dor funda, a súbita compreensão de sua insignificância. Nem era preciso procurar muito longe. Ali, no próprio torneio, havia dezenas de jogadores melhores do que ele. Era um miserável, dos que no cinema lotado sempre encontram um lugar vago exatamente atrás de um grandalhão que lhes impede qualquer visão da tela. Mas aquela era a sua chance, o momento esperado há tantos anos. Sacrificaria o cavalo, instauraria a confusão generalizada nas tropas inimigas e arremataria de forma brilhante. Além do título de campeão, receberia o prêmio de melhor partida.

Era só lançar o cavalo contra o peão protegido.

“Sacrificar um cavalo...“, pensou. “Um cavalo...“

Ia retomar a análise, mas o adversário já sorria e apontava-lhe a seta do relógio caída.

4 comentários:

  1. E o mais impressionante, Kiefer, nesses momentos de vacilação e queda da seta que marca o tempo, é que, para os espectadores foram minutos infindáveis à espera de uma decisão e, para o jogador, tudo se passou em uma fração de segundo. É mais uma dimensão, psicológica, da relatividade do tempo: ele é diferente para quem está jogando e para quem está observando o jogo.
    Abraço pelo conto. Juarez.

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  2. Charles, a minha emoção de participar do torneio foi grande, lembrou os meus tempos de adolescente em que passava madrugadas adentro jogando com o meu grande amigo Paulo Cesar (que se foi pros outros lados). participei de metido e fiquei ambasbacado com o resultado e feliz demais com o teu entusiasmo com o sacrifício do cavalo e mais ainda, com a tua dedicatória na republicação do belo conto. Obrigado e um beijão. Pena Cabreira

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  3. Muito legal! Até deu vontade de jogar xadrez...!

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  4. Muito bom, ainda mais depois do esclarecimento do Pena.

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