terça-feira, 20 de julho de 2010

O papel da crítica

No passado, no tempo em que literatura tinha importância, a crítica literária era fundamental na carreira de um escritor. Críticos eram capazes de destruir, socialmente falando, reputações literárias. Ser vergastado por um crítico era a destruição da ponte que conduzia à glória. Ser elogiado, a depender da importância do crítico, catapultava o escritor ao centro do sistema literário. Editores examinavam fortunas críticas em busca de autores para formar fundos de catálogo; leitores liam críticos para decidir se compravam ou não um novo livro; livreiros consultavam críticos para encorajar-se a colocar na vitrine os novos autores. E os próprios artistas liam os críticos com a intenção de evoluir, pois reconheciam neles autoridade para avaliar.

As transformações tecnológicas, sociais e políticas das últimas décadas jogaram a literatura para escanteio. Hoje, resta à velha dama o papel de relicário da língua, como disse José Hildebrando Dacanal em Era uma vez a literatura.

E a crítica literária? Refugiou-se na Universidade, transformada em tema de TCCs de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado (que são lidos somente pelos professores que compõem as bancas e pelos próprios candidatos à titulação).

Agora, em blogs, sites e revistas eletrônicas a crítica literária parece ressurgir.

Um exemplo disso é o Campeonato Gaúcho de Literatura

http://www.gauchaodeliteratura.com.br/

capitaneado pelo Rodrigo Rosp. Alguns, mais sensíveis, e talvez supondo que a vida literária se resuma a elogios baratos e prebendas fáceis, estão assustados com a virulência das resenhas já publicadas. O que acontece no “Gauchão de Literatua” é pouco, se comparado ao que acontecia na imprensa brasileira, quando ela ainda veiculava crítica literária. Leiam, por exemplo, o ensaio “A polêmica da Confederação dos Tamoios”, que incluí em A última trincheira. A dureza e a acidez de José de Alencar, em sua crítica à obra de Gonçalves de Magalhães, superam o Rafael Ban Jakobsen em sua análise do livro publicado por Marco de Curtis. O tempo mostrou que o livro de Magalhães, como afirmava Alencar, era pífio e frouxo, mal feito. Da literatura de nosso tempo, e da nossa província, o que restará? Do século 19, sabemos, restou pouco: Machado de Assis. E alguns críticos de Machado de Assis erraram completamente.

O que não devemos esquecer – autores, editores e leitores – é que um livro, depois de publicado, pertence à sociedade e à história. E cabe a nós, sim, julgá-lo, mesmo que nossos juízos estejam equivocados. O tempo fará as correções necessárias.

Para ajudar nessa questão, afinal o trabalho do professor é esse, publico, aí abaixo, uma Ficha de Avaliação, que utilizo em aula. Ela tenta dar conta, criteriosamente, dos dois eixos que compõe o que chamamos de literatura: o eixo dos procedimentos construtivos e o eixo dos meios expressivos. Sempre afirmo e repito: a grande literatura é aquela que articula e equilibra, com harmonia, esses dois planos.


FICHA DE AVALIAÇÃO


Procedimentos construtivos (de 0.0 a 5.0 pontos)

Personagens: se convencem ficcionalmente; se há verossimilhança de caráter; se são bem estruturadas do ponto de vista psicológico, histórico, social; se não são estereotipados e caricatos; se o que se sabe sobre eles é suficiente para a compreensão da história; (0.0 a 1.0)

Enredo: se é convincente; se tem um bom mythos (composição das partes orgânica e eficiente); se há adequação ao gênero (conto, relato, crônica); se não há descrições desnecessárias e sem articulação com a narração; se a ação é lenta e desconexa; se não há cenas ou situações inverossímeis; se há clichês narrativos; caso haja diálogo, se o método (d) escolhido é a mais adequado; se o diálogo (quando houver) está bem construído ou se é artificial e/ou inútil; caso haja alegoria, se ela é simples ou complexa, e se é bem construída; caso haja história cifrada, se funciona. (0.0 a 2.0)

Narrador: se o narrador escolhido e sua perspectiva (a), o focalizador (b) e a técnica narrativa (c) funcionam, ou se poderiam ser utilizados outros, mais eficazes para o texto. (0.0 a 1.0)

Conflito: se a história tem intensidade e se é significativa; se o conflito é bem construído (fraco, médio ou forte) (0.0 a 1.0)


Meios expressivos (de 0.0 a 5.0 pontos)

Linguagem: se há variedade e precisão vocabulares; se há adequação dos tempos verbais; se a adjetivação (quando houver) é eficiente; se há defeitos lingüísticos, sintáticos ou semânticos; se há clichês de linguagem; se o estilo é adiposo, desajeitado, flácido ou desarmônico; se há acidentes de leitura (e); se há ritmo, melodia, musicalidade e imagens bem construídas; se há investimento do autor nos campos semânticos para melhor compor o tom e o clima da narrativa; se há clivagem; se a textura da linguagem é simples ou complexa, superficial ou densa; se há investimento do autor na construção de um significante geral, organizador da narrativa; se há investimento do autor em figuras de linguagem (caso a poética do analisador entender que tropos ajudam a compor literariedade). (0.0 a 5.0)

Notas

(a) Técnicas de diálogo: discurso direto; discurso indireto; discurso indireto livre.


(b) Perspectiva do narrador: onisciente seletivo; onisciente seletivo múltiplo; onisciente intruso; onisciente neutro; eu-protagonista; eu-testemunha; modo dramático.

(c) Focalizador = foco narrativo = ponto de vista.

(d) Técnica narrativa: narrador-câmera; fluxo de consciência; monólogo interior.

(e) Acidentes de leitura: trava-línguas; repetições de palavras; excessos; ambigüidades; imprecisões semânticas e conceituais; ecos; cacofonias; assonâncias; uso excessivo de “ques”; impropriedades em geral.

(6) Figuras de linguagem ou tropos: metonímias; sinédoques; eufemismos; catacreses; hipalages; lítotes; autonomásias; perífrases; anáforas; disfemismos; apóstrofes; clímax/gradação; hipérboles; polissíndetos; paradoxos; oxímoros; antíteses; quiasmos etc.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A arara vermelha (conto)

Contrabandista não é bandido, é? Nunca roubei, nunca matei. Tenho ficha limpa, pode examinar. Se eu pudesse, tinha feito uma faculdade, ia ser advogado, andava de terno e gravata, como o senhor. Trabalho com quinquilharia paraguaia, mas não sou traficante. Relógio Jean Vernier, Tissot, Girard Perregaux. Sim, sei dizer o nome direitinho, aprendi com uma dona chique. Trabalho perto dos hotéis de luxo, lá na Paulista, e no Teatro Municipal. Tem gente endinheirada que compra de dúzia. Dão de presente? Revendem? Por encomenda, trago máquina fotográfica, computador de bolso, GPS, mas tem que fazer um adivance, me falta capital pra bancar produto muito caro.

Hoje se negocia qualquer coisa, cocaína, crack, rim, fígado. Já me ofereceram uma boa grana pra ser mula, pra carregar pasta de coca, pedra, papelote. Não topei. Tenho os meus limites, lido com muamba, e só. Dinheiro é bom, faz a gente feliz, mas não compra tudo, minha mãe já dizia.

Fui de ônibus, como sempre, a Foz do Iguaçu. Atravessei a fronteira a pé, sobre a ponte internacional, e voltei com a cota. Fiz a travessia várias vezes, pra que valesse a pena. Deixava a muamba na mala, no hotel, e voltava pra Ciudad del Este.

Numa dessas idas e vindas, encontrei a arara. Não, viva não. Era uma arara empalhada. De longe, parecia que ela ia levantar vôo, tinha o olho brilhante, as penas do peito eram vermelhas, quase sangue, e das pontas das asas e do rabo, pretas.

Retornei a São Paulo em ônibus de linha intermunicipal, fugindo da fiscalização, por estradas esburacadas, comendo poeira e pastel de rodoviária, e pensando na arara vermelha. Imaginava aquele bicho na floresta, nas árvores, comendo frutinha, longe da maldade dos homens. Até que alguém a caçasse, abrisse a barriga e enchesse tudo de palha seca. É triste. É triste pensar que uma ave linda, que nasceu pra andar pelas estrelas, que tinha visto o mundo de cima, agora olhava a gente com um olho de vidro, sem poder se mexer. Sinto um arrependimento danado de não ter comprado a arara. Só não fechei o negócio porque não teria coragem de passar adiante depois, eu me apego às coisas bonitas, e o dinheiro já andava curto. E agora, sem mercadoria pra revender, encurtou de vez. Eu tinha prometido a mim mesmo que ia trazer o pássaro empalhado na semana seguinte, quando voltasse. Só que eu ainda não sabia que tudo ia acabar numa delegacia de polícia, em Cascavel, no Paraná.

Às vezes, eu fico lembrando a voz da mulher, a beleza do rosto, o cabelo escuro e liso, mas penso, também, na criança que ela trazia no colo, penso muito. E era, mesmo, uma menina, como ela me disse. Assim que olhei pra ela, no ônibus, eu me lembrei da Virgem de Guadalupe. As duas tinham a pele morena e aquele sorriso manso no rosto. Se eu encontrasse a mulher noutro lugar, no Horto Florestal, por exemplo, ou na Praça Quinze, eu ia me apaixonar por ela, mas encontrei na viagem, e deu no que deu. Fui chamado pra ser testemunha do flagrante de prisão e vou levar processo por contrabando. Quando a polícia abriu uma das minhas malas, encontrou a montanha de relógios suíços, fabricados no Paraguai. Perdi tudo e ainda vou me incomodar com o inquérito. A dona da pensão onde eu moro me aconselhou a falar com o senhor.

“Um bom advogado, você vai precisar de um bom advogado”, ela me disse.

Depois de algumas horas, senti vontade de ir ao banheiro. Quando estava me levantando, vi, meio sem querer, que a mulher, essa que se parecia muito com a Virgem, borrifava perfume no rosto da criança. Entrei no reservado e enquanto sacolejava e tentava acertar o vaso, pensei em tudo. Ela embarcou na primeira parada que o ônibus fez, logo que saímos de Foz. Entrou com a criança no braço esquerdo, e com uma sacola plástica dependurada no direito. Tenho certeza, porque ela bateu aquela sacola no meu rosto, quando passou no corredor.

Durante a viagem, ela não saiu nunca do assento. Nem pra almoçar, nem pra jantar, naquelas paradas mais longas que o ônibus sempre faz. Teve uma hora que eu quase perguntei se ela não queria alguma coisa do restaurante, mas desisti quando vi ela tirar um sanduíche da sacola plástica.

Voltei pro meu assento e passei a observar a criatura com mais cuidado. Uma hora depois, se tanto, ela borrifou perfume sobre a criança outra vez. Uma coisa óbvia como que tilintou na minha cabeça: nunca, em nenhum momento, o bebê tinha chorado. Horas e horas de viagem, num caminho esburacado e lento, sob um calor dos diabos, e uma criança de colo ficava o tempo inteiro quieta, adormecida, sem chorar ou mamar?

Entrei na cabine do motorista e comentei que havia algo estranho no assento vinte e um. Um pouco depois, ele parou.

“Estamos com um problema no motor. Peço a todos que desçam. O conserto será rápido”, ele disse, na porta do corredor.

Depois que todos saíram, menos a mulher, voltei pra dentro do ônibus e perguntei:

– Não quer descer?

– Prefiro ficar aqui.

Vi que um lenço cobria o rosto da criança.

– Não vai se afogar com esse calor?

– Não, ela está bem – a mulher disse e sorriu.

E é esse sorriso que eu não esqueço. No quarto da pensão, quando eu lembro tudo que aconteceu, quando eu penso na mala de relógios que perdi, no bicho empalhado que não comprei, o que salta diante de mim feito uma arara enlouquecida, grasnando, é o sorriso e a doçura de santa que a mulher tinha.

– Então, é uma menina... – eu disse.

– Sim, e se chama Luísa – ela respondeu.

Falei com o motorista. Ele disse que não podia obrigar a mulher a se levantar, que ia dar rolo, depois, na empresa.

Recomeçamos a viagem. Eu estava cansado. Dormi um pouco, acordei, voltei a ficar de olho na mulher. E ela lá, sentada, quieta, uma santa no nicho.

Paramos em Cascavel. No posto da Polícia Rodoviária descobriram que a criança não só estava morta há muitas horas como vinha recheada de cocaína.

Tão cedo não conseguirei viajar outra vez. Será que o senhor não conseguia recuperar a minha mercadoria? Se eu vendesse os relógios, teria dinheiro pra voltar pro Paraguai e encontrar a minha arara vermelha. Meti na cabeça que eu quero aquele bicho. Sim, eu sei, se eu tivesse trazido, seria pior, ela estaria agora recolhida no depósito da polícia, no escuro, sozinha, empoeirada, atacada por ratos e cupins.

domingo, 11 de julho de 2010

As dores e a dor

Este texto encontra-se agora na obra Para ser escritor, editado por Leya, 2010.