domingo, 29 de abril de 2012

 
Equivalência de forma e tratamento

Sou professor universitário e escritor. E como acadêmico-escritor vivo uma situação patética, para não dizer hilária.
Escrevo um romance. Que me toma anos de pesquisa, anos de trabalho para redigi-lo. Não faço citações, não transcrevo textos alheios. Minha bibliografia é o conjunto de obras que fui capaz de ler ao longo de toda a minha vida, somada aos filmes que vi, às músicas que ouvi, às experiências que vivi. Como sou professor-universitário de pós-graduação em Escrita Criativa, vivo acossado pelo que se conhece por produção acadêmica, dados que precisam ser lançados no Currículo Lattes, por que se eu não tiver uma determinada pontuação, serei descredenciado; meu curso, no caso a Faculdade de Letras, será prejudicado no ranking nacional das universidades brasileiras.

Meu romance, tão demorada e pacientemente elaborado, alguns me tomam quatro ou cinco anos de trabalho, atividade em que apliquei engenho e arte, em que procurei o que a crítica literária chama de tour-de-force, não vale praticamente nada como produção acadêmica.
E, depois que publico o romance, vivo uma situação verdadeiramente kafkiana.

Um aluno faz um ensaio de algumas páginas sobre o meu romance e publica suas considerações numa Revista de Qualis A e recebe uma pontuação maior que a minha em termos de produção acadêmica...
Por quê?

Porque tolamente o meu país, seus governantes e todos os reprodutores de platitudes, que não leram as críticas de Emanuel Kant, a da razão pura, a da razão prática e a da razão estética, consideram a arte, qualquer que seja, inferior ao que eles consideram ciência...
Ciência e arte são modalidades dialéticas de um mesmo processo mental. As entidades artificiais (e sublinho o sintagma), como já disse Luis Racionero, que compõem a arte são previamente inexistentes, como as da ciência. Nossos golens de palavras e nossos labirintos de imagens não diferem, em essência, das fórmulas, dos signos, dos parâmetros, das funções, dos gráficos e leis que compõem os conjuntos de relações simbólicas de qualquer ciência.

Até o final do século XVII a mesma techné comandava os dois fenômenos, arte e ciência. Sem o conhecimento da perspectiva, Leonardo da Vinci não teria sido possível. O Sturm und Drang é que transformou essa excisão numa condição intrínseca. E que é completamente falsa. E injusta.
Assim que deixarmos o romantismo para trás, haveremos de reintegrar esses dois processos e nos livraremos do preconceito que causou essa triste separação. Birkhoff já elaborou a fórmula da valoração estética, se é que precisamos apelar para o jargão científico: m = o/c. Nessa fórmula, as variáveis são: c = complexidade do objeto; m = sentimento de valor ou medida estética; e o = quantidade de harmonia, simetria e ordem.

O Brasil mudou. Além de uma mulher na presidência, temos agora uma presidenta. Reacionários e conservadores foram unanimemente “científicos” na afirmação da impossibilidade de declinação, embora o vernáculo já consignasse o termo como substantivo feminino há séculos.
A mudança de postura quanto ao valor da produção artística, para fins de pontuação no Lattes, passa também por uma tomada de posição política. Nossos gestores educacionais hão de ser coerentes com os novos ares que sopram sobre a República e hão de reavaliar esse equívoco. Na PUC do Rio Grande do Sul já temos mestrado e doutorado em Escrita Criativa, um curso que formará novos professores-escritores, formandos que serão lesados academicamente, caso esse estado de coisas persistir.

A teoria da relatividade e a teoria quântica há muito destruíram a noção cartesiana de objeto científico. Quando a própria matéria já deixou de ser uma substância sólida para se transformar em energia vibratória, um oceano de luz e movimento incessante, a noção, atrasada e preconceituosa, de ciência precisa ser revista, especialmente nas ciências humanas (ué, literatura é ciência humana?).
Professor de Escrita Criativa, com mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Teoria Literária, exijo equivalência de forma e de tratamento no Currículo Lattes. Ou então que os professores-cientistas produzam textos artísticos também.

11 comentários:

  1. Brilhante e urgente texto, Charles. Não te furtas a colocar o dedo na ferida do pensamento que domina as agências de pesquisa e fomento no Brasil. Além de um discutível critério de avaliação por vezes muito mais quantitativa que qualitativa dos artigos (não há, por exemplo, uma comissão de leitores externos e por área), há, como muito bem apontaste em teu texto, um deslavado preconceito em relação ao texto artístico, fruto de uma visão que George Steiner não cansou de condenar em seus textos: o objeto artístico vem primeiro, a crítica depois. Só a obra de arte é livre, o resto se ergue em seu entorno. Mais grave ainda me parece o tom condescendente senão reacionários dos avaliadores que tendem a olhar para o escritor-professor como um problema. É como se só aqueles detivessem seriedade e método. Não sei como este quadro pode ser alterado,, mas teu texto rompe o silêncio em torno da questão. Agora que se inicie o debate.

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  2. Joselita A. Ribeiro16/5/12 06:20

    Não é de se estranhar que essas situações kafkianas aconteçam neste nosso Brasilzinho com complexo de viralatas. Desde que soube que Mário Quintana foi preterido na ABL por Paulo Coelho e José Ribamar Sarney, deixei de acreditar na seriedade das organizações/instituições literárias burocratizadas. Mas, se alguém não reclamar, a situação não muda. Continue a lutar e boa sorte. Um abração da Joselita.

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  3. Totalmente pertinente. Mais do que urgente superar essa situação que também se aplica ao campo da Comunicação. Valeu, mestre. Beijo pra ti.

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  4. Joselita,
    cabe contemporizar tua fala sobre Quintana ter sido preterido em razão do Paulo Coelhou ou Sarney. São épocas/décadas diferentes, embora o acontecimento em si seja o mesmo...

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  5. Infelizmente, a CAPES acha que publicar artigo é fazer alguma coisa... muita gente que produz de verdade, escreve pouco e, por isso, se dá mal...

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  6. Caro Charles, deparei-me com este seu texto em uma rede social e corri a buscar uma maneira de publicá-lo em: aartedenarrar.blogspot.com.br, blog que criei há alguns dias, exatamente por sentir que a política da nossa educação está se direcionando fortemente para o caminho da tecnologia e força de trabalho, deixando de lado a arte literária, dentre outros ramos das ciências humanas. Tomei a liberdade de copiar daqui o seu texto e publicá-lo neste blog, para que a discussão continue e apanhe mais gente. Está sendo prazeroso conhecer este seu espaço e o trabalho que realiza com a escrita criativa. Um abraço, Hosamis.

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  7. É a burrocracia reinante do conhecimento fastfood que produz este tipo de monstrengo!

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  8. Minha sorte é a aposentadoria que se avizinha... Mas, but, dos meus 12 livros (poemas, crônicas, romance, infanto-juvenil-adulto) nenhum pode ser considerado no CV, agora CL, ou para pontuação em concursos, como "produção científica"...

    Kiefer e Colegas, o que seria da Humanidade não fossem os livros? O que seria das Letras não fosse a Literatura? O que seria da Literatura não fossem os escritores (poetas, contistas, romancistas, cronistas, dramaturgos)?

    Caros, a Barbárie, já gatinhando, será instalada em todos os compartimentos e departamentos...

    Abraço, Charles, Pedro Gonzaga...

    Ildo Carbonera

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  9. Caro Professor. Nunca estudei com o senhor mas soube apreciar o seu ponto de vista aqui lido. Pode-se pensar o que quiser do seu texto que li na verdade no facebook, recebido ali com muitos comentários e gostaria também aqui de pontuar o meu: vosso artigo tem o valor de ser um texto que fomenta o pensamento, o debate, isto que se vê bem díspares.

    O fato a transformar, a mudar esse rumo dos ventos é que cada vez mais vemos, lemos coisas falando sobre coisas, listas dos melhores, bem como dos piores disto ou daquilo, apreciações, comentários, críticas, resenhas, e não as coisas originais que levaram outros a falarem delas. Isso é marcante e é terrível...
    Abraços,
    Sorte, que a sua luta se torne a luta de muitos mais.

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  10. Professor Charles Kiefer,

    Não escrevo muito, produzi alguns artigos de interpretação, mas eu daria um dedo de minha mão para ter a capacidade de escrever um romance.
    Na Universidade, o mesmo indivíduo que se diz favorável à cultura diz amém àqueles que nos impõem esse modelo de produção em massa de artigos científicos, dando-lhes razão de medir atuação universitária em números. Engessados e esmagados por essa cobrança fora de propósito, estamos agora esquecidos em que implica chamar institituições de Ensino Superior de "Universidade".
    E no frigir dos ovos, nessa mesma linha de "valorização do trabalho", no equívoco da Universidade, o professor universitário que ministra aulas e orienta na pós-graduação vale mais que o professor que ensina e orienta na graduação, que vale mais que o professor do ensino médio, que vale que o do ensino fundamental. Quem ensina nossa moçada a ler e escrever, hein?

    Cláudio Aquati

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  11. Mas a pergunta que não quer calar é: essa história de priorizar o "quantitativo" e o "científico" só rola no Brasil? Só no Brasil? Pra tanta coisa o argumento é sempre esse... Alguém pode dar uma luz sobre isso???

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