domingo, 24 de maio de 2009

Do som do H

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Cultura tem sotaque

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

sábado, 16 de maio de 2009

O local, o nacional – temas, mercados, histórias

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Reynaldo Moura: um rosto à sombra

Um pouco de história

Reynaldo Moura nasceu em Santa Maria, a 22 de maio de 1900. Viveu naquela cidade entre as montanhas até os oito anos de idade, num clima de tranqüilidade e paz, cercado de carinho e atenção, envolvido com jogos e brincadeiras infantis, na afirmação de Maria Luiza Ritzel Remédios, que o estudou e sobre o qual escreveu uma biografia.

Se tem razão o crítico francês Jean-Paul Weber, ao afirmar que o “tema é uma experiência infantil que marca para sempre a mentalidade do artista e se manifesta simbolicamente nas suas obras”, seria de se indagar em que momento da primeira infância do autor ocorreram experiências tão significativas que o levariam a mergulhar em problemas ontológicos de tal envergadura como os encontrados em suas obras? Não teria sido certamente a paisagem bucólica e provinciana da Santa Maria da Boca do Monte do início do século que inspiraria o autor na construção de personagens doentios e acossados por demônios interiores. Ou teria sido o menino Reynaldo um desses seres introvertidos e sorumbáticos, precoce e estranhamente amadurecidos do ponto de vista psicológico, um desses seres sensitivos, neurastênicos, em grande luta íntima?

De Santa Maria, a família Moura transferiu-se para São Borja, na fronteira, e depois, para Porto Alegre. Será na capital que, aos quinze anos, Reynaldo escreverá seus primeiros versos, escritos a giz, como ele mesmo o afirmou em artigo na Revista do Globo. Depois de cursar o segundo grau no colégio Júlio de Castilhos, ingressou na faculdade de Química, logo trocada pelas de Medicina, Direito e Engenharia Mecânica. Seu espírito inquieto levou-o a desistir de todos os cursos superiores e a dedicar-se à literatura e à poesia. Em 1926, casou-se com Noah Viterbo de Carvalho, com quem teve dois filhos, Sérgio e Roberto. Iniciou então intensa atividade jornalística, colaborando com os principais jornais e revistas das décadas de 20 e 30. O escritor foi, inclusive, um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa.

Em 1935, Reynaldo Moura viu seu primeiro romance, A ronda dos anjos sensuais, ser publicado pela Editora Globo, à época uma das mais importantes casas editorias do Brasil. No ano seguinte, foi a vez do livro de poesias Outono ser editado. Em 1939, veio à luz o romance Noite de chuva em setembro; em 1940, lançou L’après midi d’un faune pela Editora Lanterna Mágica, de Porto Alegre. Enquanto isso, poesias esparsas eram publicadas em jornais e revistas do Estado e do país. 1944 foi um ano de grandes edições na vida de Reynaldo Moura. A José Olympio, então a maior editora do Brasil, publicou no Rio de Janeiro, a sua novela Intervalo passional e a Editora Globo apresentou aos leitores seu livro de poemas Mar do tempo. Em 1945, ano do lançamento da revista Província de São Pedro, tornou-se seu colaborador regular. A novela Um rosto noturno, sobre a qual falaremos mais a diante, saiu pela Editora Globo em 1946. No ano seguinte, Reynaldo publicou um interessante e premonitório ensaio sobre Clarice Lispector chamado “O lustre”, na revista Província de São Pedro. Em 1948, Guilherme de Figueiredo transformou em filme a novela Um rosto noturno. Em 1954, a Globo lançou um novo romance de Reynaldo Moura: O poder da carne. Quatro anos depois, veio a público aquele que seria considerado pela crítica o seu melhor livro: Romance no Rio Grande. A novela A estranha visita foi publicada pela Globo em 1962. Entre 22 de julho e 6 de novembro de 1963, o jornal Última Hora publicou o folhetim Major Cantalício, que o autor jamais editaria em forma de livro. Em 1964, Reynaldo Moura foi preso, apesar de não pertencer a nenhum partido político. Acusação: defender ideais socialistas. Ficou apenas dois dias na prisão, tendo sido libertado por gestões dos amigos Erico Verissimo, Maurício Rosenblat e Alberto André. A humilhação imposta levou-o a sofrer um infarto, do qual jamais se recuperou. Um ano depois, faleceu em Porto Alegre, deixando uma novela inédita: O crime no apartamento.

A vingança da Esfinge

O simbolismo, enquanto “movimento literário mais ou menos organizado e ativo”, no dizer de Massaud Moisés, tem seu fim no início do século XIX. Cumpre, no entanto, observar que a sua influência se propaga ao longo das décadas seguintes. Meio século após seu esgotamento enquanto escola literária, o simbolismo influenciou profundamente o autor gaúcho, marcando sua obra com o selo do Enigma, transformando sua prosa numa densa floresta de símbolos e mistérios que somente aos poucos se pode ir desvendando.

A intensa atividade literária rio-grandense na década de 30, do século passado, produzida pelo fervor ideológico revolucionário e pela existência de uma casa editorial do porte da Globo na província, tinha, basicamente, duas grandes correntes. Uma, a do romance rural e da problemática social do gaúcho da campanha, desencadeada por Cyro Martins, mas que dava prosseguimento ao projeto de Simões Lopes Neto e de outros autores, chamados, o mais das vezes de forma apressada e irresponsável, de regionalistas; e a outra, a do romance urbano e dos conflitos da modernidade emergente, da qual são exemplares Dyonélio Machado e Erico Verissimo. Tanto uma como a outra são de matriz real-naturalista e de forma inequívoca dão continuidade ao projeto estético de marcado cunho social que vinha do século anterior, com Machado de Assis e Raul Pompéia, passando por Lima Barreto e pelos tantos autores do que veio a se chamar de romancistas de 30. No entanto, quase que anacronicamente, um autor se desviou desse projeto e foi beber em fontes simbolistas. Reynaldo Moura, esse autor, produziu poesia simbolista de alto valor estético e arriscou fazer também romances simbolistas, fato por si só difícil, dado que o gênero tem por tendência natural a descrição dos movimentos sociais e de suas contradições históricas. Ao romance de extração real-naturalista se pede que conte uma história o mais linear e compreensiva possível, mas Reynaldo Moura ousou fazer do símbolo o elemento central de sua obra em prosa, dificultando-lhe a apreensão. Pagou um alto preço por isso — foi quase esquecido e taxado de autor hermético.

O romance simbolista

O esgotamento da estética realista, o acerbamento da objetividade, que na afirmação de Machado de Assis levaria a literatura a “nos dizer o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”, levou a um movimento de ruptura, capitaneado na França pelo poeta Charles Baudelaire e denominado, no princípio, de decadentismo.

No Brasil, o simbolismo se inicia com Cruz e Souza, em 1893, no gênero poético. No romance, no entanto, a escola francesa deixaria sua marca em autores como Rodrigo Otávio, que publicaria um romance simbolista em 1889, Alfredo de Sarandi Raposo e José Henrique de Santa Rita. Mas esses são autores menores, de ficção decadentista e indefinida, em que se misturam o poema em prosa, o salmo, o ensaio filosófico. Somente com Gonzaga Duque e Nestor Vítor o gênero tomará corpo na prosa. Mocidade morta, de Gonzaga Duque é o primeiro exemplar digno de nota e data de 1899. Reynaldo Moura publicará seu Um rosto noturno somente em 1946, quase meio século depois.

Um rosto noturno: um romance simbolista

Fazendo jus à tradição do romance simbolista, que teve seu início na França com A rebours, de J. K. Huysmans, Um rosto noturno possui um enredo frouxo e vago, quase indefinido. Um homem, Ulisses, está trancado numa casa e narra fatos desconexos, envolvendo Nora, Simone, Alex, Arlete, alguns médicos e outros personagens secundários. Pouco, quase nada, sabemos da história desses personagens, pois o narrador não lhes descreve as vidas, mas deleita-se com terrores noturnos, vaguidades, sonambulismos e nevroses. Do local em que se encontra, seguidamente aproximam-se misteriosos passos, aumentando-lhe o terror. Aos poucos, com muita dificuldade de leitura, vamos desvendando os mistérios que o cercam. Há, na casa, alguém desfigurado. É um homem que somente pode manter relações com a esposa no escuro, pois a náusea de vê-la sob a luz destruiria qualquer momento de sensualidade e paixão. Um adultério envolve este personagem central. Há uma irmã e um cunhado ensandecido. O mais são impressões, tentativas de apreender a loucura, o mistério, o inconsciente, o inferno. Mas a linguagem, impura e demais e social demais, parece incapaz de chegar à verdade, de decifrar o enigma. Vejamos alguns casos dessa incapacidade: “Porque eu não sentia antes como agora, depois que tive a revelação? Não me explico claramente” (p.12); “Naturalmente eu nunca vi coisa nenhuma” (p.17); “Coisa estranha: era como seu eu houvesse chegado de um outro mundo e não pudesse mias participar do sentido de tudo isso” (p.21).

Há centenas de exemplos dessa incapacidade do narrador em explicar o que se passa no seu interior e ao seu redor. Como ele escreve num estado quase de transe, pré-lógico, o máximo que consegue descrever são sugestões e evocações vagas. Trabalha com a musicalidade das palavras e carrega no léxico negativo para aumentar a sensação de angústia e terror do leitor. É impossível lê-lo sem um estremecimento, um estranhamento semelhante ao que sentimos ao ler Clarice Lispector.

Trabalhando com arquétipos, Reynaldo Moura desce às profundezas do inconsciente e extrai dele uma poderosa narrativa, que exige estudos mais demorados e aprofundados que este breve esboço que ensaiamos.

Uma das recorrências neste romance é a cor branca, verdadeira obsessão simbolista, resumo do ideal dessa estética. Ao longo do texto, as personagens vestem branco, as paredes são brancas e etc. O branco, nessa escola, simboliza o mistério, a espiritualidade, a pureza, o etéreo, o oculto.

Outra obsessiva recorrência temática do autor é a do desfiguramento. A destruição do rosto é uma constante não só neste romance como em todos os outros. A referência a um acidente de avião é também muito repetida. E o sobrevivente sempre aparece desfigurado. Em Reynaldo Moura, o homem e a mulher sem rosto podem ser lidos como a perda da identidade e a falta de sentido das relações sociais no mundo moderno.

É recorrente ainda a temática da casa, do espaço fechado. Os seres de Reynaldo Moura escondem-se, isolam-se e das janelas ficam a admirar as casuarianas, a ouvir os latidos dos cachorros a lembrar-lhes um mundo já perdido e inalcansável, a sentir os cheiros da tarde em evocações pueris mas profundamente humanas, saudosos de um tempo já desaparecido e irrecuperável. Praticamente todas as suas narrativas se passam em interiores. O espaço exterior é mera referência, acidente fortuito e irrelevante.

A loucura é outra constante temática. Se nem todos os personagens de Moura são loucos, é certo dizer que todos são neuróticos e navegam a velas pandas rumo à insanidade.

A família como espaço de neurotização é outra temática recorrente. Não há casais felizes em Reynaldo Moura. Até os amores clandestinos, no momento em que compõem um espaço quase-familiar, estão fadados ao fracasso e a fragmentação neurótica.

A noite é uma das vertentes temáticas de maior importância em Reynaldo Moura. O espaço para o dia claro não encontra recepção em sua prosa. Interessam-lhe os terrores noturnos, os sonambulismos, os misteriosos desvãos dos interiores penumbrosos. Enfim, a noite sobreleva-se na obra do autor e pode ser lida, simbolicamente, como a floresta do inconsciente, que esconde o homem-fera, o duplo, os fantasmas, os demônios. Neste espaço noturno, a linguagem perde função. Os personagens tentam organizar o mistério, apreendê-lo, mas as palavras são impotentes. Por isso, abundam nas páginas de Um rosto noturno e outros romances do autor, as reticências, as orações inconclusas, as alusões sem nexo.

Reynaldo Moura é um rosto à sombra na literatura gaúcha. Urge trazê-lo à luz, pois não fica nada a dever aos melhores representantes da prosa do sul, como Simões Lopes Neto, Cyro Martins, Dyonélio Machado e Erico Verissimo. Pagou um alto preço pelas suas obsessões, por recusar a estética real-naturalista de que é composta a literatura de nosso estado. Mas não foi isto que também fizeram Fiedor Dostoievsky, Ernesto Sábato, Roberto Arlt e Willian Faulkner?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Simetrias e leves anacronismos em "O Sul"

No prólogo à edição de Artifícios, de 1944, Jorge Luis Borges afirmou que “O Sul” era, talvez, o seu melhor conto e preveniu os leitores de que tanto podia ser lido como “direta narração de fatos novelescos” quanto “de outro modo”, o que indica a consciência que tinha o autor da existência de uma história cifrada no interior da história visível. O estranhamento, essencial para a irrupção do fenômeno estético, como ensinou Victor Choklovski, é produzido pela tensão e distorção entre as duas narrativas.

Examinemos, pois, os fatos novelescos, a história visível, simples e linear de “O Sul”, e que não ultrapassa os limites do que se convencionou chamar de “realismo”, e, ao mesmo tempo, tratemos de encontrar as pontas dos fios da trama secreta, que instaura o “fantástico”.[1]

Juan Dahlmann, neto de Johannes Dahlmann – o pastor protestante que desembarcara em Buenos Aires em 1871 –, é secretário de uma biblioteca municipal no momento em que a narração se inicia, em 1939, e sente-se “profundamente argentino”. No entanto, para o neto de terceira geração de imigrantes, a certeza de sua argentinidade não é assim tão pacífica, já que precisa construir um passado que lhe dê uma identidade, além de ignorar a história que o ligava à Europa. Por isso, elege o avô materno, Francisco Flores, que teve “morte romântica” – foi furado por lanças indígenas na fronteira de Buenos Aires –, como representante de sua linhagem. Como isto não basta, e certamente por que isto o divide – esqueceria o sangue do outro avô que também lhe corre nas veias? –, cerca o passado que escolheu para si mesmo de ícones de identidade: um daguerreótipo antigo, uma velha espada, certas músicas, o hábito de declamar estrofes do Martín Fierro. Este gauchismo, embora voluntário, nunca foi ostensivo, afirma o narrador.[2]

Homem da cidade, o bibliotecário esforça-se por conservar uma fazenda no Sul, herança de seus antepassados. A certeza de que a casa, já desbotada, o esperava no pampa, alegrava-o verão após verão, mas o trabalho e a preguiça faziam com que permanecesse em Buenos Aires.

Certo dia, ao chegar à casa, excitado com a descoberta de um volume das Mil e uma noites, de Weil, Dahlmann não espera o elevador e põe-se a correr escadaria acima para examinar o raro exemplar. O destino não perdoa essa pequena distração do personagem e algo, no escuro, roça-lhe a fronte. A mulher que abre-lhe a porta vê o sangue em sua testa e só então, ao passar os dedos na ferida, Dahlmann percebe que a quina do batente de uma janela recém-pintada o atingira. Naquela noite ainda consegue dormir, mas para acordar-se de madrugada e ingressar num inferno de febre e dor. As ilustrações das lendas árabes decoram-lhe os pesadelos. Depois de oito dias, que lhe parecem oito séculos, é levado pelos médicos a fazer uma radiografia na Rua Equador. Dahlmann sofre com estoicismo o destino dos enfermos, comunica-nos o narrador. Ao saber que estivera a ponto de morrer, chora. A intensidade de uma semana de misérias físicas não lhe permitiu pensar na abstração da morte. No outro dia, o médico anuncia-lhe que pode convalescer na estância.

Se tudo, num conto, é significativo, como ensinou Edgar Allan Poe, o nome da rua em que Dahlmann fez a radiografia – Calle Ecuador – reveste-se de grande importância. Qualquer manual de geografia apresenta a linha do Equador como a coordenada que separa Norte e Sul. A visita à Rua Equador divide o conto, temporalmente, em um antes e um depois, e, espacialmente, em um Sul, misterioso e mítico, e um Norte, urbano e cosmopolita. O indício plantado pelo narrador de Borges assemelha-se àquele outro, de Poe, que se encontra em “A queda da Casa de Usher”. No meio do conto, o narrador do Norte cita um poema, “O solar dos espectros” que, como observou Lúcia Santaella, corta o fluxo narrativo e desenha-se na página, a formar uma fissura em ziguezague, exata réplica icônica da rachadura na estrutura da mansão.[3]

Analogamente, embora sem a força da representação icônica tão bem explorada pelo escritor de Boston, podemos dizer que a Rua Equador é um índice ou metáfora da fronteira que separa, e une, o tempo e o espaço na narrativa de Borges. A ubiqüidade da rua – capaz de ser a um só tempo Sul e Norte – fornece a chave para o deciframento da história secreta do conto. John Dahlmann sai da clínica e atravessa a cidade, em direção à estação de trem, num carro de praça, não sem antes o narrador nos advertir de que a “realidade gosta de simetrias e leves anacronismos”. Resgatado da morte e da febre, “todas as coisas regressavam a ele” na manhã outonal. Enquanto o automóvel cruzava as ruas de Buenos Aires, o narrador lembra que todo mundo sabe que “o Sul começa do outro lado de Rivadavia” e que John Dahlmann costumava repetir que isto não era uma convenção. “Quem atravessa essa rua entra num mundo mais antigo e mais firme”, afirma ele.[4]

Se no mundo real a rua que faz divisa chama-se Rivadavia e é reconhecida por todos os argentinos, no mundo ficcional quem metaforiza a fronteira entre dois mundos é a Rua Equador. Uma instigante inversão se estabelece: o Dahlmann-real encontra-se na clínica, na fronteira entre a vida e a morte, e o fruto de seu sonho, o Dahlmann-simulacro atravessa a fronteira real e se dirige ao Sul. O narrador não nos diz, explicitamente, que o personagem sonha. No entanto, em alguns momentos, fornece-nos pequenas pistas, no constante projeto borgiano de transformar o leitor em detetive. O Sul mítico inicia-se antes de Rivadavia – o Sul real – e dentro ainda dos limites do Norte cosmopolita. O desajuste desmascara a ironia: é o Dahlmann urbano quem, ao recusar a fronteira como mera convenção, cria para si mesmo um Sul misterioso. Ainda dentro do táxi, ou do sonho, o personagem vai tentando ver, entre as construções modernas, as antigas janelas gradeadas, os portais, as aldravas, os saguões e os pátios internos de um “mundo mais antigo e mais firme”. Na estação ferroviária, percebe que restam-lhe trinta minutos antes da partida do trem. Lembra-se, então, de um bar na Rua Brasil, próximo dali, onde um “enorme gato se deixava acariciar pelas pessoas, como uma divindade desdenhosa”.[5]

Entra no bar e toma um café. Ao acariciar o pêlo negro do gato, Dahlmann pensa que aquele “contato era ilusório e que estavam como que separados por um cristal, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal na atualidade, na eternidade do instante”.

De volta à estação, escolhe um vagão quase vazio, acomoda-se e retira da valise o livro que fora o causador de sua desgraça, As mil e uma noites. O narrador faz o personagem refletir que viajar com aquele livro era “uma afirmação de que a desgraça tinha sido anulada e um desafio alegre e secreto às frustradas forças do mal”. Lê pouco, no entanto. A manhã e o simples fato de existir parecem-lhe mais fantásticos que os “milagres supérfluos” de Sherazade.

E então, no meio da narrativa, o narrador afirma: “Amanhã despertarei na estância, pensou, e era como se a um tempo fosse dois homens: o que avançava pelo dia outonal e pela geografia da pátria, e outro, encarcerado num sanatório e sujeito a metódicas humilhações. Viu casas de tijolos sem reboco, esquinadas e compridas, a mirar infinitamente a passagem dos trens; viu cavaleiros nas estradas empoeiradas; viu sangas e lagoas e fazendas; viu grandes nuvens luminosas que pareciam de mármore, e todas essas coisas eram casuais, como sonhos na planície”. O uso do itálico, por Borges, indica, com sutil maestria, que aquele é um pensamento duplicado: na clínica, o Dahlmann real pensa que amanhã poderá despertar na estância, e, no interior do sonho, o simulacro o repete, num jogo de elegantes simetrias. A oração tem a mesma função ubíqua da Rua Equador. Como afirmou Rosa Pellicer,[6] a respeito de “El Zahir” e “El Aleph”, também em “O Sul” os planos real e imaginário se fundem, para dar passagem ao fantástico. Para ela, o que define a obra borgiana é ser uma escritura no espelho, escritura que não apenas inverte, mas duplica e multiplica a realidade.

Aceitar, pois, a história de Dahlmann como uma narrativa realista, linear, de meros “fatos novelescos” é reduzi-la a uma insignificância, mas lê-la de “outro modo”, como o autor o desejava, é ingressar nos mistérios da ubiqüidade de um universo de simetrias e reverberações, de paralelismos e alteridades, em que o mito recobre irremediavelmente a realidade.[7]

Na medida em que o trem se desloca (metáfora do tempo) em direção ao Sul (metáfora do espaço e do passado perdido), todas as coisas se transfiguram e como que adquirem uma aura onírica: “Já o branco sol intolerável do meio-dia era o sol amarelo que precede o anoitecer e não tardaria a ser vermelho. Também a cabine era diferente; não era o que fora em Constituição, ao deixar a gare: a planície e as horas a haviam atravessado e transfigurado. Fora, a sombra móvel do trem se encompridava até o horizonte. Não perturbavam a terra elementar nem povoações nem outros signos humanos. Tudo era vasto, mas ao mesmo tempo íntimo e, de alguma forma, secreto”. Assim, diante dessa paisagem insólita, mítica e/ou onírica, Dahlmann “pôde suspeitar que viajava ao passado e não somente ao Sul.[8]

Imerso neste outro universo, e noutro tempo, já não o espanta a súbita parada do trem, nem pede explicações ao cobrador – o que certamente faria na vida real –, “porque o mecanismo dos fatos não lhe importava”.[9]

Caminha devagar, aspirando o ar da noite que vem descendo sobre a planície, até o armazém, que dista dez ou doze quadras da pequena estação perdida no meio do campo, onde, disseram-lhe, conseguiria alugar um carro que o levasse até a estância.

Prisioneiro de um imaginário constituído de figuras literárias, afinal, mais que bibliotecário Dahlmann era leitor, até a arquitetura do armazém lhe traz à lembrança uma gravura vista numa velha edição de Paulo e Virgínia. Ao entrar, tem a impressão de reconhecer o dono do armazém, mas percebe o engano: ele era parecido com um dos empregados da clínica! Depois, o homem se dispôs a mandar preparar uma charrete para levar Dahlmann à estância. Mas este preferiu ficar e comer alguma coisa, para “agregar outro fato aquele dia e para passar o tempo”.

Alguns arruaceiros comiam e bebiam, ruidosos, numa mesa qualquer. Dahlmann não lhes deu muita atenção. O que o impressionou foi um “homem muito velho”, acocorado no solo, apoiado no balcão, “imóvel como uma coisa”. A descrição é magistral: “Os muitos anos haviam-no reduzido e polido como as águas a uma pedra ou as gerações dos homens a um ditado. Era escuro, pequeno e ressequido, estava como fora do tempo, numa eternidade”. Imediatamente o paralelismo com o gato, divindade desdenhosa, se instaura. A simetria entre os bares também é digna de nota. E Dahlmann registra com satisfação a indumentária típica do gaúcho, desses que só existem ainda no Sul. Depois, acomodou-se junto a uma janela e quedou-se a fitar o campo e o anoitecer. O bolicheiro trouxe sardinhas, carne assada e vinho tinto. Como que a espera de alguma coisa, o bibliotecário deixou-se ficar no armazém, sentindo ainda o “áspero sabor” do churrasco e do vinho na boca, errando os olhos sonolentos pelo local. De repente, sentiu “um leve roçar na face”. Alguém, da outra mesa, jogara-lhe uma bolinha de miolo de pão.[10]

Tudo não teria passado de uma brincadeira inconseqüente se o dono do armazém não tivesse chamado Dahlamnn pelo próprio nome. Nomear é fazer existir e isto altera tudo. Ele não se impressiona que um desconhecido saiba seu nome, mas o anúncio desse nome transforma a brincadeira numa questão de honra. Dahlmann, subitamente cioso de valores esquecidos ou ignorados pelos homens do Norte, como a coragem e a honra, toma satisfação com os nativos embriagados. Um deles, um peão indiático, depois de injuriá-lo com pesadas obscenidades, saca um grande punhal e o desafia a duelar. O dono do armazém, trêmulo, recorda que Dahlmann está desarmado. Então, o velho gaúcho, “símbolo do Sul”, atira-lhe uma adaga, que cai-lhe aos pés. Ao apanhá-la, Dahlmann compreende que esse gesto sela o seu destino: terá de lutar e a arma na sua mão inábil mais que defendê-lo será uma justificativa para sua morte. Os conhecimentos do bibliotecário sobre duelos são, mais uma vez, literários: que os golpes devem ser dados de baixo para cima e com o fio para dentro.

Honrado, embora bêbado, arruaceiro e fanfarrão, o compadrito o convida para sair ao campo, pois seria uma indecência e uma injúria duelar sob um teto. Os homens saem e o narrador conclui: “Sentiu, ao atravessar o umbral, que morrer num duelo de punhais, a céu aberto e atacando, teria sido uma libertação para ele, uma felicidade e uma festa, na primeira noite do sanatório, quando cravaram-lhe a agulha. Sentiu que se ele, então, tivesse podido eleger ou sonhar sua morte, esta é a morte que teria elegido ou sonhado. Dahlmann empunha com firmeza o punhal, que talvez não saberá manejar, e sai para o descampado.”

Já sabemos que a “realidade gosta de simetrias e leves anacronismos”, como nos ensinou o narrador borgiano. Nem será preciso acrescentar que se trata da realidade do texto, pela qual só o narrador responde. Ativos participantes desse jogo de espelhamento, podemos fazer corresponder agora outros sistemas ao conjunto. Estabeleçamos, pois, um paralelo entre o que disse o autor, sujeito fora do texto, de que há mais de uma forma de se ler o conto, e a afirmação do narrador, sujeito no interior do texto, de que a realidade gosta de simetrias e leves anacronismos. Se à “narração dos fatos novelescos” correspondem as simetrias, ao “outro modo” corresponderão os anacronismos? Assim, o leitor que fizesse somente a primeira leitura, não ultrapassaria os limites do realismo. Prisioneiro da causalidade dos “fatos novelescos”, tal leitor não poderia ignorar que as mortes tolas do avô e do neto são simétricas, como o são as ruas Equador e Rivadavia, o carro de aluguel que levou Dahlmann à clínica e o que o conduziu à estação ferroviária, o bar da Rua Brasil e o armazém de campanha, o leve roçar da janela e da bolinha de pão, o gato e o velho gaúcho, etc. O outro leitor, que investigasse os “leves anacronismos”, mergulharia num outro gênero de literatura, cuja causalidade comporta a existência simultânea de dois bibliotecários, um na clínica e outro no trem. Se o primeiro objetasse que a prova do realismo do conto e da existência una de Dahlmann é o livro que levou escada acima, e que depois carregou consigo na sua viagem ao Sul, As mil e uma noites, ouviria do segundo a história de Coleridge, tantas vezes citada pelo escritor argentino, do homem que trouxe do sonho uma flor murcha. No conto de Borges, o bibliotecário que ingressa no sonho carrega consigo um exemplar do livro-símbolo dos contadores de histórias. O leitor-detetive poderia ainda acrescentar outro não tão leve anacronismo: ao final da narrativa, os tempos verbais passam do pretérito imperfeito ao presente e ao futuro, porque o Dahlmann do duelo já vive “na eternidade do instante”, esfíngico, fora da sucessão temporal e da causalidade física, divindade tão desdenhosa quanto o gato do primeiro bar, intocável, separado do mundo como que por um cristal, ou quanto o velho gaúcho do outro bar, reduzido e polido como uma pedra pela água, mas tornados todos realidade textual pelo sonho da ficção.


[1] Para Borges, a literatura fantástica emprega alguns procedimentos: 1) o texto dentro do texto, que anula as diferenças entre personagens e leitores (no Dom Quixote, por exemplo, há personagens que lêem o livro Dom Quixote); 2) o sonho como parte da realidade (ver, por exemplo, Na máquina do tempo, de H. G. Wells, ou “As ruínas circulares”, do próprio Borges); 3) o duplo, ou dois que são um (“William Wilson”, de Poe, por exemplo, ou “Borges e eu”, de Borges). Além disso, afirma que a literatura realista é tão “convencional” ou “artificial” quanto a fantástica, e que esta nada tem de escapista. Reyzábal, M. Victoria. “Jorge L. Borges: um soñado espejo para su paradójico laberinto”. In: Anthropos: Revista de documentación de la cultura. Barcelona, 1984. n. 142-3. p. 24-5.

[2] Esta discrição de Dahlmann, este gauchismo comedido, pode ser lido, ironicamente, como uma vingança do avô alemão.

[3] In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe, São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 186.

[4] A expressão todo mundo demonstra que o narrador dirige-se a um público específico, argentino, já que outros leitores possíveis não detém a informação de que a Avenida Rivadavia divide Buenos Aires em duas. Paradoxalmente, a elogiada universalidade de Borges compõem-se de narradores portenhos, argentinismos, expressões gauchescas, mitologias regionalistas, etc.

[5] O itálico é nosso.

[6] Borges: el estilo de la eternidad. Zaragoza: Editorial de la Universidade de Zaragoza, 1986. p. 271.

[7] O outro modo apontado por Borges pode referir-se a um terceiro aspecto: o da metáfora autobiográfica. Basta lembrar o que o autor afirmou em Perfis: “Foi na véspera do Natal de 1938 – o mesmo ano em que meu pai morreu – que tive um grave acidente. Subia correndo uma escada e de repente senti alguma coisa roçar meu couro cabeludo. Eu me esfolara no batente de uma janela aberta, recém-pintada. Apesar do tratamento de urgência, a ferida ficou infeccionada e por um período de mais ou menos uma semana passei as noites desperto e tive alucinações e febre alta. Uma noite perdi a capacidade de falar e fui levada às pressas para o hospital para uma operação imediata. Declarara-se uma septicemia e por um mês eu vacilei, completamente sem o saber, entre a vida e a morte. (Muito depois, iria escrever sobre isso em meu conto “O Sul”).

[8] O que explica o fato do trem ter se detido, “quase no meio do campo”, antes de chegar ao destino: no passado, a “estação, que era pouco mais que um passadiço com cobertura”, era o final da linha. A estação que Dahlmann buscava, próxima de sua estância, só existe no futuro.

[9] Esse leve anacronismo do caráter do personagem, essa leve inverossimilhança, num autor que confessava fazer infinitas revisões em seus contos, não é casual.

[10] Situação simétrica à da quina da janela, que também roçou a fronde de Dahlmann.

domingo, 10 de maio de 2009

Duas notas sobre os blogs

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sexta-feira, 8 de maio de 2009

O fogo sagrado

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quarta-feira, 6 de maio de 2009

A velha lição

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sexta-feira, 1 de maio de 2009

Dez contos norte-americanos

Um de meus leitores da blogosfera indaga-me quais seriam os dez melhores contos de “linguagem e trama”, os dez contos que um pretendente ao ofício de escritor não deveria desconhecer.

Questão mais que complicada. Como afirma meu aluno Guido Kopittke, o “reservatório da grande literatura não para de crescer”. E isso que não temos tempo de vida suficiente sequer para lermos, com a devida atenção, os clássicos, aqueles livros que precisamos conhecer por dignidade intelectual.

Ora, como não ter lido as peças de Sófocles, de Shakespeare, de Tennessee Williams? E Nelson Rodrigues? E Tchecov, outra vez, com seu Tio Vânia, O jardim das cerejeiras e as Três irmãs? E os grandes romances? E as grandes novelas? E os grandes líricos? E os grandes épicos?

Os dez melhores contos de linguagem e trama? Os dez melhores livros de contos? Certo, me conformarei com a provocação decimal, mas farei uma lista exclusiva com autores da terra do conto moderno. Quem sabe, mais adiante, eu arrisque umas “décimas” com outros países.

O critério de seleção, aqui, é absolutamente subjetivo. São contos que me fascinam, por este ou aquele motivo. Contos que eu próprio gostaria de ter escrito. Contos que equilibram de forma adequada o eixo dos procedimentos construtivos ao eixo dos meios expressivos.

Eis a lista:

1) “Wakefield”, de Nathaniel Hawthorne
2) “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe
3) “De como Papai Noel veio a Simpson´s Bar”, de Bret Harte
4) “Mãos”, de Sherwood Anderson
5) “Uma rosa para Emily”, de William Faulkner
6) “Arranjo em preto e branco”, de Dorothy Parker
7) “É difícil encontrar um homem bom”, de Flannery O´Connor
8) “Os ex-patriados”, de Ray Bradbury
9) “Um dia ideal para os peixes-banana”, de J. D. Salinger
10) “Ninguém disse nada”, de Raymond Carver

Paixões literárias

Este texto encontra-se agora em Para ser escritor, Editora Leya, 2010.