Regressado de Salvador, e ainda gestando os comentários que farei aqui a respeito da viagem, transcrevo a palestra que fiz na Academia de Letras da Bahia:
"Jorge Amado e sua gente"
Senhoras e senhores,
Meu primeiro impulso, ao receber o convite de participação para este evento, foi o de dizer não. Embora eu seja formado em teoria da literatura, não sou especialista na obra de Jorge Amado. Fiz um mestrado sobre Mário de Andrade, em que analisei mais de quatro mil cartas, extraindo delas a visão do poeta a respeito dos elementos conscientes e inconscientes da obra de arte, e um doutorado sobre Nathaniel Hawthorne, Edgar Alan Poe, Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar, autores com os quais trabalhei por mais de uma década, para compreender as variantes estéticas do conto moderno, o fruto artístico mais luminoso do capitalismo emergente e da industrialização iniciada no século XIX.
O conhecimento acadêmico, como o sabemos, especializou-se de tal forma, concentrou-se tanto, que já não há espaço para a mera opinião, para a declaração ingênua de gosto e para a manifestação pura e simples de admiração e ternura. Há trinta anos estudo o conto e suas variantes, e mesmo assim me sinto pouco conhecedor da história curta. E o que dizer, então, do romance? E o que dizer de um romancista como Jorge Amado, criador de um universo tão amplo e diversificado? Se alguém, no Brasil, pode ser comparado a Balzac, no campo da diversidade tipológica de personagens, este escritor é Jorge Amado, que faz o retrato dos representantes das mais variadas classes sociais, abrigando sob a sua pena uma miríade de seres, num impressionante recorte vertical da sociedade brasileira, que vai do lumpem e do proletariado urbano e do campesinato, aos extratos médios, como os profissionais liberais e intelectuais, aos grandes proprietários, banqueiros, militares de alta patente e componentes do clero, entre tantos outros. Paulo Tavares, na obra Criaturas de Jorge Amado; Dicionário Biográfico de Todos Os Personagens Imaginários, Seguido de índice Onomástico Das Personalidades Reais Ou Lendárias Mencionadas, de Elenco Dos Animais E Aves Com Nomes Próprios, publicada em 1969, fez um eficiente mapeamento das criaturas geradas pelo mestre baiano.
No entanto, ao mesmo tempo em que o professor e racionalista em mim queria recusar, queria declarar-se incapacitado, queria fugir da empreitada, o escritor, mais inconseqüente, e menos preocupado com os rigores formais, queria participar, queria opinar sobre um dos maiores romancistas da história brasileira. Venceu o último, e aqui me encontro, diante de vocês, muito entusiasmado, mas também bastante apreensivo.
Estou animado pela oportunidade de falar de um escritor de enorme importância em minha vida, o escritor que me ensinou que meninos de rua, trabalhadores braçais, prostitutas, soldados rasos, e outros aflitos e humilhados podem, sim, ser tratados ficcionalmente com respeito e dignidade. Além disso, Jorge Amado ensinou-me a não temer as minhas próprias opiniões, tivessem elas este ou aquele matiz. Com ele aprendi que escritores também podem, e devem, participar da vida pública, direta ou indiretamente. E que a literatura, por sintetizar os embates pessoais e sociais, por simbolizar os desejos e as pulsões, pode ser, muitas vezes, mais eficaz que o discurso político a respeito das mazelas de um povo.
Mas me confesso apreensivo por que me cabe falar dele em sua própria terra natal, em meio a sua própria gente, que são os maiores conhecedores de tudo o que ele escreveu, de tudo o que ele viveu. Imagino como seria falar de Sófocles na Grécia, de Shakespeare na Inglaterra ou de Goethe na Alemanha. Peço-lhes, pois, desculpas por este olhar estrangeiro, por este olhar pouco acadêmico a respeito do mais importante escritor desta terra. E peço-lhes também, e ao mesmo tempo, licença para falar dele como de um companheiro de ofício, como de um mestre que me ajudou a construir minha própria identidade de escritor e de cidadão brasileiro.
Segundo Stuart Hall, “a identidade preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-as “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados.”
No limite, posso dizer que devo a Jorge Amado boa parte da minha visão de literatura, especialmente no que diz respeito ao conteúdo social que também imprimo aos meus contos, novelas e romances. Meu primeiro contato com a sua obra se deu ainda na juventude, em Três de Maio, uma pequena cidade a noroeste do estado do Rio Grande do Sul, onde nasci. Descobrir em Gabriela Cravo e Canela, por exemplo, um Nacib em tudo semelhante ao Mahmud, dono de uma loja de armarinhos no centro de minha cidade, e amigo de meu pai, gerou em mim o singular espanto de constatar que a literatura não era só aquilo que eu encontrava nos romances de José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e Visconde de Taunay. Os personagens de Jorge Amado não eram seres distantes, de fala aportuguesa e maneirista, de vocabulário exótico e complicado. Os personagens de Jorge Amado, que escrevia no outro lado do Brasil, numa Bahia onírica e fantástica, podiam ser encontrados nas ruas da minha cidade, nos bares, nas praças, nas festas religiosas, misturados aos nossos próprios nativos. Se antes da leitura de Suor, Capitães de Areia e Terras do sem fim eu imaginava que a arte literária fosse “o sorriso da sociedade”, o “glacê no bolo”, depois dela passei a compreender que a literatura pode, e deve, ser muito mais. No pequeno espaço da obra, entre as duas capas, toda a vida social pode estar representada, como acontece nos seus romances. Com ele aprendi também que os autores podem afirmar os valores vigentes ou contestá-los, a depender de sua própria Ideologia, mas nunca ignorá-los. Lendo Jorge Amado descobri que eu também podia ser escritor, porque os homens e mulheres de minha cidade também tinham vidas suficientemente interessantes para serem contadas. Em Três de Maio havia também os Pedros Bala, as Doras, os Sinhôs, os Jucas Badarós, os Teodoros Martins e os Horácios da Silveira. Lendo Jorge Amado descobri que a literatura, por lidar com a palavra, o mais social dos bens culturais, no dizer de Jean Paul Sartre, não pode ser neutra, não consegue ser neutra, por mais intimista e subjetivista que se apresente. A literatura nos constrói enquanto indivíduos, criando um espaço imaginário onde existimos linguisticamente, e nos constitui enquanto sujeitos históricos, dando-nos a visão de mundo de que ela é a expressão. Gostar ou não de escritores do naipe de Jorge Amado diz muito a respeito de nossa própria identidade. Eu podia, por exemplo, gostar de Sidney Sheldon, ou de Paulo Coelho. Não gosto. Por que não me encontro neles, não me reconheço neles. Mas em Jorge Amado eu me encontro, eu me reconheço. Porque Jorge Amado me dá a noção de brasilidade e de cidadania, me dá a sensação de pertencimento a uma mesma nação, que meus avôs, imigrantes alemães, também ajudaram a construir. Sei que a identidade nacional, como disse Benedict Anderson, é uma comunidade imaginada. Talvez Mahmud, em realidade, fosse muito diferente de Nacib, mas nesse país imaginado e costurado pela literatura, eles eram a mesma pessoa. Este processo, por identificação e transferência, me fez íntimo de Jorge Amado, tão íntimo quanto um parente. Por isso, quando ele morreu, feneceu com ele uma parte da minha adolescência e do meu imaginário. Em mim, como Quincas Berro D´água, Jorge Amado morreu duas vezes. Uma, no plano real. E outra, no imaginário.
Depois de sua morte, disseram, e ainda dizem, que ele escrevia mal. O fato dele não ser um esteta, no sentido aristocrático do termo, de não ser um purista obsessivo da língua, como foram Machado de Assis e João Guimarães Rosa, não o torna um mau escritor. Como Jorge Amado, Lima Barreto, Fiodor Dostoievski e Roberto Arlt também escreveram mal, se por escrever mal se entende uma literatura mais de conteúdo social que estilística, menos de capricho de frase e de refinamento lingüístico, e mais de contundência erótica, vital. Jorge Amado, como tantos outros escritores, optou por expressar sua visão de mundo numa linguagem carnavalizada, pouco se importando, é verdade, com o burilamento expressivo, sem a preocupação exagerada da frase bem torneada. No entanto, mesmo nos momentos de maior descuido e de prolixidade, sua prosa é carregada de metáforas, de imagens poéticas que beiram o poema em prosa. Em Terras do sem-fim, por exemplo, há passagens de extraordinário lirismo. Este livro, não resta dúvida, é um monumento literário. No dizer do professor José Hildebrando Dacanal, é a sua melhor obra, e uma das mais típicas e bem realizadas do Romance de 30. A morte e a morte de Quincas Berro-d’Água, por seu turno, é uma das melhores novelas da história da literatura brasileira.
Jorge Amado, com Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Cyro Martins e Erico Verissimo, entre outros, construíram uma literatura com forte apelo social, voltada para os problemas brasileiros, uma literatura que desvendava o Brasil para os brasileiros, uma literatura em busca de identidade e afirmação, um passo adiante no projeto que seus pares românticos tinham iniciado quase um século antes. Os romancistas de 30, como são chamados pela crítica literária, abandonaram os salões da aristocracia litorânea e meteram-se nos grotões, revelando ao próprio país a vida dura dos seringueiros, dos retirantes, dos gaúchos a pé.
No mundo inteiro, e em todos os tempos, há sempre dois tipos de escritores: os estilistas e os conteudistas. Os primeiros, sacrificam o que dizem pelo modo como dizem. Os segundos, tratam de escrever “mal” quase que por dever programático, recolhem das ruas o falar popular, os miasmas dos esgotos, os fortes odores dos cortiços. Na prosa dos primeiros, encontramos os ademanes de linguagem, a ironia mordaz, o refinamento intelectual e a cinza teoria, no dizer de Goethe. Na ficção dos outros, identificamos a reprodução mais direta e brutal da vida, com suas lutas intestinas e sua linguagem descuidada. No entanto, ambos os tipos denotam que linguagem é uma questão de poder, que falar e escrever corretamente mais que uma questão cultural é uma questão política e econômica. Bastou o nosso presidente, por exemplo, ascender ao mais alto posto de mando da nação para que aos poucos sua linguagem fosse se transformando. A transformação ideológica foi só uma questão de tempo, em decorrência da transformação lingüística. Mas não por que a linguagem tenha, por si só, como queria Platão, essa capacidade, mas porque ela é o reflexo de transformações mais profundas.
Sim, até se pode concordar que Jorge Amado, em alguns momentos, escrevia mal, e que em sua fase mais panfletária chegou a ser maniqueísta. Mas não se pode negar seu extraordinário amor pelo seu povo e pela sua gente, não se pode apagar o exemplo fantástico de integridade e compromisso social que nos deu, nem se pode ignorar os romances plenos de vitalidade e de alegria de viver que escreveu.
Penso que Jorge Amado optou por esse estilo trágico-satírico em alguns momentos, estilo que comporta sim uma má escritura, cônscio de que essa era a melhor forma de transformar em arte um pouco desse triste e descuidado Brasil. O que lhe apontam como defeito pode ser uma de suas singulares virtudes. Aliás, tenho certeza de que esta é a principal virtude de sua literatura. Se tivéssemos, no Brasil, um crítico literário do porte de Mikhail Bakthin, capaz de compreender as conexões ideológicas entre a linguagem, a sociedade e o indivíduo, ele não teria dúvidas em apontar o escritor baiano como um dos principais representantes da polifonia e da carnavalização, ao lado de Dostoievski e Rabelais. O que chamamos de Homero, por exemplo, é a lenta sedimentação de um processo popular polifônico, que a tardia gramática helenista transformou em modelo de bem escrever. A depender dos rumos políticos que a sociedade brasileira vier a adotar no futuro, a depender de seu papel no concerto das nações, autores como Lima Barreto e Jorge Amado podem vir a ser paradigmáticos nesta espinhosa questão lingüística. O que sabemos hoje, neste momento histórico e no atual contexto, é que na obra deles cristalizou-se, de forma plena e fascinante, um outro Brasil, não aquele que, como uma emanação fantasmática, partia de São Paulo e do Rio de Janeiro em direção às províncias, mas aquele que brotava autenticamente do próprio chão em que nascia.
O que nos leva a outra questão, à discussão do que a crítica literária costuma chamar de regionalismo ou universalismo. Nos manuais de literatura, com sua pedagogia pedestre e sua teorização infantil, Jorge Amado aparece como um grande escritor regionalista! Um escritor que, apesar de ter nascido baiano, e de ter descrito a vida da Bahia, teria alcançado a universalidade!
No contexto de um mundo globalizado, na era da simultaneidade das comunicações e dos mercados, ainda é possível falar-se em local, regional, nacional e universal ou outras formas de caracterização sociológica do mundo do passado?
E em que consistiria – hoje – isso que chamamos de local e nacional?
Pode ser chamada de local uma história que se passa em Porto Alegre, no bairro Bom Fim, ou em Salvador, na Baixa do Sapateiro, mas que tem, por exemplo, personagens adolescentes que em tudo se assemelham aos adolescentes dos grandes centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos?
Pode ser chamado nacional um romance que trata de sujeitos fragmentados, contraditórios e não-resolvidos, como são os sujeitos da pós-modernidade, independentemente de terem nascido em Berlim, Hong-Kong, Salvador ou Passo Fundo?
Ainda podemos pensar em termos de regionalismo e universalismo na era das operações econômicas transnacionais, época em que conferimos a hora em relógios produzidos na China, em que andamos em sapatos fabricados em Cingapura?
São locais e nacionais os textos de autores baianos ou porto-alegrenses que “caem na rede” e que são acessados por qualquer pessoa em qualquer ponto da terra, textos que tratam da solidão, da violência e do sexo fácil na civilização contemporânea?
Ou estamos a entender, aqui, por locais aqueles textos e autores que são publicados por editoras com sede em nossas cidades e estados, e por nacionais aqueles publicados por grupos editorais do eixo São Paulo – Rio de Janeiro? E universais seriam aqueles publicados nos grandes centros capitalistas? Diante do paradoxo, os teóricos alegam que a universalidade se dá nos temas e no tratamento dos temas. Assim, a descrição da vida de um seringueiro é regionalista, mas a vida de um colhedor de laranjas norte-americano, não? Falar em cacau é regionalismo lingüístico; e
em Kiwi não?
Na fase pré-globalização, ainda se podia falar em centros hegemônicos, do ponto de vista cultural. Ou as coisas vinham de Paris, Londres e Berlim, ou de Nova Iorque. Mas hoje, com a descentralização do poder cultural, é possível usar essas mesmas categorias?
Desde sempre, me recusei a aceitar essas generalizações que chamavam de literatura regionalista aquela não produzida fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, sempre insisti que esta era apenas uma questão econômica, de fluxo de capitais e de informações. Se o dinheiro escorre do centro para a periferia, ele leva consigo, como numa enxurrada, os valores sócio-culturais do local de onde flui. Mas, quando a informação não depende mais do capital para escoar, ainda se pode pensar assim?
Em comparação com Nova Iorque, o que é produzido por São Paulo é bairrista, periférico e regional? Em comparação com o restante do país, a literatura de São Paulo é multicultural, central e universal?
Acredito que hoje, como sempre, a pergunta a ser feita é: De onde vem a informação? De onde vem o capital? Quem gera o quê e com que destinação? Uma vez estabelecidos esses fundamentos, podemos começar a discutir o local e o nacional, o regional e o universal, para contestá-los, para problematizar ainda mais a sua existência.
Uma das características da pós-modernidade, iniciada já em meados dos anos 40, é a multiplicidade. E penso que nesta própria discussão o múltiplo se instala. Não se pode mais ter certezas absolutas. O poder, e até o poder de compreensão, como tudo na era da globalização, se pulveriza, se multiplica, se descentraliza.
Descentralizada e múltipla, as forças culturais também brotam como cogumelos de verão pelo planeta. Hoje, se quisermos ver um filme produzido no Casaquistão, não precisamos mais esperar um ciclo especial de cinema casaque! Basta baixá-lo em nossos potentes computadores pessoais e vê-lo confortavelmente em casa, pirateado! Não é por acaso que hoje se fala em copyleft, o direito gratuito e universal à informação e aos produtos culturais. Gratuito? Mas as empresas de transmissão de dados não serão as grandes beneficiárias do novo sistema? Eles receberão dividendos, venderão os nossos textos, os meus e os do Jorge Amado, e nós não receberemos um centavo de direitos autorais? Enfim, é possível ainda pensar-se a relação de direitos autorais como a pensávamos ao tempo de nossa juventude? Não seria melhor liberarmos tudo na rede e criarmos novos mecanismos de remuneração do autor? Ou criaremos sistemas informáticos absolutamente autoritários, que bloqueiem tudo o que não for autenticado pela Microsoft, como pretende fazer o Nicolas Sarkozy? Mas, ao criarmos sistemas imunes à pirataria, não estaremos entregando, também, a nossa liberdade e o nosso livre arbítrio na mão de empresas e governos?
A verdade, por mais difícil que seja admitir isso, é que o Big Brother já nos vigia. Esta palestra, por exemplo, de alguma forma, pode ser acessada pela empresa de software que criou o programa de processamento de texto que utilizei para elaborá-la. Eles só não o fazem porque não tenho importância nenhuma. E por que a literatura, no admirável mundo novo que criamos, já não tem, também, nenhuma importância, a não ser como relicário da língua e estuário de nossos sonhos, desejos e fantasias. Se isto aqui fosse um plano terrorista, em poucas horas eu estaria preso. Não. Precavido, eu o digitaria numa velha máquina de escrever, como as que usaram Erico Verissimo e Jorge Amado.
Antes de encerrar este percurso que se iniciou com declarações pessoais, quero fazer mais uma. E que diz respeito a minha vivência como professor.
Às vezes, ao observar que meus alunos, filhos agitados da globalização, conhecem mais a vida afegã ou iraquiana, entristeço-me. E conhecem-na da leitura de romances aguados e rasos, e de filmes produzidos em série, pasteurizados e sem arte. São raros, entre os estudantes universitários, aqueles que ainda lêem, por exemplo, os nossos romancistas de 30, entre eles o próprio Jorge Amado. Mas é uma tristeza passageira, pois sei, pelo que conheço da história da literatura, que esses esquecimentos são geracionais e, portanto, passageiros. Mais adiante, quando o tsuname globalizante tiver homogeneizado tudo, ou quando voltarmos a uma nova idade média por conta das guerras de conquistas de mercados, travestidas de guerras religiosas, ou pelas pandemias provocadas pelo aquecimento global, por esgotamento e reação dialética os brasileiros hão de voltar às suas raízes. Por mais fragmentado e desnacionalizado que o sujeito do futuro venha a ser, para não mergulhar na completa alienação mental, chegará o momento em que ele retornará à pergunta essencial, que vem sendo feita desde a antiguidade: Quem sou? E, para respondê-la, como no encontro de Édipo com a Esfinge, só há um caminho. Sem se conhecer o próprio passado não há como se saber quem se é. Então, as leituras verdadeiramente significativas e substanciais serão retomadas.
Naquele dia, Jorge Amado, Erico Verissimo, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, e outros que ajudaram a construir nossa identidade, que forjaram a nossa nacionalidade, serão recolocados nas mesas de cabeceira. Ou injetados nos livros eletrônicos. Ou convertidos em memória virtual.
Sim, reconheço que isto pode não passar de um delírio romântico, como o final do romance Capitães de areia, mas foi exatamente com Jorge Amado que aprendi a acreditar em meus próprios sonhos, por mais absurdos que eles fossem.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nossa, muito bom, Charles!
ResponderExcluirFarei meu comentário como você faz alguns textos: em capítulos. To lendo, portanto, em dois capítulos, já que é muito grande.
Parei no trecho em que vc diz que boa parte de vc se foi com a morte do J.A. (bem, as palavras não foram essas, mas é essa a síntese).
Deste "primeiro capítulo", me identifiquei com muita coisa, mas com uma em especial: quando você diz que, na literatura (ficção) o autor pode firmar valores e contestá-los. Perfeito isso! Alguém já disse que a melhor maneira de ensinar uma lição (moral) a alguém é contar uma história. Quem palestra (vc bem sabe) usa muito deste artifício. Eu, como cronista e contista chinfrin, tenho feito uso desta ferramenta literária. Percebi, com o passar do tempo, que certos assuntos polêmicos ficam melhor quando tratados dentro de um causo fictício, de um conto, por exemplo. Bem melhor do que quando eu me metia a me sentar e digitar uma longa crônica opiniosa acerca de uma filosofia qualquer, de uma opinião...
Invariavelmente acabava dando ares de "Sartre de balcão de bar". Risível, no mínimo.
abç
Nesse rico "segundo capítulo", em que você demonstra que a abundância de informações e o tsumani da globalização varrem o mundo, me fez pensar que, desgraçadamente, você pode estar com a razão, quando no finalzinho diz que "isto (essa volta às origens) pode não passar de um delírio romântico".
ResponderExcluirLendo isso, eu, num insight pessimista e melancólico, fico achando que nunca mais o mundo será como foi um dia... a época em que se escrevia em Letteras azuis (como a do meu pai), que se liam clássicos nas escolas, que a TV tinha apenas meia dúzia de canais (e um era educativo), que as crianças eram verdadeiramente inocentes até os 12 anos, que as opções de laser eram a praia, um parque, a bicicleta, um livro!, que não havia tanta comunicação instantânea, tanta quantidade de tudo-ao-mesmo-tempo-agora que surge a cada instante, e enfim...
Acho que hoje é tanto de tanta coisa; é tão densa e constante essa insuportável cortina de fumaça que se ergueu e permanece ao nosso redor, nos envolvendo e turvando todo o entendimento que, se não impedir em definitivo, dificultará e muito a atual e as futuras gerações de avaliar o que é bom ou ruim; justo e injusto; falso e legítimo...
Fico quase achando que não haverá esse pós-tsunami que você sonha... pelo menos no território literário.
Se o Jorge Amado te ajudou a não ter medo de tuas opiniões, sem importar matizes e coloridos, a tua palestra ajudou a mim. Deu-me coragem de ser quem sou, mesmo por escrito. Será que não podias mandar por e.mail para que eu a guardasse ? Um beijo, ana
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGrande mestre!
ResponderExcluirIsto vale mais do que qualquer academicismo. Me deu vontade de ir correndo reler os livros de Jorge Amado, que devem estar empoeirados nos recantos mais remotos de minhas prateleiras.
Parabéns!
E bem que você poderia nos dar uma palhinha destas idéias aqui pelo sul, né... que tal?
Grande abraço!
Charles, me surpreendes sempre... Li Jorge Amado na adolescência, o primeiro livro dele foi "Capitães de Areia", livro que me deixou com muitos medos e que, de certa forma, me deu um gosto amargo, alguma coisa que carrego até hoje... Incomodava-me lê-lo... Agora com o que escreveste, eis que a lucidez, nas trevas há tanto tempo, aparece e consigo entender o porquê dessa amargura guardada...Jorge Amado, mesmo num estado tão diferente do nosso, escreveu as verdades das diferenças sociais de todo o povo brasileiro...
ResponderExcluirPreciso de um artigo sobre o livro os ossos da noiva! Alguém fez?
ResponderExcluir