Hoje, ao abrir a caixa postal do Refúgio, escritório em que me escondo para escrever, encontrei quatro faturas atrasadas de conta de luz. O que significa que há mais de quatro meses não escrevo nada.
Crise. Uma profunda "crise escritural". Já recolhi meu romance da editora, não quero mais publicá-lo, já decidi "dar um tempo" a mim mesmo, para examinar em que encruzilhada tomei a via errada. "Dar um tempo", na linguagem eufemística dos amantes é "sair de fininho", "deixar que as coisas se auto-destruam".
Ou será uma grande desilusão com a própria literatura, o que me aflige?
O argumento da falta de tempo é pífio, auto-enganador. Escrevi meus melhores romances e contos em épocas em que trabalhava dezesseis horas por dia. Escrevia aos domingos, de madrugada. em estações rodoviárias, dentro de ônibus e aviões, à mão, sem as facilidade eletrônicas que tenho hoje.
Não. Falta de tempo não é desculpa. É falta de fé. Em mim, na função da literatura, na humanidade.
Antes, como dizia o Sergio Faraco, eu escrevia com a sensação de que ia salvar alguém. Hoje, vejo que não há mais ninguém a ser salvo. Estão todos confortáveis, domesticados e bovinamente felizes. O petróleo jorra do fundo do mar, devastando a vida marinha, e ninguém se espanta, ninguém clama. Há trinta anos, havia gente que se acorrentava às árvores, para que não fossem derrubadas. Onde eles estão? Onde estamos? O que houve conosco? Fomos abduzidos? Ou a caverna platônica se expandiu tanto que tomou conta do planeta?
A solução talvez esteja num imenso engarrafamento, um engarrafamento de proporções apocalípticas, como aquele do conto de Julio Cortázar. Parados na Ipiranga, Sertório, Independência e Farrapos, talvez tenhamos tempo de refletir. Talvez uma saudável epifania nos acolha no meio do congestionamento.
Decisão tomada. Vou andar com o laptop no carro. Quando a cidade parar, sintonizarei a Rádio Universidade, e, entre um e outro acorde de Brahms ou Mozart, talvez eu volte a fingir que sou escritor.
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Não estão todos confortáveis.
ResponderExcluirParece-me que há muita dor. O que fizeram contigo?
ResponderExcluirSe fosse aqui em Sampa, já teriam deixado vc no escuro, meu caro! Antes de tudo, pegue essas contas!
ResponderExcluir...depois, saiba que há gente de monte que acha que vc é um baita escritor, gente que nem te conhece pessoalmente, e que não tem, portanto, por que puxar seu saco; mas é gente que faz suas oficinas, ou as acompanha à distância; gente que lê seus livros, seu blogue, seu site (aquele antigo que ainda está lá)e relê e relê... e pensa: caramba, escreverei assim algum dia?
Gente como eu, Charles, que te conheceu sem querer, mas que passou a te seguir, se inspirar em ti, na profundidade psicológica dos seus romances, contos, crônicas...
Enfim, crise todos vivenciam, e vivenciam em diversos momentos da vida e pelos mais variados motivos. De qualquer forma, saiba que há gente que está aí, com sede de te ler.
Continuo esperando peo Dia de Matar Porco.
Abços paulistanos
Cesar Cruz
transforme os dias de crucificar a paciência no trânsito no dia de matar porco! tenho certeza que sairá algo bem produtivo.
ResponderExcluirsaudações,
caetano.
Esta é boa...voltar a fingir que é escritor. Uma profunda "crise escritural" vc está sentindo e eu uma tremenda crise existencial. Visite o blog:http://meuseuseseus.blogspot.com/
ResponderExcluirProfessor! Há dias entro neste blog, que é um dos únicos que acompanho, e vejo o vazio. E um vazio destes que causa angústia, não um vazio de alívio, como tantos causam.... Benditas são estas tuas palavras de indignação. Todos os dias encontro alguém que se depara com a realidade (como se ela não nos castigasse obstinadamente e sempre) e se põe resignado, com a justificativa de que não há o que fazer. O que posso pensar sobre isso é que a simples capacidade de se indignar, a ponto de, quem sabe, gerar um mal estar interno que nos faça parar momentaneamente e refletir num engarrafamento qualquer já é um feito.. o meu medo é que no fim do engarrafamento esteja só Diógenes e sua lanterna. Por isso, parece que ao contrário dos demais, com grata alegria recebi a tua indignação, afinal de contas reascendeste com a tua lanterna a luz que ilumina este blog.
ResponderExcluirComo disse o Beto Canales, não estão todos confortáveis. E como disse Schopenhauer, quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre.
que coisa mais linda....é de chorar....adorei!!! é um soco no estômago. bjsssssssss
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