quarta-feira, 13 de maio de 2009

Reynaldo Moura: um rosto à sombra

Um pouco de história

Reynaldo Moura nasceu em Santa Maria, a 22 de maio de 1900. Viveu naquela cidade entre as montanhas até os oito anos de idade, num clima de tranqüilidade e paz, cercado de carinho e atenção, envolvido com jogos e brincadeiras infantis, na afirmação de Maria Luiza Ritzel Remédios, que o estudou e sobre o qual escreveu uma biografia.

Se tem razão o crítico francês Jean-Paul Weber, ao afirmar que o “tema é uma experiência infantil que marca para sempre a mentalidade do artista e se manifesta simbolicamente nas suas obras”, seria de se indagar em que momento da primeira infância do autor ocorreram experiências tão significativas que o levariam a mergulhar em problemas ontológicos de tal envergadura como os encontrados em suas obras? Não teria sido certamente a paisagem bucólica e provinciana da Santa Maria da Boca do Monte do início do século que inspiraria o autor na construção de personagens doentios e acossados por demônios interiores. Ou teria sido o menino Reynaldo um desses seres introvertidos e sorumbáticos, precoce e estranhamente amadurecidos do ponto de vista psicológico, um desses seres sensitivos, neurastênicos, em grande luta íntima?

De Santa Maria, a família Moura transferiu-se para São Borja, na fronteira, e depois, para Porto Alegre. Será na capital que, aos quinze anos, Reynaldo escreverá seus primeiros versos, escritos a giz, como ele mesmo o afirmou em artigo na Revista do Globo. Depois de cursar o segundo grau no colégio Júlio de Castilhos, ingressou na faculdade de Química, logo trocada pelas de Medicina, Direito e Engenharia Mecânica. Seu espírito inquieto levou-o a desistir de todos os cursos superiores e a dedicar-se à literatura e à poesia. Em 1926, casou-se com Noah Viterbo de Carvalho, com quem teve dois filhos, Sérgio e Roberto. Iniciou então intensa atividade jornalística, colaborando com os principais jornais e revistas das décadas de 20 e 30. O escritor foi, inclusive, um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa.

Em 1935, Reynaldo Moura viu seu primeiro romance, A ronda dos anjos sensuais, ser publicado pela Editora Globo, à época uma das mais importantes casas editorias do Brasil. No ano seguinte, foi a vez do livro de poesias Outono ser editado. Em 1939, veio à luz o romance Noite de chuva em setembro; em 1940, lançou L’après midi d’un faune pela Editora Lanterna Mágica, de Porto Alegre. Enquanto isso, poesias esparsas eram publicadas em jornais e revistas do Estado e do país. 1944 foi um ano de grandes edições na vida de Reynaldo Moura. A José Olympio, então a maior editora do Brasil, publicou no Rio de Janeiro, a sua novela Intervalo passional e a Editora Globo apresentou aos leitores seu livro de poemas Mar do tempo. Em 1945, ano do lançamento da revista Província de São Pedro, tornou-se seu colaborador regular. A novela Um rosto noturno, sobre a qual falaremos mais a diante, saiu pela Editora Globo em 1946. No ano seguinte, Reynaldo publicou um interessante e premonitório ensaio sobre Clarice Lispector chamado “O lustre”, na revista Província de São Pedro. Em 1948, Guilherme de Figueiredo transformou em filme a novela Um rosto noturno. Em 1954, a Globo lançou um novo romance de Reynaldo Moura: O poder da carne. Quatro anos depois, veio a público aquele que seria considerado pela crítica o seu melhor livro: Romance no Rio Grande. A novela A estranha visita foi publicada pela Globo em 1962. Entre 22 de julho e 6 de novembro de 1963, o jornal Última Hora publicou o folhetim Major Cantalício, que o autor jamais editaria em forma de livro. Em 1964, Reynaldo Moura foi preso, apesar de não pertencer a nenhum partido político. Acusação: defender ideais socialistas. Ficou apenas dois dias na prisão, tendo sido libertado por gestões dos amigos Erico Verissimo, Maurício Rosenblat e Alberto André. A humilhação imposta levou-o a sofrer um infarto, do qual jamais se recuperou. Um ano depois, faleceu em Porto Alegre, deixando uma novela inédita: O crime no apartamento.

A vingança da Esfinge

O simbolismo, enquanto “movimento literário mais ou menos organizado e ativo”, no dizer de Massaud Moisés, tem seu fim no início do século XIX. Cumpre, no entanto, observar que a sua influência se propaga ao longo das décadas seguintes. Meio século após seu esgotamento enquanto escola literária, o simbolismo influenciou profundamente o autor gaúcho, marcando sua obra com o selo do Enigma, transformando sua prosa numa densa floresta de símbolos e mistérios que somente aos poucos se pode ir desvendando.

A intensa atividade literária rio-grandense na década de 30, do século passado, produzida pelo fervor ideológico revolucionário e pela existência de uma casa editorial do porte da Globo na província, tinha, basicamente, duas grandes correntes. Uma, a do romance rural e da problemática social do gaúcho da campanha, desencadeada por Cyro Martins, mas que dava prosseguimento ao projeto de Simões Lopes Neto e de outros autores, chamados, o mais das vezes de forma apressada e irresponsável, de regionalistas; e a outra, a do romance urbano e dos conflitos da modernidade emergente, da qual são exemplares Dyonélio Machado e Erico Verissimo. Tanto uma como a outra são de matriz real-naturalista e de forma inequívoca dão continuidade ao projeto estético de marcado cunho social que vinha do século anterior, com Machado de Assis e Raul Pompéia, passando por Lima Barreto e pelos tantos autores do que veio a se chamar de romancistas de 30. No entanto, quase que anacronicamente, um autor se desviou desse projeto e foi beber em fontes simbolistas. Reynaldo Moura, esse autor, produziu poesia simbolista de alto valor estético e arriscou fazer também romances simbolistas, fato por si só difícil, dado que o gênero tem por tendência natural a descrição dos movimentos sociais e de suas contradições históricas. Ao romance de extração real-naturalista se pede que conte uma história o mais linear e compreensiva possível, mas Reynaldo Moura ousou fazer do símbolo o elemento central de sua obra em prosa, dificultando-lhe a apreensão. Pagou um alto preço por isso — foi quase esquecido e taxado de autor hermético.

O romance simbolista

O esgotamento da estética realista, o acerbamento da objetividade, que na afirmação de Machado de Assis levaria a literatura a “nos dizer o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”, levou a um movimento de ruptura, capitaneado na França pelo poeta Charles Baudelaire e denominado, no princípio, de decadentismo.

No Brasil, o simbolismo se inicia com Cruz e Souza, em 1893, no gênero poético. No romance, no entanto, a escola francesa deixaria sua marca em autores como Rodrigo Otávio, que publicaria um romance simbolista em 1889, Alfredo de Sarandi Raposo e José Henrique de Santa Rita. Mas esses são autores menores, de ficção decadentista e indefinida, em que se misturam o poema em prosa, o salmo, o ensaio filosófico. Somente com Gonzaga Duque e Nestor Vítor o gênero tomará corpo na prosa. Mocidade morta, de Gonzaga Duque é o primeiro exemplar digno de nota e data de 1899. Reynaldo Moura publicará seu Um rosto noturno somente em 1946, quase meio século depois.

Um rosto noturno: um romance simbolista

Fazendo jus à tradição do romance simbolista, que teve seu início na França com A rebours, de J. K. Huysmans, Um rosto noturno possui um enredo frouxo e vago, quase indefinido. Um homem, Ulisses, está trancado numa casa e narra fatos desconexos, envolvendo Nora, Simone, Alex, Arlete, alguns médicos e outros personagens secundários. Pouco, quase nada, sabemos da história desses personagens, pois o narrador não lhes descreve as vidas, mas deleita-se com terrores noturnos, vaguidades, sonambulismos e nevroses. Do local em que se encontra, seguidamente aproximam-se misteriosos passos, aumentando-lhe o terror. Aos poucos, com muita dificuldade de leitura, vamos desvendando os mistérios que o cercam. Há, na casa, alguém desfigurado. É um homem que somente pode manter relações com a esposa no escuro, pois a náusea de vê-la sob a luz destruiria qualquer momento de sensualidade e paixão. Um adultério envolve este personagem central. Há uma irmã e um cunhado ensandecido. O mais são impressões, tentativas de apreender a loucura, o mistério, o inconsciente, o inferno. Mas a linguagem, impura e demais e social demais, parece incapaz de chegar à verdade, de decifrar o enigma. Vejamos alguns casos dessa incapacidade: “Porque eu não sentia antes como agora, depois que tive a revelação? Não me explico claramente” (p.12); “Naturalmente eu nunca vi coisa nenhuma” (p.17); “Coisa estranha: era como seu eu houvesse chegado de um outro mundo e não pudesse mias participar do sentido de tudo isso” (p.21).

Há centenas de exemplos dessa incapacidade do narrador em explicar o que se passa no seu interior e ao seu redor. Como ele escreve num estado quase de transe, pré-lógico, o máximo que consegue descrever são sugestões e evocações vagas. Trabalha com a musicalidade das palavras e carrega no léxico negativo para aumentar a sensação de angústia e terror do leitor. É impossível lê-lo sem um estremecimento, um estranhamento semelhante ao que sentimos ao ler Clarice Lispector.

Trabalhando com arquétipos, Reynaldo Moura desce às profundezas do inconsciente e extrai dele uma poderosa narrativa, que exige estudos mais demorados e aprofundados que este breve esboço que ensaiamos.

Uma das recorrências neste romance é a cor branca, verdadeira obsessão simbolista, resumo do ideal dessa estética. Ao longo do texto, as personagens vestem branco, as paredes são brancas e etc. O branco, nessa escola, simboliza o mistério, a espiritualidade, a pureza, o etéreo, o oculto.

Outra obsessiva recorrência temática do autor é a do desfiguramento. A destruição do rosto é uma constante não só neste romance como em todos os outros. A referência a um acidente de avião é também muito repetida. E o sobrevivente sempre aparece desfigurado. Em Reynaldo Moura, o homem e a mulher sem rosto podem ser lidos como a perda da identidade e a falta de sentido das relações sociais no mundo moderno.

É recorrente ainda a temática da casa, do espaço fechado. Os seres de Reynaldo Moura escondem-se, isolam-se e das janelas ficam a admirar as casuarianas, a ouvir os latidos dos cachorros a lembrar-lhes um mundo já perdido e inalcansável, a sentir os cheiros da tarde em evocações pueris mas profundamente humanas, saudosos de um tempo já desaparecido e irrecuperável. Praticamente todas as suas narrativas se passam em interiores. O espaço exterior é mera referência, acidente fortuito e irrelevante.

A loucura é outra constante temática. Se nem todos os personagens de Moura são loucos, é certo dizer que todos são neuróticos e navegam a velas pandas rumo à insanidade.

A família como espaço de neurotização é outra temática recorrente. Não há casais felizes em Reynaldo Moura. Até os amores clandestinos, no momento em que compõem um espaço quase-familiar, estão fadados ao fracasso e a fragmentação neurótica.

A noite é uma das vertentes temáticas de maior importância em Reynaldo Moura. O espaço para o dia claro não encontra recepção em sua prosa. Interessam-lhe os terrores noturnos, os sonambulismos, os misteriosos desvãos dos interiores penumbrosos. Enfim, a noite sobreleva-se na obra do autor e pode ser lida, simbolicamente, como a floresta do inconsciente, que esconde o homem-fera, o duplo, os fantasmas, os demônios. Neste espaço noturno, a linguagem perde função. Os personagens tentam organizar o mistério, apreendê-lo, mas as palavras são impotentes. Por isso, abundam nas páginas de Um rosto noturno e outros romances do autor, as reticências, as orações inconclusas, as alusões sem nexo.

Reynaldo Moura é um rosto à sombra na literatura gaúcha. Urge trazê-lo à luz, pois não fica nada a dever aos melhores representantes da prosa do sul, como Simões Lopes Neto, Cyro Martins, Dyonélio Machado e Erico Verissimo. Pagou um alto preço pelas suas obsessões, por recusar a estética real-naturalista de que é composta a literatura de nosso estado. Mas não foi isto que também fizeram Fiedor Dostoievsky, Ernesto Sábato, Roberto Arlt e Willian Faulkner?

Um comentário:

  1. Não entendo nada de psicologia porém, acredito piamente no que diz o crítico francês citado sobre a experência infantil que marca o artista e que se manifesta nas suas obras. Sempre penso que quando o escritor trabalha com terrores noturnos, construções de personagens medrosas, vulnerabilidade a poderes não explicados, não palpáveis ou, ainda, considera a escuridão como o inferno... Toda essa angústia é resultado da severidade, da infelicidade, da falta de um elo mais profundo ou verdadeiro na primeira infância. Acho uma máxima..." a família como espaço de neurotização..." E, com isso, dá até pra desejar (?) que surjam mais crianças infelizes para que novos autores maravilhosos como o Reynaldo Moura, apresentado aqui pelo Charles, apareçam... Belo estudo, professor, e vamos que vamos, tentando sorver um pouquinho desta tua fonte...sem deixar de esquecer de agradecer, né...

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