domingo, 25 de outubro de 2009

Adjetivar ou não, é uma questão?

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Apresentação de “O pêndulo do relógio e outras histórias de Pau-d´Arco”

Gosto de ver estas três histórias reunidas num só volume – todas se passam em Pau-d´Arco, a cidade ficcional que inventei em 1982. O pêndulo do relógio talvez seja o meu texto mais seco, mais econômico e mais sofrido, como é a vida dos colonos mini-fundiários de minha terra natal, onde não cantam as jandaias, que as árvores todas foram derrubadas para o plantio de soja. Mas este livro raquítico, de frases sincopadas, de capítulos minúsculos, me deu a primeira grande alegria literária – uma estatueta do Jabuti, o prêmio da Câmara Brasileira do Livro, aos 26 anos. Prêmios, num país que dá tão pouca importância à literatura, são selos de autenticação, abrem portas, consolidam carreiras. Não me senti vaidoso com a honraria, mas cresceu em mim o sentido de compromisso, de auto-exigência e de postura artística. Outros prêmios vieram, mas nenhum foi tão importante como aquele, pois ele afirmava que era possível que o coloninho de Três de Maio se transformasse em escritor. E agora, tantos anos depois, ao reeditar a obra em cuidadosa nova edição, ampliada de outras duas histórias, comovo-me outra vez.

Nós, escritores brasileiros, somos como aquele personagem da literatura grega que tanto me fascinou na infância. Empurramos a pedra montanha acima e não desistimos, despenque ela, montanha abaixo, quantas vezes o destino quiser.

Na história de Alfredo Müller, o protagonista, o pêndulo parou. Na minha, não. Continuei escrevendo outras histórias, povoando a minha cidade inventada com outros dramas, outras lutas, outras desgraças e outras vitórias. Vinte e cinco anos se passaram desde a primeira edição, e os pequenos agricultores de meu país não só perderam as suas propriedades como foram parar na periferia das grandes cidades, nos acampamentos de sem-terra. Relendo a obra agora, me dou conta que ela não envelheceu, que ainda mantém a contundência, que ainda pode ser lida pelas novas gerações. Esta é a décima vez que ela desce ao prelo, e não será a última.

"A traíra" também se passa em Pau-d´Arco. De certa forma, o narrador poderia ser neto de Alfredo Müller. Essa história, publicada em 1992, me deu dois prêmios, o Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, e mais um Jabuti. Gosto do meu tom melancólico e dos ecos de Nick Adams, o grande personagem de Hemingway. Aquele deslocamento, aquela incompreensão de que meu narrador se sente vítima, ainda hoje me persegue. O albatroz, de Charles Baudelaire, explica melhor isso tudo, mas eu só li o poema muitos anos depois de haver escrito a história.

E "O poncho", publicado em 1996, não me deu prêmio nenhum, exceto o de sentir a impagável sensação de ter escrito uma boa história. Ao relê-lo, ainda me emociono, e é como se eu próprio visse um poncho dependurado num canto do quarto. Ele representa tudo aquilo de que não conseguimos nos livrar. A influência aí é de O capote, de Gogol, mas não na linguagem. O núcleo do enredo é antigo, data do século XII, no Japão: a história de um homem que vai à guerra e que, ao regressar, muitos anos depois, reencontra o fantasma da noiva que abandonou. Eu não conhecia a narrativa japonesa, mas conheço a força do mito, que renasce em todos os tempos e em todos os lugares. No fundo, estamos reescrevendo sempre as mesmas histórias, ora na pele do camponês sedentário, que, sem ter viajado, imagina as maiores peripécias, ora na pele do viajante marinheiro, que, ainda insatisfeito com tudo o que viveu em suas andanças, mente desbragadamente.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A morte do livro

(Publiquei este ensaio em 1997, num livro a que chamei de O guardião da floresta. Agora que o e-book chegou, o que disse virou profecia.)

Uma questão aterroriza editores, livreiros e escritores: a morte do livro de papel, do volumen, este objeto quase sagrado para alguns, peçonhento para outros e indiferente às massas.

Um rápido exame da personalidade de gente que pensa assim nos leva a uma conclusão óbvia: são editores provincianos, atrasados no sentido lato do termo, e mal-informados. Sentem- se, quase, como que os inventores do livro. A multimídia não lhes está roubando um produto, mas uma visão de mundo. Não é por nada que os livros de papel são quadrados ou retangulares, atraem insetos, emboloram e fazem orelhas-de-burro (nas desastrosas edições sem orelha). Os livreiros que temem o livro eletrônico são, em geral, comerciantes tacanhos, que não enxergam além da prateleira ou do balcão, tanto se lhes dava se vendessem batatas, ilhoses, sardinhas ou as obras de Shakespeare, Dante e Cervantes, para ficar com a trindade da Idade Média (não por acaso, foi mais ou menos nessa época que o suporte material do livro começou a tomar a atual e indefinitiva forma). Livreiros desse naipe recusam-se a comercializar em seus armarinhos, ou diremos livrarinhos?, os produtos da multimídia, que têm inclusive o mesmo formato do livro comum. Até nisso os editores da nova tecnologia são mais avançados. Sabem utilizar bem o fetichismo do tamanho. Os escritores não conseguem compreender o que está acontecendo. Estão mais preocupados com a questão do direito autoral, como se ganhassem rios de dinheiro, e com a crítica, como se crítica literária, no final do século XX, tivesse qualquer importância.

Na verdade, o livro, o grande livro, o livro mundial, está nascendo. A Biblioteca de Babel, sonhada por Jorge Luis Borges, já se tornou realidade via Internet. Nenhuma nova tecnologia, jamais, em lugar algum, destruiu uma antiga, mas apenas aperfeiçoou, incrementou e popularizou a que existia. A mudança nos meios de produção trará, é claro, alterações profundas nas relações entre editores, livreiros e escritores. O que já vem tarde, que a hipocrisia é medonha. O editor finge que edita, o livreiro finge que vende e o escritor se dá por satisfeito, desde que seu livro apareça na vitrine da livraria. Na grande rede da infovia, todos serão leitores de todos. O problema, outra vez, será incorporar o máximo de excluídos ao sistema informatizado. A voz de meu pai, na já distante infância, afirmando que jamais poderíamos comprar uma televisão, me consola. Certo, alguns ficarão de fora. E quando, na incrível e triste história do gênero humano sobre a Terra, muitos não ficaram?

Meu Deus, alguns editores, alguns livreiros e alguns escritores estão se indagando, e o sagrado livro de papel? Sobreviverá, não tenham dúvida. E ainda mais, ficará mais atraente — já se percebe a mudança na concepção gráfica, no acabamento, no tipo de papel — e mais acessível aos pobres (produtos tecnologicamente superados vêem seus preços despencar. Ei, não está na hora de nossos sebos caírem na real, sem trocadilho, por favor, e venderem seus livros usados pelo que eles valem no mercado internacional?). O que o sistema editorial se recusou a fazer — verticalizar a produção e diminuir custos e preços — a indústria de reprografia fez. Por isso, a choradeira de editores, livreiros e escritores contra o xerox é melancólica, risível e ineficaz. Venha para o lado de cá e tente convencer um aluno sem dinheiro a pagar o triplo por um livro convencional.

A aura do livro de papel não vai cair na sarjeta, meu poeta, vai brilhar com mais intensidade. Hoje, depois que o videocassete e as Tvs a cabo trouxeram os filmes para dentro de casa, o escurinho do cinema ficou revalorizado. O livro, depois de vários séculos de imobilidade, encontrou um concorrente, o que há de levar os editores a se tornarem mais eficientes, os livreiros mais dinâmicos e os escritores mais informados, mas continuará sendo o melhor companheiro para as solitárias noites chuvosas, o melhor contrapeso para segurar portas, a não ser que se inventem laptops ou videobooks com cheirinho de mofo, poeira e buraquinho de traça e páginas para se acariciar.

(In: Kiefer, Charles. O guardião da floresta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997),

domingo, 18 de outubro de 2009

Apontamentos sobre "As metamorfoses", de Ovídio

Publius Ovidius Nasão nasceu em Sulmona em 43 a.C. e provavelmente morreu em 17 a.C. Segundo os manuais de história da literatura, que se copiam em cadeia infinita, foi um jovem talentoso e culto, brilhante e original, refinado, elegante, irreverente e irônico. Sobressaía-se entre os discípulos dos retores Arelio Fusco e Porcio Latro pela facilidade com que versificava. Seu pai quis vê-lo dedicado à carreira judicial, mas ele consagrou-se à poesia. Entre 20 a 15 a.C. apareceram suas primeiras obras, que tinham um caráter erótico, como as Heróides e Amores, escritos dentro dos cânones alexandrinos. Mais tarde, ao final do século I a.C., ou já na era cristã, publicou novas obras: A arte de amar, Os remédios do amor e Produtos de beleza para o rosto da mulher.

Depois de retratar a futilidade, a frivolidade e a inconseqüência dos poderosos de Roma, Ovídio dedicou-se a uma obra de grande envergadura, uma espécie de constelação mitológica, uma reunião de mitos e lendas sob o nome de As metamorfoses.

Inspirando-se em poetas como Nicandro de Colofon, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio de Nicéia, sua obra compõem-se de quinze livros em versos hexâmetros dáctilos, não mantidos na maioria das traduções, versos que organizam cerca de duzentas e cinqüenta lendas etiológicas sobre a origem dos mais diversos seres (mares, astros, fontes, plantas, animais) como produtos de metamorfoses.

Segundo Millares Carlo, o argumento do grande poema As metamorfoses “por sua prodigiosa variedade, se prestava a ser tratado por um poeta de tanta imaginação e facilidade como Ovídio, cujo mérito principal reside não só em ter impresso unidade à variedade inconcebível de acontecimentos, episódios e personagens (Deucalião e Pirra; Faetonte; Cadmo e o Dragão; Perseu e Andrômeda; Dédalo e Ícaro; Filemon e Baucis; Ifigênia; Hécuba etc.), mas também na diversidade de descrições e na mestria com que no mais das vezes soube evitar a repetição de procedimentos narrativos idênticos”.

Para Zélia de Almeida Cardoso, é difícil classificar-se o poema de Ovídio quanto ao gênero, já que ele não é, para ela, uma epopéia, apesar de seu tom épico e o emprego sistemático da narração, mas também não se caracteriza como um poema didático, pois se quiséssemos considerá-lo uma tentativa de explicação do universo pela teoria neopitagórica, esbarraríamos na falta de qualquer fundamentação científica, no superficialismo e no tratamento irônico e brincalhão dado a algumas lendas. Assim, Cardoso considera-o um poema lírico, já que encontra nele “uma sucessão de quadros coloridos e belos, onde não falta o movimento, a caracterização pessoal e a expressão da sentimentalidade.”

Para Ettore Paratore, ao abandonar o dístico elegíaco com que compusera seus livros anteriores e optar pelo hexâmetro na nova obra, Ovídio nos dá um exemplo do tour de force de sua inventiva caprichosa e do seu virtuosismo habilíssimo, entrelaçando, com achados técnicos os mais variados (por exemplo, inserir um ou mais contos dentro de outra narrativa, aliar um tema a outro baseado numa semelhança exterior, unir uma série de narrações por uma afinidade formal que os reagrupa etc), todos os mitos de transformação que a poesia anterior lhe oferecia.

Ao ligar com um tenuíssimo fio os numerosos episódios do poema – a alegoria da constante transformação dos seres e das coisas – Ovídio desenvolveu até ao inverossímil os artifícios da técnica helenística introduzidos na poesia latina por Catulo e por Virgílio, a técnica de inserir uma narrativa mítica dentro da outra (Catulo e Virgílio devem ter aprendido esta técnica com Homero, que na Odisséia a utilizou com grande eficiência).

Ovídio buscou apoios em todas as tradições culturais para dar ordem ao imenso e informe material que tinha em mãos. Procurou alinhá-los em perspectiva como uma história do cosmos e apressou-se a passar dos mitos gregos para a história de Roma, a cantar os prodígios monstruosos prenunciadores da morte de César e a esconjurá-la, e a improvisar um final filosófico-religioso que nobilitasse a sua longa insistência no tema da metamorfose.

Regina Zilberman, em prefácio à dissertação de Márcia Helena Saldanha Barbosa sobre O louco do Cati, lembra que a “metamorfose já se encontra na gênese do universo e acompanha pari passu a trajetória dos deuses e dos homens, mas que encontra-se igualmente na origem da própria literatura, porque Ovídio constrói seu poema à sombra de outras obras: abeberou-se em Homero, na tragédia ateniense, nas novelas de aventuras e na epopéia latina.”

Segundo Zilberman, Ovídio condensou a prosa e a poesia que o precederam e, a partir daí, serviu de inspiração inesgotável para a literatura, o drama e as artes plásticas. Criar é metamorfosear, ensina Ovídio. O mundo só adquire sentido depois de um deus conferir forma ao caos; um texto só ganha significado porque se constrói a partir de outro texto previamente existente mas que, por sua vez, só é entendido porque novos textos o iluminaram.

Tanto o cosmos quanto a literatura não têm início: eles principiam, mas algo sempre os precede; e esse precursor não representa nada, enquanto o sucessor não explicitar algumas de suas significações.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Um domingo de tsunamis poéticos

Sábado, dia 10 de outubro, estive em Recife, na VII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Com Marcus Accioly, participei de um sarau. Ele declamava um poema, eu lia um conto. Depois daqueles tsunamis produzidos pelos grandes poemas épicos de Accioly, meus contos pareciam buscapés molhados.

A superioridade da poesia sobre a prosa é estonteante. Só a completa vulgarização do mundo podia ter gerado isso que chamamos de ficção.

Foi uma tarde memorável. Temi, antes do evento, que teríamos três ou quatro ouvintes. Tivemos várias dezenas, auditório lotado. Que lá estiveram não para me ouvir, mas para ouvir o poeta.

No domingo, Accioly levou-me a Ilha de Itamaracá, onde ele tem uma casa de praia e vários barcos, além de cães que só faltam falar. Convidou-me a passear em alto-mar, a bordo de uma jangada.

"Nem amarrado", eu disse.

E finquei pé. Garantiu-me que era seguro, que se a jangada virasse não seria problema, ela não afundaria. Mesmo parecendo mal-agradecido, não aceitei o convite. No mar não entro, só em transatlântico, e olhe lá!

Ele perdeu o passeio, eu ganhei uma viagem a mares mais profundos e assutadores. Depois de compreender que eu não subiria naquela jangada de jeito nenhum, aceitou mostrar-me seus livros inéditos.

Assim, passei a manhã ouvindo-o ler trechos de seus 10 livros inéditos.

Fascinado e assombrado, aos 14 anos, na Biblioteca Pública de Três de Maio, eu lia Sísifo de Marcus Accioly. E neste último domingo, ganhei, e autografados, os livros Xilografia, Érato, Narciso, Guriatã e Poética pré-manifesto.

A cada dia mais me convenço de que vivo num estranho país. O maior poeta épico de toda a nossa história, só comparável a Homero, a Dante, a Eliot,  vive quase esquecido em Olinda, enquanto outros, que mais barulho que poesia fazem, são incensados constantemente pela mídia.

Se queremos um país de verdade, e não um arremedo, precisamos valorizar quem tem valor.

Ei, Luciana Villas-Boas, já te indiquei os dois últimos prêmios de literatura de São Paulo, o Cristóvão Tezza e o Altair Martins, e te indico agora, para publicação dos inéditos, e republicação dos livros antigos, o Marcus Accioly. Quando ele, publicado por ti, ganhar os grandes prêmios, me manda um queijo de Minas!

Se algum dos meus leitores imagina exagerada a minha admiração por Accioly, saiba que ele foi admirado também por Augustina Bessa-Luís, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Wilson Martins, Nely Novaes Coelho e Antonio Houaiss, entre muitos outros.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Amigas (Conto)

Quem podia imaginar que a Juliana ficaria tão chateada? Na hora de comprar os ingressos, só deu pra três. Na última hora, ela não pode nos acompanhar, e aí, na hora de pagar, vimos que faltava dinheiro. Dava pra três, mas não pra quatro. Usamos um pouco da grana que ela ela deu pra Camila, pra completar.

— Mas era o dinheiro para o meu ingresso — ela disse, furiosa.

— Tinha uma fila enorme, se a gente não comprasse naquela hora, depois, só em cambista.

— Se vocês fossem minhas amigas de verdade, não teriam comprado ingresso nenhum.

— E perder o jogo?

— Sim, a gente perdia o jogo, mas não a amizade.

Era a nossa melhor amiga, a mais festeira, não recusava convite pra nada, trabalho ou passeio, encarava todas. Fosse passear no shopping ou fazer trabalho em grupo, montar peça de teatro pra melhorar a nota de literatura. A gente não desgrudava nunca, as quatro sempre no fundo da sala, nem aí pro professor se esgüelando lá na frente. Ou bem aí, se a aula era de Química. Não pela matéria, um saco, mas pelo teacher, um baita gato. Nem na hora do recreio a gente desgrudava, ficávamos andando pelo pátio, paquerando os guris da terceira série, que os da nossa turma eram uns bolhas. Na hora do vôlei, quase formávamos um time, era só convidar mais duas, e aí não interessava quem, podia ser a Tatiana e a Elisa. Ou a Beti e a Clarisse. Desde que não fosse a metida da Aline-Nariz-Empinado. Êta guria mais cheia. Só os abobados da nossa turma agüentavam ela, faltavam carregar a dondoquinha no colo.

A idéia de ver a final do campeonato de basquete masculino tinha sido da Camila, que era louca pelo cestinha do Pitti-Corinthias.

Na segunda-feira, durante a aula de matemática, a Juliana recebeu o bilhete da Camila. Teve que disfarçar, porque o Aluísio, vulgo Banana, parece que tinha olhos nas costas. No instante em que a guria pegou o papelote enroladinho por baixo do sovaco, o Hipotenusa se virou com a lentidão da tartaruga de Aquiles e cravou os olhos de mal-amado nela. O silêncio tomou conta da sala, um silêncio denso e ansioso, aquele mesmo silêncio que se abateu sobre a gente na hora em que o Ayrton Sena seguiu direto pro muro. E ele veio, o professor de matemática, bólido, pisando firme, com o andar de ganso velho e gordo, os tacos dos sapatos ecoando além da sala de aula, retumbando dentro da gente. Ah, mas a Juliana era uma cretina, sabia mentir na lata, sem tremer a sobrancelha.

– Quero ver o bilhete – ele disse, a voz rouca de quem fumava feito maria-fumaça.

– Que bilhete? – ela perguntou, com inocência suficiente pra fazer corar os anjinhos do Michelângelo.

– Esse que a senhorita tem na mão.

A sala inteira concentrou-se na mão fechada de Juliana, por um segundo os planetas deixaram de girar ao redor do sol. Quarenta e oito pares de olhos, centenas de braços e pernas, paredes, portas e janelas, as carteiras da escola, os corredores, as escadas, os degraus, as ruas e as avenidas, as cidades ao redor de Porto Alegre, tudo parou por um breve instante, convergindo para os dedos longos de Juliana. Sádica, ela manteve o universo fechado dentro da mão por um longo tempo.

– Vamos lá – disse o Banana –, abra!

Juliana girou a cabeça, fitando a sala toda como se perguntasse: “Abro ou não abro?”. Deve ter visto em nossos olhos o desespero, era mais que evidente que o homem ia explodir, e abriu.

No princípio, ele concentrou o olhar, enrugou a testa, como se procurasse ver uma coisa muito pequena. Depois, foi ficando amarelo, vermelho, azulado, roxo.

– Quer ler a minha sorte? – ela perguntou e abanou a mão vazia.

Ninguém mais agüentou, a avalanche de medo represado arrastou tudo.

O Hipotenusa se arrastou até a mesa, recolheu o caderno de chamada, os livros, as canetas e os pedaços de giz, fechou a maleta 007 e sentou-se, a cabeça entre as mãos. Não era um bom sinal, por isso o silêncio retornou, mas desta vez como um nevoeiro que subisse lento do Guaíba nas frias manhãs de junho. Quando a gelatina de silêncio tinha se tornado compacta e pegajosa, ele pegou a maleta, levantou-a acima da cabeça e jogou-a contra o tampo da mesa. O estrondo deve ter sido ouvido até em Pasárgada.

– Tirem uma folha, vamos fazer um teste – ele anunciou, solene, carrancudo, os olhos faiscando de raiva, depois de quase matar todo mundo de susto.

Nem é preciso dizer que a Juliana foi a única a gabaritar o teste. Tudo o que o Hipotenusa queria era humilhá-la com uma nota baixa, mas a Juliana era linha-dura, fazia programa de estudo com a mãe, que também era professora. A velha perguntava e ela respondia. Pra gente, mais de seis era a glória; pra ela, menos de nove era tragédia.

Na hora do recreio, depois do suplício do teste de matemática, a Camila perguntou:

– O que achou da idéia?

– Que idéia?

– Que te escrevi no bilhete...

– Não li, não deu tempo.

– Como não deu tempo?

– Engoli.

Deu um ataque de riso na Camila.

Era a nossa melhor amiga, agora anda aprontando cada uma. Roubou até o namorado da Márcia Batonzinho.

Tudo por causa da maldita final do jogo de basquete.