quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O gaudério maneta

Once upon a midnight dreary chegamos — eu, caindo de sono, e o Luiz Antonio de Assis Brasil, exausto de fadiga — a uma curiosa e esquecida cidade ao sul de Pau-d’Arco e muito próxima de Pasárgada. A viagem de ônibus fora longa e trepidante, e era no meridional novembro. Esperamos longo tempo na rodoviária deserta, a andar de um lado para outro, e como ninguém aparecesse para nos apanhar tomamos um táxi para o hotel. Numa sinaleira no centro da cidade, no instante em que o motorista perguntava de onde vínhamos, alguém encostou um revólver na sua cabeça. O sujeito, maneta, de chapéu, lenço vermelho ao pescoço, bombachas, botas e esporas, queria perseguir uns desafetos, ou sabe-se lá o quê, e precisava do carro! Lívidos de espanto, como o poeta que recebeu a visita do Corvo no poema de Edgar Alan Poe, pedimos para descer ali mesmo, a gente dava um jeito na vida, com mais calma.

— O hotel é logo ali, ó — disse o taxista e apontou para trás. A entrada em cena do pistoleiro de um só braço livrou-nos de passear um pouco mais às custas da desonestidade. Antes que o tiroteio começasse, pegamos nossas bagagens e procuramos abrigo no hotel.

— Tenham uma boa noite — murmurou o Assis, sem perder a elegância, antes que nos afastássemos.

Nonada, tiros não ouvimos, mas cantorias sim, a noite inteira. De um lado, a zoada de um baile; e, de outro, um grupo de adolescentes bêbados. Só consegui adormecer quando a aurora surgiu matutina com seus dedos de rosa. Será que o Luiz Antonio teria saído para a sua costumeira caminhada como em Porto Alegre sempre faz?

Mais tarde, no refeitório do hotel, vi-o com olheiras de Baudelaire. Espartano, apesar de indormido, saíra sim. Entre uma fatia e outra de melão, ficamos a imaginar continuações para o caso do tropeiro mutilado. Em que revolução perdera o braço? Num jogo de truco? Numas carreiradas? Vítima da talidomida? E se o motorista tivesse reagido e no meio do entrevero nos sobrasse chumbo quente? Bolamos manchetes para os jornais, chamadas para os noticiários de rádio e TV. Tínhamos a pretensão de imaginar que um desfecho insólito nos colocaria, enfim, na primeira página! Depois, vieram nos buscar para o encontro com os alunos.

Ao meio-dia, fomos arrastados para uma churrascaria, onde, além de carne gorda, emborcamos alguns copos de cerveja. Quando meu companheiro de viagem fitava os garçons com aquele olhar fixo de quem adormeceu sem fechar os olhos, sugeri à anfitriã que me deixasse no cemitério. Sugeri, com a maldade que me é inerente, que o Assis Brasil nos acompanhasse. Como ele não é de fugir da raia, topou. E lá fomos nós, sob um sol abrasador, levemente altos, passear entre as tumbas, nesse silêncio respeitoso que a morte sempre impõe. Sobre o ombro de um anjo barroco, vi um pássaro negro. Chupim, pensei. Never, ele poderia ter grasnado, mas calou. O que se ouviu, subitamente, foi a voz da professora. Diante de um pequeno mausoléu, contou-nos a história de um menino que tivera um braço amputado num acidente no início do século. A mãe, zelosa com a integridade do filho, mandara embalsamar o braço. Homem feito, o mutilado desentendeu-se num bolicho, sacou o revólver, mas não chegou a fazer pontaria, o outro foi mais rápido. O bracinho embalsamado seguiu o corpo ao caixão.

Nossa cicerone sequer havia terminado a narrativa, eu e o Assis gritamos: “É minha! A história é minha!”. Eu ia dizer ouvi primeiro, mas me detive a tempo. Decidimos no palitinho a quem pertenceria o episódio. O bracinho embalsamado repousa hoje no nicho que lhe convém, no segundo andar do casarão Brechen, no interior de meu romance Os ossos da noiva.

Ao relembrar, compadre Assis, aquela viagem, fiquei meio sestroso: o gaudério da madrugada, agarrado ao 38, não te pareceu estranho? Aquele rosto macilento, esbranquiçado e enfermiço, era efeito só da luz da lua? Luiz Antonio, tu que estavas sentado no lado esquerdo do táxi, ali a um passo, ou a um braço, do vivente — viste ou não viste o reflexo do maneta no espelho do retrovisor?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Desaforismos (1)

Do coração

Não faço mais poemas bucólicos.

O coração já não pasta.


Da lingüística

Ora, direis, pensar em decassílabos!

Prefiro as sílabas.


Da noite

Era noite alta.

Caí da cama.


Da TV

Ciclópico olho quadrado.

Fita as coisas na sala.


Da xícara

Toda molhada, ela se dá

inteira aos lábios lúbricos.


Do guardanapo

Desconfio que napo

seja sinônimo de baba.


Da leitura

Para se ler A montanha mágica

é preciso fôlego de alpinista.


Da verdade matinal

Quando lavas o rosto não sentes

que acaricias uma caveira?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Antes que a Feira do Livro de Porto Alegre desapareça!

Escritor mente, político mente, todos mentem, mas a matemática não mente. Se não mentem os números apresentados pela Câmara Rio-Grandense do Livro, números consignados nos balanços de finais de feira, a maior festa literária de nossa cidade está definhando.

Vamos aos números, que eles são apolíticos, não têm ideologia, servem apenas para a interpretação da realidade, por mais dura que ela seja.

Em 2005, a Feira do Livro vendeu 530.980 exemplares; em 2006, vendeu 472.348 exemplares; em 2007, vendeu 459.521 exemplares; e, em 2008, vendeu 424.046 exemplares. Uma retração, em quatro anos, de 106.934 exemplares! É pouco? Vinte por cento de queda nas vendas é pouco? Arrisco um palpite: em menos de 10 anos, estaremos vendendo, no máximo, 200 mil exemplares por edição da feira!

Alguém aí poderia me dizer quantos automóveis foram vendidos, ano a ano, em Porto Alegre, desde 2005? Garanto que lá, nas revendas automotivas, naquele produto um “pouco” mais caro que o livro, houve uma evolução muito positiva. Ou não?

Senhores, a Feira do Livro de Porto Alegre está se encolhendo rapidamente. Se as nossas estratégias não forem alteradas, e elas não são simples, e não há espaço aqui para discuti-las, os nossos filhos serão obrigados a “fechar o bolicho”, como se dizia na minha terra natal.

Discurso é discurso, comércio é comércio. Discurso vive de ilusão, de fantasia, de desejo sublimado. Comércio vive do tilintar das moedas. E sem moedas, o discurso se transforma em saudade do passado. Não é de hoje que murmuramos pelas alamedas floridas da praça, “como eram boas as feiras de antanho”! Mais um pouco e faremos um Centro de Tradições da Feira do Livro!

Urge convocar a sociedade local para um amplo e profundo seminário sobre as estratégias para o futuro da feira. Como apaixonado pelo evento, e seu participante desde 1977, convoco a CRL, a Prefeitura, o Governo do Estado, a Imprensa, as Associações de Escritores, a Câmara de Vereadores, o Parlamento Gaúcho e demais interessados, para uma reflexão sobre o assunto. Se meu discurso não convence, atentem para os números. Eles são silenciosos, frios e irretorquíveis!

Ou, nas próximas edições, os antigos freqüentadores da feira ficarão em casa, lendo os seus e-books, navegando na Internet, fazendo palavras cruzadas! E eu vou abrir uma empresa de pronta-entrega de pipocas!

Charles Kiefer

domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre concursos literários

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.