segunda-feira, 5 de abril de 2010

Um bom porto, um bom fim

Uma cidade, um bairro, uma rua, um desvão de escada não são feitos apenas de cimento e vidro, praças e casas, árvores e asfalto, degraus e quinquilharias, mas também, e principalmente, de lembranças, desejos e ilusões. As coisas vivem num deplorável estado de coisas. Somos nós que lhes damos a alegria do sentido. Uma cidade, um bairro, uma rua, um desvão de escada podem alcançar, pelo nosso olhar, pelo nosso sentir, a transcendência que têm um figo maduro, um colibri assustado, uma criança ferida. E as coisas  transcendidas podem nos ajudar a viver com mais serenidade, com maior ternura e humanidade.

Vivo na fronteira dos bairros Independência e Bom Fim, mas a minha tendência, em tudo, e sempre, é descer a lomba, pela Miguel Tostes ou outra rua qualquer. De manhã, ministro oficinas na Livraria Palavraria, na Vasco da Gama. Marta e Sofia são assíduas freqüentadoras da Espaço Vídeo, e eu me abasteço de pão camponês e de croissants nesse cantinho de Paris que é Bolangerie Carina Barlett. Apaixonado por frutas, percorro o bairro atrás de cajus, araticuns, romãs, carambolas e outros exotismos da flora nordestina, amazônica e chilena.

Quando cheguei aqui em Porto Alegre, em 1982, não tinha dinheiro para alugar um apartamento num bairro de classe média, mas fui generosamente convidado a morar com o professor Mario Arnaud Sampaio e sua esposa, Zelia Dendena, na Felipe Camarão. Lá fiquei por dois meses, “fazendo caixa”. Ia ao trabalho, na Editora Mercado Aberto, na zona norte, a pé, todos os dias de madrugada, para economizar com passagens.

Um dia, diante de meu ar deprimido, Roque Jacoby, meu empregador, perguntou-me à queima-roupa:

– O que tu tens, guri?

– Saudade – eu respondi.

E assim, auxiliado por ele – que além de me dar um bom empréstimo, que paguei em muitas parcelas, sem juros, e servir-me de fiador –, aluguei um apartamento na Avenida São Pedro com Bahia. Eu trouxe a família de Três de Maio e comecei a minha vida profissional na “mui valerosa” capital. “Valerosos” foram Sampaio e Jacoby, que me estenderam a mão. Sem eles, meu fim seria o retorno à terra natal, ou a partida em busca de outra terra.

Nunca esqueci as ladeiras do Bom Fim, as velhas árvores, o ar de bairro europeu. Marta, que me deu Sofia, conseguiu um apartamento na fronteira do bairro e nos mudamos para cá, há oito anos. Ela, que não se permite raízes, quer partir; eu quero ficar. Camponeses são poços. É mais fácil transferir um bairro que um poço. No que me cabe, o Bom Fim é uma terra amigável onde claudicar os passos, um lugar tranqüilo onde descansar os ossos. Só me arranca daqui o Caronte, com sua barca inevitável.

3 comentários:

  1. Nossa, quanta poesia! Hoje vou ler O escorpião da sexta-feira. E, só vou dormir, quando acabá-lo!

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  2. "Triste, embora excitado intimamente, procurei lembrar-me do último acontecimento dessa natureza. Fora um concerto; executavam música antiga e excelente, e então, entre dois compassos do piano, abriu-se para mim a porta do além, atravessei o céu e vi Deus em seu trabalho, sofri dores bem-aventuradas, deixei tombar minhas defesas e passei a não temer mais nada no mundo, a assentir a tudo e a tudo entreguei meu coração. Não durou
    muito, talvez um quarto de hora; mas, de novo, me voltou aquela sensação em sonhos, e desde então, através dos dias tristes, consigo captar um reflexo dela de quando em vez, ora claramente, por um instante, como dourada mancha divina caminhando através de minha vida, quase sempre impregnada de pó e de lodo, ora voltando a brilhar de súbito com raios de ouro, dando-me a impressão de que jamais a perderia, para logo ocultar-se de repente."

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  3. Caro Charles,
    confesso que não me lembrava mais deste fato.
    Vai ver que servi de fiador para que tu chegasses mais cedo ao trabalho.....
    É brincadeirinha...
    Sempre foste cumpridor de horários.
    Saudoso abraço.

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