Publius Ovidius Nasão nasceu em Sulmona em 43 a.C. e provavelmente morreu em 17 a.C. Segundo os manuais de história da literatura, que se copiam em cadeia infinita, foi um jovem talentoso e culto, brilhante e original, refinado, elegante, irreverente e irônico. Sobressaía-se entre os discípulos dos retores Arelio Fusco e Porcio Latro pela facilidade com que versificava. Seu pai quis vê-lo dedicado à carreira judicial, mas ele consagrou-se à poesia. Entre 20 a 15 a.C. apareceram suas primeiras obras, que tinham um caráter erótico, como as Heróides e Amores, escritos dentro dos cânones alexandrinos. Mais tarde, ao final do século I a.C., ou já na era cristã, publicou novas obras: A arte de amar, Os remédios do amor e Produtos de beleza para o rosto da mulher.
Depois de retratar a futilidade, a frivolidade e a inconseqüência dos poderosos de Roma, Ovídio dedicou-se a uma obra de grande envergadura, uma espécie de constelação mitológica, uma reunião de mitos e lendas sob o nome de As metamorfoses.
Inspirando-se em poetas como Nicandro de Colofon, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio de Nicéia, sua obra compõem-se de quinze livros em versos hexâmetros dáctilos, não mantidos na maioria das traduções, versos que organizam cerca de duzentas e cinqüenta lendas etiológicas sobre a origem dos mais diversos seres (mares, astros, fontes, plantas, animais) como produtos de metamorfoses.
Segundo Millares Carlo, o argumento do grande poema As metamorfoses “por sua prodigiosa variedade, se prestava a ser tratado por um poeta de tanta imaginação e facilidade como Ovídio, cujo mérito principal reside não só em ter impresso unidade à variedade inconcebível de acontecimentos, episódios e personagens (Deucalião e Pirra; Faetonte; Cadmo e o Dragão; Perseu e Andrômeda; Dédalo e Ícaro; Filemon e Baucis; Ifigênia; Hécuba etc.), mas também na diversidade de descrições e na mestria com que no mais das vezes soube evitar a repetição de procedimentos narrativos idênticos”.
Para Zélia de Almeida Cardoso, é difícil classificar-se o poema de Ovídio quanto ao gênero, já que ele não é, para ela, uma epopéia, apesar de seu tom épico e o emprego sistemático da narração, mas também não se caracteriza como um poema didático, pois se quiséssemos considerá-lo uma tentativa de explicação do universo pela teoria neopitagórica, esbarraríamos na falta de qualquer fundamentação científica, no superficialismo e no tratamento irônico e brincalhão dado a algumas lendas. Assim, Cardoso considera-o um poema lírico, já que encontra nele “uma sucessão de quadros coloridos e belos, onde não falta o movimento, a caracterização pessoal e a expressão da sentimentalidade.”
Para Ettore Paratore, ao abandonar o dístico elegíaco com que compusera seus livros anteriores e optar pelo hexâmetro na nova obra, Ovídio nos dá um exemplo do tour de force de sua inventiva caprichosa e do seu virtuosismo habilíssimo, entrelaçando, com achados técnicos os mais variados (por exemplo, inserir um ou mais contos dentro de outra narrativa, aliar um tema a outro baseado numa semelhança exterior, unir uma série de narrações por uma afinidade formal que os reagrupa etc), todos os mitos de transformação que a poesia anterior lhe oferecia.
Ao ligar com um tenuíssimo fio os numerosos episódios do poema – a alegoria da constante transformação dos seres e das coisas – Ovídio desenvolveu até ao inverossímil os artifícios da técnica helenística introduzidos na poesia latina por Catulo e por Virgílio, a técnica de inserir uma narrativa mítica dentro da outra (Catulo e Virgílio devem ter aprendido esta técnica com Homero, que na Odisséia a utilizou com grande eficiência).
Ovídio buscou apoios em todas as tradições culturais para dar ordem ao imenso e informe material que tinha em mãos. Procurou alinhá-los em perspectiva como uma história do cosmos e apressou-se a passar dos mitos gregos para a história de Roma, a cantar os prodígios monstruosos prenunciadores da morte de César e a esconjurá-la, e a improvisar um final filosófico-religioso que nobilitasse a sua longa insistência no tema da metamorfose.
Regina Zilberman, em prefácio à dissertação de Márcia Helena Saldanha Barbosa sobre O louco do Cati, lembra que a “metamorfose já se encontra na gênese do universo e acompanha pari passu a trajetória dos deuses e dos homens, mas que encontra-se igualmente na origem da própria literatura, porque Ovídio constrói seu poema à sombra de outras obras: abeberou-se em Homero, na tragédia ateniense, nas novelas de aventuras e na epopéia latina.”
Segundo Zilberman, Ovídio condensou a prosa e a poesia que o precederam e, a partir daí, serviu de inspiração inesgotável para a literatura, o drama e as artes plásticas. Criar é metamorfosear, ensina Ovídio. O mundo só adquire sentido depois de um deus conferir forma ao caos; um texto só ganha significado porque se constrói a partir de outro texto previamente existente mas que, por sua vez, só é entendido porque novos textos o iluminaram.
Tanto o cosmos quanto a literatura não têm início: eles principiam, mas algo sempre os precede; e esse precursor não representa nada, enquanto o sucessor não explicitar algumas de suas significações.
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