(Uma momentânea crise depressiva interrrompeu o fluxo de minhas memórias. Sei que em breve a caixa-de-pandora se reabrirá e voltarei a escrever Suor no rosto. Enquanto isso, para não deixar meus leitores na mão, ofereço-lhes um conto inédito, que será lançado no dia 18 de agosto, em São Paulo, na antologia Futuro Presente, editado pela Record, sob a organização de Nelson de Oliveira)
História de uma noite
(Conto)
Verônica atravessou a sala quase com arrogância, elegante e determinada. Era alta, magra e mais linda que a Gisele Bünchen, um dos ícones de beleza feminina do século XXI. O sul da Ameríndia, onde se localizava um país chamado Brasil, era famoso por produzir mulheres com uma excelente genética. Por um momento, desobedecendo ao Código de Conduta de Relacionamentos, antes de inclinar a cabeça para cumprimentar-me, encarou-me, e compreendi o que um escritor do século XIX quis dizer sobre o estranho efeito de um certo tipo de olhar. Como se eu estivesse numa de nossas maravilhosas praias de realidade virtual, com os pés enterrados na areia, senti que o chão cedia, à força da ressaca. Fitar os olhos de Verônica era como ser arrastado mar à dentro. Magnetismo animal, diziam os velhos romances açucarados; pathos, exclamavam os personagens da literatura expressionista. Verônica tinha pernas longas, seios pequenos e bunda arrebitada, qualidades que me excitam nas mulheres reais e virtuais. Seu olhar como que atravessava as coisas. Observei-a atentamente. Não era um programa de simulação de realidade, mas talvez fosse adepta de meditação transcendental, capaz de passar dias conectada ao Grande Cérebro. Hoje é difícil dizer qual a porção real, qual a porção simulada dos seres humanos. Eu mesmo tenho mais de 62 por cento de minha massa corporal composta de componentes artificiais.
– Ela é transcendental – comentou André, assim que a mulher se ausentou da sala.
– Desculpe – eu disse – esqueci de desligar meu Interceptador...
– Não tem problema – ele respondeu – não sou ciumento.
Imediatamente, regulei meu Interceptador de Pensamentos e Produtor de Realidade Virtual em freqüência que evitasse novas situações constrangedoras. Desde o final do século XXII, esses aparelhos são absolutamente necessários. Dispendiosos, mas eficientes. Nas regiões pobres, aonde a nova tecnologia ainda não chegou, os conflitos são permanentes. Contam que, no passado, a hipocrisia é que possibilitava as relações sociais. Nesses tempos arcaicos, a mente humana ainda era indevassável. Imaginem, já vivemos um período da História em que tínhamos livre arbítrio e direito à absoluta intimidade! (Por um bom período, as exclamações estiveram desativadas. Desde o advento do novo governo, instalado em 2357, sutilmente mais liberal, exclamações e reticências retornaram ao léxico. No entanto, conforme o Novo Manual de Conduta, recentemente lançado na Rede, recomenda-se o seu uso com parcimônia). Hoje, para se preservar um mínimo de autonomia mental, é preciso gastar-se fortunas. O aparelho de IPPRV, em si mesmo, é barato; caras são a manutenção e os créditos de freqüência. Agora que meu Interceptador está ajustado, posso confessar: eu o tenho usado pouco por falta de dinheiro. André não pode saber disso, seria muita humilhação. Espero que ele não consulte os registros no Grande Computador, onde há cópia desse texto. Nada, absolutamente nada do que escrevemos ou pensamos escapa ao Arquivo Universal. Os ativistas dos direitos civis que defendiam a confidencialidade desses dados estão presos ou mortos.
Verônica retornou com os cabelos úmidos, sem a maquiagem pesada, num vestido de cetim negro que se grudava às suas ancas como fazem as roupas magnetizadas pela eletricidade que emitimos. No escuro, aquele vestido, que mais lhe revelava o corpo do que o escondia, produziria faíscas ao ser tirado. Evitei encará-la outra vez. Era esplendor demais, sedução demais. E não era minha. Observei André e ele parecia achar perfeitamente natural que ela retornasse à sala, mesmo com minha presença ainda na casa. Vi, inclusive, no canto de seus olhos, um ar de satisfação, quase prazer. Meu primo parecia deleitar-se com a exposição da própria mulher, em mais um de seus fetiches.
Somos memória, um absoluto presente que se apaga no mesmo instante em que é, ou um arremesso para o além, um vir a ser que não se completa jamais no ser? Agora, que recordo e revivo o que vivi naquela noite, é o passado que se regenera, é o presente que se esvai ao retornar ao passado ou é o futuro que insiste em sobreviver?
Sou fotógrafo e estou de volta à Ameríndia depois de oito anos de ausência. Morei em Nova Bruxelas, Nova Amsterdã e Nova Paris. Um dia, acordei com saudade da família e da terra natal. Fiz as malas e regressei. Mal encostei os pés na sala de teletrans-de-chegada e me conectei com André. Nunca, naqueles oito anos, perdêramos contato.
– Vais jantar na minha casa, no sábado – respondeu, eufórico com o meu retorno.
No dia em que viajei à Grande República do Islã, que congrega num só Califado as terras do Oriente e da antiga Europa, “para não voltar nunca mais”, como eu alardeara, ele estava lá, na ante-sala do teletrans-de-partida, com os olhos vermelhos e a voz embargada.
– Tenho certeza que vais voltar – ele me disse, quando me abraçou.
André nunca se interessou por arte, preferia as coisas da terra. Cães e gatos, que horror. Passar os dias, os meses, os anos a cuidar de cães e gatos! Não me surpreende que tenha se transformado em veterinário depois que a fazenda da família foi sugada pelas transformações sociais sofridas nas últimas décadas. Perdeu os anéis, mas ficou com os pêlos! Eu, ao contrário, tinha – e tenho –, nojo desses brinquedos vivos, de suas tosas, de suas tosses, de suas sarnas, de suas fezes. Adoro animais domésticos, desde que empalhados, ou em fotografias. Sou, como tantos, fascinado pela aura que exalam, mas que não me lambam, e que estejam sempre bem aprisionados.
Jamais consegui deletar Verônica de minha mente. Introduzi em meu cérebro novas memórias, algumas reais, outras virtuais, e a mulher de longas pernas e olhar doce continua lá, como um vírus devastador. Talvez os relacionamentos amorosos devessem ser sempre assim: intensos, epifânicos e únicos. Repetir o que foi maravilhoso é o começo do fim. Só o que aconteceu uma única e irredimível vez é capaz de sobreviver ao desgaste; só a aura do absolutamente novo é que dá permanência à paixão.
Infelizmente, não a fotografei, mas a registrei, talvez para sempre, na memória – essa tela virtual em que podemos pintar e repintar a realidade ao nosso gosto, eliminando as manchas, corrigindo os tons, valorizando este ou aquele aspecto. Hoje, sempre que me deito com alguém, são fragmentos da imagem dela que acesso para me excitar. O que eu não daria para regressar àquela noite de sábado? O que eu não faria para recuperar, na língua, o seu sabor? Basta-me fechar os olhos e sentir-lhe o cheiro, uma suave mistura de canela, chocolate, baunilha e algo mais. Um perfume? O sabonete com que se banhava? O seu próprio suor? Seria dessas mulheres selvagens que se recusam a extrair as glândulas sudoríparas? Houvesse, mesmo, um néctar dos deuses, e teria essa mistura. Às vezes, Afrodite concede, a certas mulheres, alguns de seus próprios predicados. Mas a deusa é avara e ciumenta, e teme a concorrência. Por isso, ela evita derramar sobre uma e mesma mulher todos os seus dons. O que, talvez, explique a necessidade que temos de amar tantas delas, ao mesmo tempo. O homem que encontrasse a mulher que reúne beleza, inteligência e sedução deveria jogar-se a terra e cobrir a cabeça com cinzas, ou esconder-se no fundo de um poço para que os deuses não o vissem. Verônica recebeu mais do que merecia. Soubesse de seu poder, iniciaria um culto, abriria um templo, como tantas dessas falsas pitonisas que infestam os nossos grandes centros urbanos.
Murmurou qualquer coisa, que não entendi, quando André, um sorriso enorme no rosto bem escanhoado, nos apresentou. Mais tarde, durante o jantar, dei-me conta de que ela, na verdade, não falava – ronronava. Os olhos, meio enviesados, não olhavam – devoravam. Inquietos, não se fixavam em nada. Parecia uma fera enjaulada, a andar de um lado para o outro. Eu podia sentir, enquanto bebericava o excelente vinho local servido por André, o odor que o corpo de Verônica trescalava. Sua pele, que o sol devia acariciar três vezes por semana, nas salas de bronzeamento do clube, brilhava à luz mortiça que se espalhava pelo ambiente. De muito bom gosto, por sinal. Dela, naturalmente, que ele não tinha nenhuma sensibilidade para combinar tons e cores, móveis e cortinados, abajures e telas.
Verônica jogava a cabeça para o lado, para livrar-se das madeixas que insistiam em tombar-lhe diante do olho direito. Sobre os lábios finos surgia, de vez em quando, a ponta de sua língua avermelhada. Felizmente, meus quadris estavam sob a mesa. Ah, se eu não tivesse esquecido a câmera! Dizem que o novo governo pretende mudar a Lei, permitindo que não-fotógrafos possam registrar a realidade, como se fazia na antiguidade. Um fotógrafo não pode, jamais, sair sem o seu instrumento de trabalho. Sempre que estamos desprevenidos, o pássaro de fogo alça vôo diante de nossos olhos (Figura de estilo repetida 8.967.324 vezes ao longo do último ano, conforme registra o Arquivo Universal. Deseja utilizar uma metáfora menos desgastada?). Fiquei a imaginá-la em poses sensuais, com uma luz amarelada a pontilhar seus cabelos de brilhos fugazes. Seu nariz, de perfil, lembrava o de uma deusa egípcia. Se eu pudesse fotografá-la no chão, de quatro, como uma cadela, eu a transformaria num monumento ao desejo, ao prazer, ao festim da carne. Eram recém-casados, menos de um ano, se tanto. Não me aventurei a propor uma sessão de fotos, André poderia se ofender. E o que eu não queria jamais era perder a companhia deles, mesmo que ficássemos somente nos encontros casuais. Estar ali, naquela noite, já me bastava, enchia-me de gozo. Eu me sentia vivo outra vez, capaz de reformatar as trilhas do passado sob camadas de novas lembranças.
Depois dos pistaches, damascos, castanhas e queijos, Verônica serviu a janta, salmão grelhado com legumes, salada verde com pedaços de manga, regado a um maduro Côtes-du-Rhône, um de meus vinhos prediletos, e que eu trouxera como delicadeza de visitante educado. De sobremesa, a anfitriã serviu-nos musse de maracujá e licores de pêssego, amêndoas e amarula, essa exótica fruta africana que os macacos e os elefantes tanto adoravam. Os novos espécimes, geneticamente transformados, comem somente ração industrial, que não produz metano. Eu quis recolher os pratos e talheres, mas André não permitiu. Arrastou-me para o living, enquanto Verônica trabalhava na cozinha. Ele passou a mostrar fotos do casamento e a contar sobre a festa, num dos clubes mais sofisticados da cidade. Ah, o orgulho provinciano, a arrogância da antiga classe rural-proprietária! Como se isso, em nosso novo mundo, ainda tivesse qualquer importância. Um bom programa de computador, hoje, vale mais que milhares de alqueires de campo e gado. Pobre André e seus valores arcaicos e decadentes. Recostados no sofá, terminamos de beber a segunda garrafa de vinho tinto da noite. Um calor doce e aconchegante invadia os meus músculos, relaxava-os, e os meus pensamentos como que dançavam sob o efeito do álcool.
– Imagina – disse André subitamente, dirigindo-se à esposa, que acabara de sentar-se num dos almofadões – éramos dois adolescentes, quatorze ou quinze anos, e nenhum de nós conhecia mulher...
– E como faziam? – ela quis saber.
– Realidade virtual – ele respondeu...
– Pobrezinhos... – ela ronronou.
Mal disse isso, Verônica levantou-se e desapareceu no longo corredor. Antes de sair da sala, percebi um ar maroto em seu rosto. André não se deu conta de nossa troca de olhares. Quando ela retornou, poucos minutos depois, senti, no interior do bolso da camisa, onde eu colocara o meu Interceptador, a sutil vibração do pedido de acesso para a faixa de realidade virtual.
Fui ao banheiro e autorizei o contato. Antes de retornar, algum tempo depois, dei a descarga, para justificar a minha saída intempestiva da sala.
Encontrei André com os evidentes sinais do torpor produzido por excesso de vinho. Às vezes, entre breves cochilos, ele contava alguma história, sorria bovinamente, e nós respondíamos como se estivéssemos muito concentrados no que ele dizia. Para o meu primo, parecíamos ouvintes educados, pois ríamos com gosto de suas piadas grosseiras. Mas, no plano da outra realidade, Verônica, recém-banhada, vestia um minúsculo negligê vermelho, reagia às minhas caricias e... (Nesse ponto, o autor, em flagrante desobediência ao Artigo 236, parágrafos 23 e 24, do Código de Postura de Escritores, inicia uma longa e minuciosa descrição sexual, que o Programa de Censura Geral deletou para preservar os nossos valores e instituições. Ave, Grande Cérebro, que nos protege de nossas próprias perversões, anomalias e delírios!).
André nunca mais me convidou para jantar. Às vezes, nos encontramos em churrascarias, ou na casa de minha mãe. É um tipo sangüíneo, o meu primo. Ele tem necessidade de carne, de preferência mal passada. Imagino, sempre, que virá com Verônica, mas minha espera tem sido vã. Desconfia de alguma coisa? Seu Interceptador estava ligado na mesma freqüência do aparelho de Verônica? Terá ela contado a ele o que fizemos? Descarto a hipótese de que tenha acessado o Arquivo Universal e lido este texto. André é um analfabeto funcional, jamais lê qualquer coisa. Literatura, muito menos.
Sei que eu devia apaixonar-me por alguém, para esquecê-la, mas amor não é coisa que se queira, que se determine. Há ou não há. Amor pode ser uma mistura de canela, chocolate e baunilha.
E de suor, talvez.
Que maravilha! Adorei!
ResponderExcluirAh, o admirável mundo novo! Muito bom seu conto, Charles! Original, na verdade, apesar de lembrar o clássico que aludi acima. No início desse ano li O Presidente Negro, também uma obra que vai nessa linha. E como acertou previsões o Lobato naquele livro!
ResponderExcluirBem, espero que o Charles Kiefer e seu porviroscópio, não acertem na mosca nesse lance de "O Grande Cérebro" que tudo vê e tudo sabe. E caso acerte, que eu não esteja encarnado por aqui!
ave!
Saimos de um texto que remete ao meio rural e temos em mãos este conto cinematográfico! Muito legal! Mas quero ler mais do Suor no rosto!
ResponderExcluirAbraço!
CK. Desejo que dure pouco a crise interruptiva e que,ao reabrir-se a caixa-de-pandora, não escape dessa vez também a ESPERANÇA, enqanto aguardamos a postagem do cap 8 do SUOR.
ResponderExcluirEsse é o Charles abrangente....a infância passada no interior, a urbanidade da vida adulta... e sua grande imaginação!!!!! Bom mesmo é te conhecer,Charles....beijo
ResponderExcluirA literatura faz todo sentido porque desenvolve nossa sensibilidade É construída com todo tipo de figuras de linguagem que nos transporta para além da racionalidade.Os textos literários, por serem poéticos, nos alegram, nos ferem, nos desafiam, nos enternecem, nos despertam ódio, raiva, amor...afetos, paixão..enfim... pegam em cheio nossa alma...
ResponderExcluirArte maior, arte menor... seja como for, somente Arte, literatura como uma entre as várias formas expressivas... Como viver sem Arte? Como ser um André? Como abrir mão das visões caleidoscópicas que a Arte pode propiciar? sintonia entre almas...
ResponderExcluirLindo Charles, a boa literatura está conectada entre si, lembrei de Capitu, olhos de ressaca...