quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A morte do livro

(Publiquei este ensaio em 1997, num livro a que chamei de O guardião da floresta. Agora que o e-book chegou, o que disse virou profecia.)

Uma questão aterroriza editores, livreiros e escritores: a morte do livro de papel, do volumen, este objeto quase sagrado para alguns, peçonhento para outros e indiferente às massas.

Um rápido exame da personalidade de gente que pensa assim nos leva a uma conclusão óbvia: são editores provincianos, atrasados no sentido lato do termo, e mal-informados. Sentem- se, quase, como que os inventores do livro. A multimídia não lhes está roubando um produto, mas uma visão de mundo. Não é por nada que os livros de papel são quadrados ou retangulares, atraem insetos, emboloram e fazem orelhas-de-burro (nas desastrosas edições sem orelha). Os livreiros que temem o livro eletrônico são, em geral, comerciantes tacanhos, que não enxergam além da prateleira ou do balcão, tanto se lhes dava se vendessem batatas, ilhoses, sardinhas ou as obras de Shakespeare, Dante e Cervantes, para ficar com a trindade da Idade Média (não por acaso, foi mais ou menos nessa época que o suporte material do livro começou a tomar a atual e indefinitiva forma). Livreiros desse naipe recusam-se a comercializar em seus armarinhos, ou diremos livrarinhos?, os produtos da multimídia, que têm inclusive o mesmo formato do livro comum. Até nisso os editores da nova tecnologia são mais avançados. Sabem utilizar bem o fetichismo do tamanho. Os escritores não conseguem compreender o que está acontecendo. Estão mais preocupados com a questão do direito autoral, como se ganhassem rios de dinheiro, e com a crítica, como se crítica literária, no final do século XX, tivesse qualquer importância.

Na verdade, o livro, o grande livro, o livro mundial, está nascendo. A Biblioteca de Babel, sonhada por Jorge Luis Borges, já se tornou realidade via Internet. Nenhuma nova tecnologia, jamais, em lugar algum, destruiu uma antiga, mas apenas aperfeiçoou, incrementou e popularizou a que existia. A mudança nos meios de produção trará, é claro, alterações profundas nas relações entre editores, livreiros e escritores. O que já vem tarde, que a hipocrisia é medonha. O editor finge que edita, o livreiro finge que vende e o escritor se dá por satisfeito, desde que seu livro apareça na vitrine da livraria. Na grande rede da infovia, todos serão leitores de todos. O problema, outra vez, será incorporar o máximo de excluídos ao sistema informatizado. A voz de meu pai, na já distante infância, afirmando que jamais poderíamos comprar uma televisão, me consola. Certo, alguns ficarão de fora. E quando, na incrível e triste história do gênero humano sobre a Terra, muitos não ficaram?

Meu Deus, alguns editores, alguns livreiros e alguns escritores estão se indagando, e o sagrado livro de papel? Sobreviverá, não tenham dúvida. E ainda mais, ficará mais atraente — já se percebe a mudança na concepção gráfica, no acabamento, no tipo de papel — e mais acessível aos pobres (produtos tecnologicamente superados vêem seus preços despencar. Ei, não está na hora de nossos sebos caírem na real, sem trocadilho, por favor, e venderem seus livros usados pelo que eles valem no mercado internacional?). O que o sistema editorial se recusou a fazer — verticalizar a produção e diminuir custos e preços — a indústria de reprografia fez. Por isso, a choradeira de editores, livreiros e escritores contra o xerox é melancólica, risível e ineficaz. Venha para o lado de cá e tente convencer um aluno sem dinheiro a pagar o triplo por um livro convencional.

A aura do livro de papel não vai cair na sarjeta, meu poeta, vai brilhar com mais intensidade. Hoje, depois que o videocassete e as Tvs a cabo trouxeram os filmes para dentro de casa, o escurinho do cinema ficou revalorizado. O livro, depois de vários séculos de imobilidade, encontrou um concorrente, o que há de levar os editores a se tornarem mais eficientes, os livreiros mais dinâmicos e os escritores mais informados, mas continuará sendo o melhor companheiro para as solitárias noites chuvosas, o melhor contrapeso para segurar portas, a não ser que se inventem laptops ou videobooks com cheirinho de mofo, poeira e buraquinho de traça e páginas para se acariciar.

(In: Kiefer, Charles. O guardião da floresta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997),

4 comentários:

  1. ler na internet é semelhante a ler vários livros numa tarde e de noite, antes de dormir, misturar os assuntos. A sensação de uma "biblioteca sem muros".(Roger Chartier)

    C. Dall´Agnol

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  2. A mim encanta, desde que fui apresentada a este amontoado de papel em formato quadrado, as infinitas possibilidades de acessá-lo ao ar livre, na praça, nos ônibus e trens da vida.... tá certo que poderia fazê-lo com um laptop mas... em que lugar eu anotaria à tinta onde adquiri, de quem ganhei, e, principalmente quando, para daqui a muitos anos exibir orgulhosa minha coleção de relíquias? Por estas razões prefiro o cheiro de mofo... Mas, um brinde à democratização da leitura, sim, e, como disse o Professor, a "aura do livro de papel não vai cair na sarjeta"..
    C.Schmidt

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  3. O texto revela de forma poética o que é fato. O livro é uma ferramenta indispensável, como meio de difusão da informação, tal como a internet. A televisão não acabou com o rádio. A internet e o kindle não terão como eliminar o livro. O aumento da produção da informação necessita de diversos meios para seu registro e disseminação. O importante é ficar atento ao processo de inclusão e exclusão social.

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  4. Anônimo disse...
    O texto revela de forma poética o que é fato. O livro é uma ferramenta indispensável, como meio de difusão da informação, tal como a internet. A televisão não acabou com o rádio. A internet e o kindle não terão como eliminar o livro. O aumento da produção da informação necessita de diversos meios para seu registro e disseminação. O importante é ficar atento ao processo de inclusão e exclusão social.
    Sandra Sahb
    2/11/09 14:07

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