Quem podia imaginar que a Juliana ficaria tão chateada? Na hora de comprar os ingressos, só deu pra três. Na última hora, ela não pode nos acompanhar, e aí, na hora de pagar, vimos que faltava dinheiro. Dava pra três, mas não pra quatro. Usamos um pouco da grana que ela ela deu pra Camila, pra completar.
— Mas era o dinheiro para o meu ingresso — ela disse, furiosa.
— Tinha uma fila enorme, se a gente não comprasse naquela hora, depois, só em cambista.
— Se vocês fossem minhas amigas de verdade, não teriam comprado ingresso nenhum.
— E perder o jogo?
— Sim, a gente perdia o jogo, mas não a amizade.
Era a nossa melhor amiga, a mais festeira, não recusava convite pra nada, trabalho ou passeio, encarava todas. Fosse passear no shopping ou fazer trabalho em grupo, montar peça de teatro pra melhorar a nota de literatura. A gente não desgrudava nunca, as quatro sempre no fundo da sala, nem aí pro professor se esgüelando lá na frente. Ou bem aí, se a aula era de Química. Não pela matéria, um saco, mas pelo teacher, um baita gato. Nem na hora do recreio a gente desgrudava, ficávamos andando pelo pátio, paquerando os guris da terceira série, que os da nossa turma eram uns bolhas. Na hora do vôlei, quase formávamos um time, era só convidar mais duas, e aí não interessava quem, podia ser a Tatiana e a Elisa. Ou a Beti e a Clarisse. Desde que não fosse a metida da Aline-Nariz-Empinado. Êta guria mais cheia. Só os abobados da nossa turma agüentavam ela, faltavam carregar a dondoquinha no colo.
A idéia de ver a final do campeonato de basquete masculino tinha sido da Camila, que era louca pelo cestinha do Pitti-Corinthias.
Na segunda-feira, durante a aula de matemática, a Juliana recebeu o bilhete da Camila. Teve que disfarçar, porque o Aluísio, vulgo Banana, parece que tinha olhos nas costas. No instante em que a guria pegou o papelote enroladinho por baixo do sovaco, o Hipotenusa se virou com a lentidão da tartaruga de Aquiles e cravou os olhos de mal-amado nela. O silêncio tomou conta da sala, um silêncio denso e ansioso, aquele mesmo silêncio que se abateu sobre a gente na hora em que o Ayrton Sena seguiu direto pro muro. E ele veio, o professor de matemática, bólido, pisando firme, com o andar de ganso velho e gordo, os tacos dos sapatos ecoando além da sala de aula, retumbando dentro da gente. Ah, mas a Juliana era uma cretina, sabia mentir na lata, sem tremer a sobrancelha.
– Quero ver o bilhete – ele disse, a voz rouca de quem fumava feito maria-fumaça.
– Que bilhete? – ela perguntou, com inocência suficiente pra fazer corar os anjinhos do Michelângelo.
– Esse que a senhorita tem na mão.
A sala inteira concentrou-se na mão fechada de Juliana, por um segundo os planetas deixaram de girar ao redor do sol. Quarenta e oito pares de olhos, centenas de braços e pernas, paredes, portas e janelas, as carteiras da escola, os corredores, as escadas, os degraus, as ruas e as avenidas, as cidades ao redor de Porto Alegre, tudo parou por um breve instante, convergindo para os dedos longos de Juliana. Sádica, ela manteve o universo fechado dentro da mão por um longo tempo.
– Vamos lá – disse o Banana –, abra!
Juliana girou a cabeça, fitando a sala toda como se perguntasse: “Abro ou não abro?”. Deve ter visto em nossos olhos o desespero, era mais que evidente que o homem ia explodir, e abriu.
No princípio, ele concentrou o olhar, enrugou a testa, como se procurasse ver uma coisa muito pequena. Depois, foi ficando amarelo, vermelho, azulado, roxo.
– Quer ler a minha sorte? – ela perguntou e abanou a mão vazia.
Ninguém mais agüentou, a avalanche de medo represado arrastou tudo.
O Hipotenusa se arrastou até a mesa, recolheu o caderno de chamada, os livros, as canetas e os pedaços de giz, fechou a maleta 007 e sentou-se, a cabeça entre as mãos. Não era um bom sinal, por isso o silêncio retornou, mas desta vez como um nevoeiro que subisse lento do Guaíba nas frias manhãs de junho. Quando a gelatina de silêncio tinha se tornado compacta e pegajosa, ele pegou a maleta, levantou-a acima da cabeça e jogou-a contra o tampo da mesa. O estrondo deve ter sido ouvido até em Pasárgada.
– Tirem uma folha, vamos fazer um teste – ele anunciou, solene, carrancudo, os olhos faiscando de raiva, depois de quase matar todo mundo de susto.
Nem é preciso dizer que a Juliana foi a única a gabaritar o teste. Tudo o que o Hipotenusa queria era humilhá-la com uma nota baixa, mas a Juliana era linha-dura, fazia programa de estudo com a mãe, que também era professora. A velha perguntava e ela respondia. Pra gente, mais de seis era a glória; pra ela, menos de nove era tragédia.
Na hora do recreio, depois do suplício do teste de matemática, a Camila perguntou:
– O que achou da idéia?
– Que idéia?
– Que te escrevi no bilhete...
– Não li, não deu tempo.
– Como não deu tempo?
– Engoli.
Deu um ataque de riso na Camila.
Era a nossa melhor amiga, agora anda aprontando cada uma. Roubou até o namorado da Márcia Batonzinho.
Tudo por causa da maldita final do jogo de basquete.
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Gostei de algumas partes do conto, mas se me permite, e acho que permite, já que é o que nos ensina na oficina, darei minha opinião sincera. Não encontrei o fim do conto e acho que o narrador "vaza" em alguns momentos referências próprias, como na "tartaruga de Aquiles" ou "quando a gelatina do silêncio tinha se tornado compacta e pegajosa". Talvez falte arroz e feijão na minha digestão, mas, pra eu saber disso, só dando minha opinião.
ResponderExcluirNa opinião desta iniciante, brilhante. Coisa que ocorre quando a simplicidade da história e o brilhantismo do narrador se comunicam.
ResponderExcluirAbraço
Clarissa
Legal, o narrador é como os personagens!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSempre é encantador estar aqui e poder ler estas preciosidades ! Parabéns ao Autor ! Meu carinho.
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