terça-feira, 25 de maio de 2010

À espera do grande engarrafamento

Hoje, ao abrir a caixa postal do Refúgio, escritório em que me escondo para escrever, encontrei quatro faturas atrasadas de conta de luz. O que significa que há mais de quatro meses não escrevo nada.

Crise. Uma profunda "crise escritural". Já recolhi meu romance da editora, não quero mais publicá-lo, já decidi "dar um tempo" a mim mesmo, para examinar em que encruzilhada tomei a via errada. "Dar um tempo", na linguagem eufemística dos amantes é "sair de fininho", "deixar que as coisas se auto-destruam".

Ou será uma grande desilusão com a própria literatura, o que me aflige?

O argumento da falta de tempo é pífio, auto-enganador. Escrevi meus melhores romances e contos em épocas em que trabalhava dezesseis horas por dia. Escrevia aos domingos, de madrugada. em estações rodoviárias, dentro de ônibus e aviões, à mão, sem as facilidade eletrônicas que tenho hoje.

Não. Falta de tempo não é desculpa. É falta de fé. Em mim, na função da literatura, na humanidade.

Antes, como dizia o Sergio Faraco, eu escrevia com a sensação de que ia salvar alguém. Hoje, vejo que não há mais ninguém a ser salvo. Estão todos confortáveis, domesticados e bovinamente felizes. O petróleo jorra do fundo do mar, devastando a vida marinha, e ninguém se espanta, ninguém clama. Há trinta anos, havia gente que se acorrentava às árvores, para que não fossem derrubadas. Onde eles estão? Onde estamos? O que houve conosco? Fomos abduzidos? Ou a caverna platônica se expandiu tanto que tomou conta do planeta?

A solução talvez esteja num imenso engarrafamento, um engarrafamento de proporções apocalípticas, como aquele do conto de Julio Cortázar. Parados na Ipiranga, Sertório, Independência e Farrapos, talvez tenhamos tempo de refletir. Talvez uma saudável epifania nos acolha no meio do congestionamento.

Decisão tomada. Vou andar com o laptop no carro. Quando a cidade parar, sintonizarei a Rádio Universidade, e, entre um e outro acorde de Brahms ou Mozart, talvez eu volte a fingir que sou escritor.

7 comentários:

  1. Não estão todos confortáveis.

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  2. Parece-me que há muita dor. O que fizeram contigo?

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  3. Se fosse aqui em Sampa, já teriam deixado vc no escuro, meu caro! Antes de tudo, pegue essas contas!

    ...depois, saiba que há gente de monte que acha que vc é um baita escritor, gente que nem te conhece pessoalmente, e que não tem, portanto, por que puxar seu saco; mas é gente que faz suas oficinas, ou as acompanha à distância; gente que lê seus livros, seu blogue, seu site (aquele antigo que ainda está lá)e relê e relê... e pensa: caramba, escreverei assim algum dia?

    Gente como eu, Charles, que te conheceu sem querer, mas que passou a te seguir, se inspirar em ti, na profundidade psicológica dos seus romances, contos, crônicas...

    Enfim, crise todos vivenciam, e vivenciam em diversos momentos da vida e pelos mais variados motivos. De qualquer forma, saiba que há gente que está aí, com sede de te ler.

    Continuo esperando peo Dia de Matar Porco.

    Abços paulistanos
    Cesar Cruz

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  4. transforme os dias de crucificar a paciência no trânsito no dia de matar porco! tenho certeza que sairá algo bem produtivo.

    saudações,
    caetano.

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  5. Esta é boa...voltar a fingir que é escritor. Uma profunda "crise escritural" vc está sentindo e eu uma tremenda crise existencial. Visite o blog:http://meuseuseseus.blogspot.com/

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  6. Professor! Há dias entro neste blog, que é um dos únicos que acompanho, e vejo o vazio. E um vazio destes que causa angústia, não um vazio de alívio, como tantos causam.... Benditas são estas tuas palavras de indignação. Todos os dias encontro alguém que se depara com a realidade (como se ela não nos castigasse obstinadamente e sempre) e se põe resignado, com a justificativa de que não há o que fazer. O que posso pensar sobre isso é que a simples capacidade de se indignar, a ponto de, quem sabe, gerar um mal estar interno que nos faça parar momentaneamente e refletir num engarrafamento qualquer já é um feito.. o meu medo é que no fim do engarrafamento esteja só Diógenes e sua lanterna. Por isso, parece que ao contrário dos demais, com grata alegria recebi a tua indignação, afinal de contas reascendeste com a tua lanterna a luz que ilumina este blog.
    Como disse o Beto Canales, não estão todos confortáveis. E como disse Schopenhauer, quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre.

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  7. que coisa mais linda....é de chorar....adorei!!! é um soco no estômago. bjsssssssss

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