A QUESTÃO DA VERDADE
EM LITERATURA
Ficção e Realidade
Ao analisar as relações que se estabelecem entre ficção e realidade,
Tzvetan Todorov recorda inicialmente uma afirmação de Paul Valéry, que se
poderia chamar de a questão do efeito de
verdade. Para o poeta francês, quando contemplamos um retrato de personagem
antigo, inclinamo-nos a tomá-lo por verdadeiro,
ainda que não se tenha nenhum meio de comprovação de sua veracidade. O mesmo se
estenderia aos livros, já que os leitores não dispõem de mecanismos para
distinguir entre livros de “testemunhos verdadeiros” dos de “testemunhos
imaginários”. Estabelecer se os autores são inventores
ou repórteres ficaria a critério do
leitor. Todorov, brilhantemente, desnuda o que a proposição de Valéry esconde:
o problema não está em declarar se estes ou aqueles são mais ou menos
verdadeiros, mas em perceber o efeito de
verdade, a verossimilhança, o efeito de realidade que cada texto
instaura.
No entanto, Valéry pensava nos
efeitos sobre o leitor e não na veracidade ou não da história. Alguns, ignorando
esse detalhe, tomam a árvore pela floresta: acreditam que não existam fatos mas
somente interpretações dos mesmos. Idéia, que tem origem em Nietzsche, e que
propõe uma perigosa generalização: além de inexistirem fatos, existem somente discursos sobre fatos. Conseqüentemente,
não há verdade do mundo, mas somente interpretação do mundo.
Todorov lembra que não há nenhuma
novidade na querela. Platão já provara que nos tribunais a eloqüência – e a
conseqüente adesão dos juízes ao orador – era mais importante do que a verdade.
Platão apenas opõe-se aos autores modernos, no sentido de recusar-se ao elogio
do poeta e de seus “testemunhos imaginários”.
Além dessa primeira interpretação a
respeito das relações entre ficção e história, o mundo moderno conhece outra: a
de dizer que a ficção é mais verdadeira que a história. O que Todorov considera
uma inversão de hierarquia e uma
radicalização.
Como exemplos dessa inversão,
Todorov cita Marc Augé, que elogia uma obra de etnologia francesa, por ser “tão
patente de verdade como um romance de Balzac”. Augé, retomando as idéias de
Aristóteles, elogia a verdade do
romancista, que “não tem a superstição da palavra verdadeira”, e que assim
pode ascender a uma verdade superior, acima e além dos meros detalhes
históricos. Com ironia, Todorov recomenda que historiadores e etnólogos
ingressem, pois, na carreira de romancistas.
Prosseguindo em sua exposição da inversão de hierarquia, Todorov traz o
exemplo de Stendhal, para quem o romance era um meio mais filosófico que a
história, mais concreto que a filosofia. Também para Stendhal, a questão não
era de eloqüência ou de eficácia, mas de verdade. O que remete novamente à
Aristóteles, para quem a poesia é mais nobre e mais filosófica que a história.
Mas não mais verdadeira, acrescenta
Todorov.
Depois de expor as duas teorias:
1) os fatos não existem, não passam
de interpretações;
2) os fatos existem, mas são menos
importantes que as suas interpretações;
Todorov propõe que
desçamos do admirável mundo das idéias
e mergulhemos na “humilde realidade da vida cotidiana”. Indaga-nos ele se,
sentados num banco de réus por um crime não cometido, aceitaríamos como
princípio apriorístico que ficção e verdade sejam equivalentes ou que a ficção
seja mais verdadeira que a história? Diante de alguém que negasse o genocídio
nazista, aceitaríamos que o debate não tem sentido, já que tudo não passa de
interpretações? Ou alguém que, como ele, lesse nas paredes de um edifício “Os
imigrantes são ocupantes nazistas sem uniforme”, se contentaria em analisar a
estrutura da metáfora ou em emitir um juízo moral sobre os valores sugeridos
pelo tema? Alguém, diante disso, não procuraria saber se a afirmação é
verdadeira ou falsa? Como lidaríamos com o paradoxo de aceitar a distinção
entre ficção e realidade na vida prática e negá-la na teoria?
E como fica o estatuto da verdade ficcional? Estavam enganados os
autores do passado que acreditavam que a poesia pudesse dizer a verdade?
Estávamos enganados ao sentir a verdade
humana dos versos de Baudelaire e dos romances de Balzac? Vamos perseguir os
poetas, já que não dizem a verdade?
indaga-se Todorov.
O problema todo está na noção de
verdade. Não se pode confundir a verdade-adequação com a verdade-revelação. A primeira é tudo ou nada, ou algo é
verdadeiro ou é falso. Já quanto a segunda, a questão é de graduação: algo é
mais ou menos verdadeiro, mais ou menos falso. João matou Pedro é algo verdadeiro ou falso, independentemente das
circunstâncias atenuantes. O mesmo quanto ao fato de se saber se os judeus saíram dos fornos de Auschwitz em
forma de fumaça ou não. No entanto, se a questão remontar às causas do nazismo, as respostas somente
podem conter mais ou menos verdade, pois se propõem a revelar a natureza do fenômeno e não em estabelecer fatos. Para
Todorov, o romancista aspira a essa segunda categoria de verdade e não tem
nenhuma lição a dar ao historiador quanto a primeira.
A distinção das categorias de verdade não resolve completamente o problema das
relações entre ficção e história, pois nenhum historiador se atém
exclusivamente aos fatos nem pode
contentar-se com eles. Fatos são fatos, mas não são convincentes por si sós. O
que obriga o historiador a tentar a interpretação, deslizando inevitavelmente
para a segunda categoria, a da verdade-revelação. Um único termo, verdade, para tratar de coisas
distintas, não é o gerador das confusões? Ao dizer que Balzac é mais verdadeiro
que os historiadores não estamos colocando em jogo critérios distintos da outra verdade, distintos e
necessariamente superiores? Critérios, afinal de contas, meramente morais. Se a
verdade se submete à moral (ao
juízo), se não há mais do que verdades
pragmáticas, que tribunal julgará o que é mais verdadeiro ou mais
filosófico que a verdade? O filósofo-rei? A maioria dos cidadãos? Onde isso vai
dar, todos sabemos...
Na segunda parte de seu ensaio,
Todorov conta duas histórias, com a intenção de comprovar suas conclusões e de
matizá-las. Procuremos sintetizá-las.
Em 1704, aparece em Londres uma obra sobre a
ilha de Formosa. Nela se narra como os japoneses invadiram a ilha e como os
formosenses sacrificavam 18 mil meninos menores de 9 anos por ano. Descreve os
sacerdotes, o povo, o ritual, enfim.
O segundo tema do mesmo livro, narra
a história de George Psalmanazar, nativo de Formosa, onde viveu até os dezenove
anos, educado por um preceptor europeu. Um dia, o preceptor volta à Europa
levando o jovem consigo. Lá, Psalmanazar descobre que se encontra em meio a
jesuítas e que seu educador é um deles. Exigem sua conversão, ameaçam-no com a
Inquisição, mas o rapaz foge. Nos Países Baixos, encontra-se com o exército
inglês e acaba conhecendo um capelão escocês anglicano. Depois, vai a Londres,
onde é recebido pelo bispo, que lhe dá proteção. Sob a tutela do bispo,
Psalmanazar escreve seu livro.
O livro vira um sucesso e
Psalmanazar se torna famoso e requisitado pela sociedade inglesa. A própria
Royal Society o convida a uma reunião ordinária, no dia 2 de fevereiro de 1704.
Cientistas expõem casos interessantes e chega enfim a vez de Psalmanazar falar.
Os cientistas desejam indagar-lhe algumas coisas. O doutor Halley, descobridor
do famoso cometa, pergunta-lhe, maldosamente, qual era a duração do crepúsculo em Formosa. Diante da
resposta errada, Halley declara-o impostor. O jesuíta Jean de Fontanay, que
conhecia a China, afirma que Formosa não pertencia ao Japão. Além disso, o
religioso nunca ouviu falar que lá se fizessem sacrifícios humanos, e sequer
consegue compreender a língua formosense
utilizada por Psalmanazar.
Arma-se um grande qüiproquó.
Psalmanazar escreve um prólogo, defendendo-se; apresentam-se outros viajantes,
descrevendo outras inverdades sobre Formosa. Objetado sobre a impossibilidade
da ilha de repovoar-se com o sacrifício anual de 18 mil meninos, ele explica
que por isso mesmo a poligamia era permitida lá. As considerações de
verossimilhança não detém a verdade. Suprimisse ou modificasse o seu relato
como quisesse e mesmo assim Psalmanazar não poderia afirmar com certeza se era
originário da ilha ou não e se seu relato era ou não verdadeiro.
utrOuOOutro argumento é perguntar: “De que ângulo se
conta?” ou “Qual o interesse de quem conta?” Assim, na Inglaterra, os
livre-pensadores acataram a posição de Halley porque ele era um livre-pensador. Os que eram contra o cientista,
acataram a versão de Psalmanazar. Os jornais se apoderaram da questão, também
divididos. Psalmanazar foi colocado à prova: chegou a comer pedaços de carne
humana. Mas ao invés de convencer,
produziu horror e mais dúvidas. O conjunto dos desconfiados é já maior
do que o dos crédulos.
Passam-se muitos anos e se começa a
esquecer Psalmanazar e suas aventuras. Idoso, vivendo modestamente, tornando-se
cada vez mais religioso, a história de sua juventude começa a pesar-lhe na
consciência. Em 1747 (aos sessenta e oito anos), escreve um artigo anônimo
sobre Formosa para uma enciclopédia geográfica. Afirma nele que Psalmanazar o
havia autorizado a revelar que seu relato fora, em sua maior parte, fictício.
Todorov observa que o reconhecimento da
ficção exige nova ficção, a da diferença entre Psalmanazar e o autor do
artigo. Depois, Psalmanazar escreve suas Memórias,
terminadas em 1758 e publicadas em 1764, um ano depois de sua morte. Os
historiadores posteriores também acrescentaram alguns detalhes sobre o caso.
Nas Memórias, Psalmanazar conta muitas coisas e esconde outras (apesar
da religiosidade crescente). Como ele não disse seu verdadeiro nome nem onde
nasceu, alguns o consideram gascão (porque os gascões eram tidos por
mentirosos), outros judeu (por que era um homem andarilho?). Não parece japonês
e fala qualquer língua. Seu primeiro livro fora escrito em latim. A verdade histórica parece ser a seguinte:
Vive com sua mãe, na juventude, no sul da França e estuda num colégio jesuíta.
Um dia, sua mãe o manda a casa de seu pai, que mora na Alemanha. O pai não quer
nada com o rapaz e ele vai para a Holanda. No caminho, encontra uns religiosos
e se faz passar por japonês convertido ao cristianismo. Acha divertida a
história e inventa uma gramática, um calendário e uma religião. Adota o nome
Psalmanazar a partir da Bíblia, de Salmanazar.
Ao chegar à Holanda, nova aventura:
apresenta-se como pagão e adorador da lua, mas que se converteria se
conseguisse proteção. Então encontra o capelão, que percebe tudo, mas que
resolve tirar proveito da situação. O capelão escreve ao bispo e batiza
Psalmanazar. Resultado: o capelão sobe de posto e o bispo traz Psalmanazar para
Londres. Resta ao jovem escrever o livro, para confirmar suas afirmações.
Recorda-se então do jesuíta Alejandro de Rodas, que vivera em Macau e tivera um
auxiliar chinês, que depois virou jesuíta também. Da história de Alejandro,
Psalmanazar retira muitos elementos, inclusive o nome para o seu preceptor. O mais são recordações de
outros livros.
Hoje se sabe com certeza que a Descrição da ilha de Formosa é uma
grande fraude, que Psalmanazar nunca esteve na China e que não se chamava
Psalmanazar.
Diante disso, Todorov indaga se as
descrições dos sistemas fonológicos, dos ritos observados e relatados por
etnólogos podem ser situados com tanta segurança ao lado da linha que separa os
testemunhos verdadeiros dos testemunhos imaginários.
Ironicamente, Todorov sugere que os
leitores procurem na Biblioteca Nacional a história de Psalmanazar, pois ele
próprio pode ter inventado tudo isso, a exemplo do que Borges fazia.
Todorov conclui afirmando que a
descrição de Formosa nem possui verdade-de-adequação
nem verdade-de-revelação. Mas, como
ela não se apresenta como ficção, mas como verdade, não é ficção mas mentira e
impostura. O que fizeram Halley e Jean de Fontenay não foi um interpretação, um
discurso, para confrontar a interpretação e o discurso de Psalmanazar. Eles
apenas dizem a verdade onde o outro mente. Para conhecer Formosa, afirma
Todorov, é preciso fazer a distinção entre as duas coisas.
Como escrito histórico, a Descrição é uma falsificação. Como
ficção, não extrai admiração porque não se apresenta como tal e porque seu
autor não é extraordinariamente eloqüente. Mas, pergunta Todorov, e se fosse?
* * *
Cristóvão
Colombo descobriu a América. Eis uma frase que todo menino conhece. No
entanto, está cheia de ficções, afirma Todorov, ao passar a relatar a segunda
história. A frase é eurocêntrica. Abandonada essa perspectiva, seria preciso
dizer que a América foi invadida. Além disso, Colombo não foi o primeiro a
atravessar o Atlântico. Mas o paradoxo sobre o qual Todorov irá se debruçar é o
fato da América chamar-se assim, e não Colômbia. Para isso, há uma resposta
histórica simples: em 1507 foi publicado um tratado geográfico, Cosmographie Introductio, em que se
julga que os méritos de Américo Vespúcio teriam sido maiores que os de Colombo
e portanto o continente merecia ter seu nome. Espanha e Portugal não aceitaram
tão facilmente a proposta e continuaram chamando as novas terras de Índias
Ocidentais até o século XVIII. A verdadeira questão, no entanto, é: Por que os
letrados de Saint-Dié, responsáveis pela cosmografia citada, julgaram a
contribuição de Américo mais importante?
Por que Américo foi o primeiro a
tocar terra firme? A prova dessa façanha de 1497 é uma carta. E embora a carta
seja verdadeira, Américo não foi o comandante da expedição e o mérito seria
dele, como normalmente acontece. Além disso, não fora ele o primeiro a alcançar
o continente. Juan Cabot (Giovanni Caboto) antecipou-se a ele. Por outro lado,
devemos pensar no que os navegantes acreditavam
ter feito e não no que fizeram. Imaginavam estar nas Índias. E por último, para
Todorov, não é a anterioridade da viagem o que determina a homenagem do nome do
continente.
Outra resposta se impõem: Américo
fez o descobrimento intelectual do
continente. As suas cartas de 1503 e 1506 afirmam e confirmam a consciência de
ter encontrado um novo continente. O essencial é que compreendeu. Isto poderia ter feito teoricamente em casa, sem
viajar.
Mas no plano intelectual do descobrimento, Américo foi antecipado por Pierre
Martyr d’Anghiera, que sem sair de casa, dirigia cartas abertas onde resumia as
notícias das viagens, já em 1493. Para ele, Colombo “descobriu essa terra
desconhecida” e “encontrou todos os indícios de um continente até então
ignorado”. Um ano depois, em carta a Borromeu, emprega até a expressão novo mundo.
As cartas de Pierre Martyr não são privadas, são a fonte de informações dos
europeus de então sobre as viagens extraordinárias.
O próprio Colombo, no plano
intelectual, também antecipou-se a Américo. Na Relación aos reis de Espanha, em 1497, manifesta a certeza de ter
pisado terra firme no Hemisfério Sul e não do Norte.
Pergunta-se, então: o que levou os
letrados de Saint-Dié a dar toda a honra a Américo, mesmo sabendo das
informações de Colombo e Pierre Martyr? Simplesmente
porque ele escrevia melhor. Foi a qualidade literária das quarenta pequenas
páginas das cartas que lhe deu a glória.
Para determinar a qualidade, Todorov
passa a comparar uma carta de Colombo a outra de Américo. Primeiro, o crítico
analisa a composição geral. A carta de Colombo não apresenta nenhum plano bem
ajustado. Descreve a viagem, a natureza das ilhas, descreve seus habitantes.
Depois, fala da geografia, acrescentando novas notas sobre os índios. Então passa ao capítulo dos
monstros e conclui, afirmando que as terras são riquíssimas e agradece a Deus
pelos descobrimentos que fez.
A carta de Américo, em contraste,
revela alguém com formação retórica. Começa e termina com vários parágrafos que
resumem o essencial. E é ali que se encontra a afirmação comovedora da novidade
desse novo mundo. No interior desse marco, o texto se divide em dois: a
primeira parte faz a descrição da viagem (com uma digressão auto-elogiativa) e
a segunda descreve novos países, com três sub-tópicos anunciados já no final da
primeira parte, concernente aos homens, à terra e ao céu. A carta de Américo
tem uma forma quase geométrica, ausente em Colombo.
Enquanto que as cartas de Colombo
são utilitárias, dirigidas aos reis de Espanha, as de Américo são escritas para
“perpetuar a glória de meu nome”, “para a honra de minha velhice”. Suas cartas
pretendem encantar e distrair seus amigos.
O primeiro faz documentos; o segundo, literatura.
O narrador de Américo atrai a
atenção do leitor com elogios, com sutilezas, com antecipações narrativas. Além
disso, ele produz deliberadamente uma distância entre o narrador que é e o
personagem que foi, convidando o leitor a introduzir-se exatamente nesse espaço
criado. Quando vai justificar-se, recorre à experiência do próprio leitor.
Colombo produz sempre a mesma imagem: a dele mesmo.
Também na escolha de temas, Américo
se preocupa com o leitor. Os fatos observados tanto por ele quanto por Colombo
não são diferentes. Diferente é a forma de apresentá-los. Américo cria a imagem
do bom selvagem, associando a nudez, a ausência de religião e indiferença pela
propriedade às representações antigas da Idade de Ouro. Para Colombo, os índios
são desnudos, sem religião e, às vezes, canibais. Somente isso. Antes de
opinar, ou julgar, por exemplo, o canibalismo dos índios, Américo proporciona
ao leitor detalhes picarescos e encanta.
Por último, acrescenta Todorov,
Américo elabora mais detidamente a questão da sexualidade. Enquanto Colombo se
limitava a dizer que os homens (índios) se contentavam com uma única mulher,
Américo enfeita e inventa, açulando a curiosidade e a lubricidade do homem
europeu.
O texto de Américo agrada o conjunto
dos leitores (europeu comum) e os sábios do tempo, com citações de autores
antigos e modernos, Plínio, Dante, Petrarca. Américo afirma ser o único no
barco a saber ler as estrelas e utilizar o quadrante e o astrolábio. Como os sábios de Saint-Dié não se comoveriam
com a superioridade dos intelectuais-teóricos sobre os marinheiros-práticos?
Como recompensa, ofereceram-lhe um continente. Não é por acaso que as imagens
das gravuras da época apresentam-nos um Américo sábio.
Por fim, Todorov lembra que Américo
apresentava a seus leitores um mundo referencial, conhecido, com poetas
italianos, filósofos da Antiguidade e pouquíssimas referências cristãs. Colombo
só apresenta imagens dos textos cristãos e das viagens de Marco Polo. Colombo é
um homem da Idade Média; Américo, da Renascença. O mundo de Colombo é povoado
de monstros, o de Américo de homens. Um é anacrônico, o outro é moderno.
As mesmas qualidades literárias de
Américo aparecem em outro texto, no Quatuor
Navigationes, analisado por Todorov também.
A partir dessa análise literária das
cartas de Colombo e de Américo, Todorov compreende porque este teve um
extraordinário êxito, não só em edições mas também na homenagem de
Saint-Dié. A fértil descrição fez com
que as cartas de Américo fossem as mais ilustradas da época. Assim, as
primeiras imagens que procurar captar a especificidade americana são as que
ilustram os relatos de Américo Vespúcio.
Para Todorov, foi isso que levou os
sábios de Saint-Dié a escolhê-lo como nome do continente. Mesmo que
inconscientemente.
Mas permanece uma questão: a justiça
estética se apoia ou não na justiça histórica? O papel de Américo corresponde
ao papel que ele criou para o personagem Américo? Afinal, o nome do continente
glorifica a ficção ou a realidade? Todos os argumentos a favor de Américo
poderiam aplicar-se a um texto completamente falso, como o de Psalmanazar.
O que nos leva ao problema da
autenticidade das cartas. Quem é o verdadeiro autor delas? Essas cartas contam
a verdade? As cartas podem ser verdadeiras,
escritas por Américo, e, no entanto,
podem ser pura ficção. Mas também podem ser falsas,
atribuídas indevidamente a Américo, mas não obstante dizerem a verdade sobre o
continente.
Mundus
novus e Quatuor navigationes
foram as únicas cartas publicadas em vida pelo autor. Depois da sua morte,
outras apareceram. Duas são muito interessantes, pois se referem às viagens à
América, uma de 18 de julho de 1500 e a outra de 1502. A primeira foi publicada
em 1745 e a outra em 1789. Até recentemente, eram consideradas apócrifas. As
outras, publicadas em vida, autênticas. Uma das razões para justificar esta
decisão era uma diferença de estilo entre as cartas publicadas e as cartas
manuscritas. Outra se baseava nas contradições internas das segundas, ou nas
inverosimilhanças.
Em 1626, Alberto Magnaghi deu uma
reviravolta na questão. Para este especialista, são autênticas as cartas
manuscritas e falsas as publicadas. Além disso, Mundus Novus e Quatuor Navigationes
contém tantas contradições internas e inverosimilhanças quanto as cartas
manuscritas. Não é impossível imaginar que florentinos doutos, usando as cartas
verdadeiras de Américo, tivessem produzido os livros para agradar o público
leitor através de uma literatura divertida e instrutiva. É mais verosímil que
uma publicação seja falsificada do que uma carta manuscrita, destinada ao
esquecimento nos arquivos e encontrada somente duzentos e cinqüenta anos
depois! Para Magnaghi, seus autores seriam escritores profissionais, que
provavelmente nunca saíram de sua cidade.
Roberto Levillier combateu Magnaghi,
dizendo que todas as cartas atribuídas ao explorador são autênticas... A
questão do verdadeiro autor das cartas não interessa para Todorov, mas sim a veracidade
das cartas.
A verossimilhança ou não de detalhes
das cartas não resolvem o problema. Em Américo há exageros sobre longevidade e
gigantismo dos índios. No entanto, as cartas de Colombo, estas sim
incontestavelmente autênticas, contém até mais exageros que aquelas. Os
viajantes observam o mundo desconhecido, mas também projetam sobre ele seus
preconceitos e fantasmas. As contradições internas das cartas publicadas de
Américo podem ser atribuídas ao tradutor do latim, ou até mesmo aos copistas
(já que o texto original fora escrito em italiano, perdeu-se e não existe dele
nenhum manuscrito).
Todorov compara as duas cartas
publicadas e encontra contradições temporais, descritivas e numerais entre elas
próprias. Também entre Mundus novus
(1503) e a carta manuscrita de 1502 há problemas. Ambas são dirigidas a Lorenzo
de Medici. Têm conteúdos parecidos, e datas de redação muito próximas. Não
havia necessidade de uma segunda carta, ainda mais que Lorenzo havia falecido
no intervalo entre uma e outra. (Mas Américo podia não saber de sua morte.) Mas
repetem-se contradições internas.
A análise literária de Mundus novus não advoga em favor da
autenticidade. A descrição da natureza é convencional, poderia ter sido
descrita a partir de um gabinete de Florença. A parte cosmográfica é pobre e
sua função parece ser de indício: veja que sábio sou (e ao mesmo tempo: presumo
que tu, leitor, também sejas). A descrição dos índios não acrescenta nada ao
que Colombo dissera dez anos antes, embora esteticamente seja bem melhor. O
relato da viagem não apresenta nenhum feito memorável, nele não figura nenhum
nome próprio. Nada, em Mundus Novus, indica
tratar-se de um caso de verdade.
Tudo, inclusive a forma harmoniosa do conjunto, advoga em favor da ficção (da
qual Américo poderia ser o autor ou não).
Para Todorov, Quatuor Navigationes possui indícios de experiência real, mas seu
relato foi retocado. Não pode, portanto, ser tomado como pura verdade, não pode
ser tomado como documento digno de confiança. É uma obra feita tanto de mentira
quanto de verdade.
Ao longo dos séculos, a balança ora
pende para o lado de Américo Vespúcio, ora para o lado de Cristóvão Colombo. E
o que se pode concluir disso? Que a verdade e falsidade são indistinguíveis?
Vamos nos alegrar com o triunfo da ficção ou lamentar-nos?
Enfim, Todorov declara que sua
opinião decepcionaria as duas correntes. Para ele, as viagens de Américo
parecem incertas e sua descrição pouco digna de confiança. Contém elementos
verdadeiros, mas nunca saberemos quais são. Américo, para ele, está do lado da
ficção e não do lado da verdade. E o historiador deve preferir os testemunhos
verdadeiros. Mas, por outro lado, Tzevetan Todorov considera os escritos de
Américo incontestavelmente superiores aos de seus contemporâneos e sua insuficiente
verdade de adequação acaba compensada
por uma maior verdade de revelação.
Não apenas da realidade americana, mas também do imaginário europeu. Assim, seu
mérito é grande, mas não se encontra onde em geral tem sido procurado. Longe de
se lamentar por Américo não ter ido mais que um fabulador, Todorov se alegra ao
ver que metade da terra carrega o nome de um escritor, ao invés de carregar o
nome de um conquistador qualquer, um aventureiro ou um mercador de escravos. A
verdade dos poetas não é idêntica a dos historiadores, mas disso não se deduz
que os poetas sejam uns mentirosos e que devam ser expulsos da cidade, muito ao
contrário.
Não sabemos se Américo escreveu
mesmo as cartas e se são exatamente as cartas que podemos ler hoje em dia, mas
não cabe dúvidas de que seja ele o personagem-narrador e é como tal que deve
ser homenageado. Todorov finaliza dizendo que se ele lamenta alguma coisa, é
que Américo não tenha se contentado com esse papel de personagem metade
imaginário e que tenha desejado ser, ademais, um autor de todo real:
desprendida do livro, a fabulação se converte em mentira.