Once upon a midnight dreary chegamos — eu, caindo de sono, e o Luiz Antonio de Assis Brasil, exausto de fadiga — a uma curiosa e esquecida cidade ao sul de Pau-d’Arco e muito próxima de Pasárgada. A viagem de ônibus fora longa e trepidante, e era no meridional novembro. Esperamos longo tempo na rodoviária deserta, a andar de um lado para outro, e como ninguém aparecesse para nos apanhar tomamos um táxi para o hotel. Numa sinaleira no centro da cidade, no instante em que o motorista perguntava de onde vínhamos, alguém encostou um revólver na sua cabeça. O sujeito, maneta, de chapéu, lenço vermelho ao pescoço, bombachas, botas e esporas, queria perseguir uns desafetos, ou sabe-se lá o quê, e precisava do carro! Lívidos de espanto, como o poeta que recebeu a visita do Corvo no poema de Edgar Alan Poe, pedimos para descer ali mesmo, a gente dava um jeito na vida, com mais calma.
— O hotel é logo ali, ó — disse o taxista e apontou para trás. A entrada em cena do pistoleiro de um só braço livrou-nos de passear um pouco mais às custas da desonestidade. Antes que o tiroteio começasse, pegamos nossas bagagens e procuramos abrigo no hotel.
— Tenham uma boa noite — murmurou o Assis, sem perder a elegância, antes que nos afastássemos.
Nonada, tiros não ouvimos, mas cantorias sim, a noite inteira. De um lado, a zoada de um baile; e, de outro, um grupo de adolescentes bêbados. Só consegui adormecer quando a aurora surgiu matutina com seus dedos de rosa. Será que o Luiz Antonio teria saído para a sua costumeira caminhada como em Porto Alegre sempre faz?
Mais tarde, no refeitório do hotel, vi-o com olheiras de Baudelaire. Espartano, apesar de indormido, saíra sim. Entre uma fatia e outra de melão, ficamos a imaginar continuações para o caso do tropeiro mutilado. Em que revolução perdera o braço? Num jogo de truco? Numas carreiradas? Vítima da talidomida? E se o motorista tivesse reagido e no meio do entrevero nos sobrasse chumbo quente? Bolamos manchetes para os jornais, chamadas para os noticiários de rádio e TV. Tínhamos a pretensão de imaginar que um desfecho insólito nos colocaria, enfim, na primeira página! Depois, vieram nos buscar para o encontro com os alunos.
Ao meio-dia, fomos arrastados para uma churrascaria, onde, além de carne gorda, emborcamos alguns copos de cerveja. Quando meu companheiro de viagem fitava os garçons com aquele olhar fixo de quem adormeceu sem fechar os olhos, sugeri à anfitriã que me deixasse no cemitério. Sugeri, com a maldade que me é inerente, que o Assis Brasil nos acompanhasse. Como ele não é de fugir da raia, topou. E lá fomos nós, sob um sol abrasador, levemente altos, passear entre as tumbas, nesse silêncio respeitoso que a morte sempre impõe. Sobre o ombro de um anjo barroco, vi um pássaro negro. Chupim, pensei. Never, ele poderia ter grasnado, mas calou. O que se ouviu, subitamente, foi a voz da professora. Diante de um pequeno mausoléu, contou-nos a história de um menino que tivera um braço amputado num acidente no início do século. A mãe, zelosa com a integridade do filho, mandara embalsamar o braço. Homem feito, o mutilado desentendeu-se num bolicho, sacou o revólver, mas não chegou a fazer pontaria, o outro foi mais rápido. O bracinho embalsamado seguiu o corpo ao caixão.
Nossa cicerone sequer havia terminado a narrativa, eu e o Assis gritamos: “É minha! A história é minha!”. Eu ia dizer ouvi primeiro, mas me detive a tempo. Decidimos no palitinho a quem pertenceria o episódio. O bracinho embalsamado repousa hoje no nicho que lhe convém, no segundo andar do casarão Brechen, no interior de meu romance Os ossos da noiva.
Ao relembrar, compadre Assis, aquela viagem, fiquei meio sestroso: o gaudério da madrugada, agarrado ao 38, não te pareceu estranho? Aquele rosto macilento, esbranquiçado e enfermiço, era efeito só da luz da lua? Luiz Antonio, tu que estavas sentado no lado esquerdo do táxi, ali a um passo, ou a um braço, do vivente — viste ou não viste o reflexo do maneta no espelho do retrovisor?
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Charles, não tinha sido o Assis o vencedor no jogo do palitinho?
ResponderExcluirAlém de amigos e compadres e agora jogadores de palitos por uma história. Seres humanos úteis para a literatura.
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